Responsabilidade, por João Marcos Buch

Responsabilidade

por João Marcos Buch

As condições do cárcere em todo o país permanecem violadoras em vários sentidos. Quem diz que o estado tem o controle de tudo é porque ou falta com a verdade ou nada sabe mesmo. O sistema prisional brasileiro pode implodir a qualquer hora e em qualquer lugar.

Como se isso não bastasse, a pandemia, assim como para tantos outros, trouxe mais demanda e mais responsabilidade ao meu trabalho. Quem acompanhou de perto meus dias, sabe do que falo.

Ao longo do ano de 2020, como juiz de direito, no universo de desafios que se apresentaram, continuei a conduzir o leme da execução penal e da corregedoria dos presídios de Joinville voltado ao norte da ética e humanismo, não importando a virulência da tempestade.

Com competência jurisdicional para tratar de processos de mais de 7.000 apenados, dentre os quais mais de 2.000 reclusos, analisei centenas de casos de prisão domiciliar para cuidado da saúde, progressões de regime, liberdades vigiadas com tornozeleira eletrônica etc.

Além disso, seguindo rigorosamente as normas sanitárias, mantive as inspeções presenciais no complexo, quase que semanais, nelas dialogando com os trabalhadores e ouvindo e vendo os detentos.

O que fiz e faço é exercer as funções para as quais existo como juiz, nada mais.

Entretanto, nem assim, nem expondo todo o meu trabalho, sua necessidade, legalidade e constitucionalidade, nem me expondo, com custos bastante altos, muitas vezes pessoais, nem por isso estou livre do discurso de ódio de certas pessoas que, por ignorância ou má-fé, raramente veem, raramente olham, mas frequentemente condenam. Elas deturpam fatos, manipulam informações e lançam ataques, chegando ao ponto de vociferarem cruzadas contra “o juiz que solta bandidos”.

Esse método, que alguns, entre eles o Papa Francisco, chamam de “low-fare”, não é novo e exclusivo, pois se repete no tempo e no espaço por todo o ocidente, contra aqueles que defendem os direitos humanos e não se encaixam no fanatismo político dos salvadores da moral e dos bons costumes, coisa que aliás os autointitulados messias nunca tiveram.

Ouço de amigos, “esqueça! Não há seriedade nisso”. Em um primeiro momento eu concordo. Essas manifestações venenosas não me infectam, não arranham as prerrogativas constitucionais irrenunciáveis das quais goza um juiz no exercício de sua profissão. E mais, esses discursos não possuem um grão de solidez, desmoronando no primeiro embate com o direito.

Mas o fato é que, se não há seriedade nessas pessoas, ela sobra em seus seguidores.

Na película “Filhos da Dinamarca”, o diretor Ulaa Salim conta uma história de preconceito e opressão contra imigrantes. Em determinado momento da trama, um agente da inteligência procura um supremacista branco, candidato a primeiro ministro, e pede que ele modere no seu linguajar, que procure não fomentar divisões e tente apresentar um pouco mais de solidariedade, pois do contrário uma onda de violência de grupos neonazistas pode se desencadear. Entretanto, nada convence o líder e sob o argumento de que ele não tem responsabilidade sobre esses movimentos, o discurso sectário é mantido. Salim, com primor, coloca a sétima arte a serviço do conhecimento, mostrando como se cria, alimenta e faz crescer o extremismo nacionalista.

Não à toa vemos grupos neonazistas pulularem pelo Brasil. O racismo e o machismo, num patriarcado encoberto por um mentiroso manto de tradição, família e propriedade, são espalhados como aerossol por bocas malfazejas.
Cada vez que uma autoridade fala com preconceito, negacionismo e má-fé, ela aproxima o país da morte, ela impõe ao homem que seja o lobo do homem, enfraquecendo o contrato social.

Fausto, Goethe, Joice, Pessoa já mostraram com admirável lucidez quem são esses seres. Quando pessoas em cargos de alto escalão destilam ódio, elas de alguma forma falam ao coração dos fundamentalistas e ajudam a criar pessoas agressivas e violentas. O discurso da estupidez facilita às pessoas despojarem-se da dignidade humana.

No andar da execução penal, assim, não é fácil defender valores que, por mais importantes que sejam, por vezes quase nada mais representam para a sociedade. Mas, como já se disse outrora, em dias de discursos e práticas autoritárias, ser odiado por defender a Constituição e os direitos humanos de forma intransigente é distinção.

Se desejamos manter um padrão mínimo de civilidade, as respostas devem ser urgentes. O vírus da covid-19 será vencido com a vacinação de todos, o do ódio com a responsabilização de seu criador.

João Marcos Buch – juiz de direito, membro da AJD

Redação

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