Rio de Janeiro: uma cidade a cada dia mais partida, por Roberto Bitencourt da Silva

Por Roberto Bitencourt da Silva

Primeiro escravizaram os antepassados. No mesmo compasso estupraram as suas mulheres, que deram crias negras e morenas. Mais braços para a lavoura, as minas e a geração de riqueza canalizada para o colonizador e o fazendeirão.

Mais tarde “libertaram” o escravo sem o correspondente acesso à terra. Adiante, com as terras concentradas, foram adotados maquinários no campo. Resultou disso a expulsão do meio rural, com um processo massificado e marginalizado de urbanização. Sem acesso à moradia. Criaram-se as “latolândias”, como designava o trabalhista Alberto Pasqualini às favelas, paridas do ventre da injustiça social e da espoliação capitalista.

Mora(ra)m sob o improviso e a precariedade. Foram e são chamados de “criminosos”. Ao menos, potencialmente assim vistos. Na cidade não foram nem são concebidos como gente. Não tem empregos regulares e com garantias mínimas. O setor produtivo, preenchido por multinacionais ou por empresas nacionais que importam equipamentos e máquinas, não absorvem a contento a força de trabalho. Nem de longe.

Vivem de bico e trabalho irregular. São tidos como “camelôs e biscateiros marginais”. Mal têm acesso à escola, por que não há emprego minimamente qualificado no horizonte. Gente descartável, sobrante. Classificados, frequentemente, como “criminosos” e “suspeitos” de “banditismo”, as suas áreas de moradia são ocupadas pela polícia. As célebres UPPs.

A polícia procura regular as sociabilidades e a convivência nas favelas. Cenário conflituoso. Um barril de pólvora. Restrições às liberdades básicas e inúmeras mortes de inocentes, incluindo crianças.

Vez e outra casas postas abaixo para o “avanço” da “modernidade”, da especulação imobiliária e dos “grandes eventos” que, segundo alguns, tornam o “Rio lindo”. Desapossados de terra, de casa, de escola e de emprego, sobra a “política pública” do trabuco e do ordenamento policial, sufocando a vida comunitária.

Um raro e barato lazer em área pública, a praia, é motivo para vexações e apreensões indiscriminadas, inclusive de menores. As linhas de ônibus que ligam áreas distintas da cidade progressivamente encerradas. Cidade gentrificada. Não são vistos como gente. Como resposta, alguns poucos procuram se afirmar e se tornar “visíveis” com tumultos e furtos na área dos “bacanas”, dos “playboys”.

O jornal denuncia o banditismo dos “bárbaros” e quase exalta a ação de pequeno número de “pessoas”, de “jovens” de Copacabana, que “reagem” à “invasão bárbara”, agredindo indiscriminadamente jovens passageiros em ônibus.

O secretário de segurança entende que estão tolhendo a polícia. Principalmente o Poder Judiciário, de acordo com seu pronunciamento. O círculo de violência, é claro, só tende a crescer. O ódio – racial e de classe – tende a aumentar sob a afirmação constante, pelas autoridades e pelos conglomerados de mídia, daquilo que Darcy identificou como o status, socialmente conferido, da “ninguendade” do negro, do moreno, do garoto suburbano e favelado.

A perversa obscuridade e o desapossamento sistemático de direitos alimentam o caldeirão de violência. Uma cidade a cada dia mais partida e sujeita à lógica policial. A covardia das elites econômicas e políticas não tem limite. Elas desprezam o Brasil e o seu Povo.

Rio de Janeiro, Brasil, ano 2015. Uma cidade e uma Nação paridas do escravismo, do colonialismo, do coronelismo e do imperialismo. O passado do nosso País, remoto ou nem tanto, sempre nos bate na cara.

Roberto Bitencourt da Silva – doutor em História (UFF) e professor da FAETERJ-Rio/FAETEC e da SME-Rio.

Publicado no Diário Liberdade.

Crédito Foto: Ricardo Zerrenner

Redação

12 Comentários

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  1. Xico Sá escreveu assim no El País ontem

    Relatos selvagens das praias cariocas

     

     

    Os novos cobradores não pouparam ninguém do alvoroço. Não é uma cobrança obrigatoriamente de classe. É um redemoinho dos “feios, sujos e malvados”

      A política que barra negros e pobres e ameaça a democracia da areia no Rio

     

     

     

    Tem morador da cidade do Rio de Janeiro, ainda sob o pânico dos arrastões, torcendo para que não dê praia neste final de semana… No que me faz lembrar, por associação automática, no título do best-seller O Sol é para todos, de Harper Lee, sobre injustiça, racismo, separatismo etc.

    Não adianta tapar o sol com a peneira, o sol por testemunha, o sol também se levanta… Sigo viajando nos títulos dos livros que tentam explicar o mundo e as particularidades.

    Donde o cobrador, no sentido do conto homônimo de Rubem Fonseca publicado em 1979, é um sujeito que toca o terror na cidade do Rio de Janeiro com a cólera de quem busca tudo que lhe devem na vida. Não cobra no varejo; sim pelo conjunto da obra. Ele parece cobrar, além muito além de grana e quinquilharias consumistas, atenção, afeto, amor, sexo…

    Ele, o bruto, cobra que lhe arranque um dos últimos dentes da boca, cobra caro a ira que tem da madame da zona sul, ele não suporta o playboy que sai para jogar tênis todo de branco, ele dá porrada em um mendigo cego cujo tilintar das moedas na cuia de alumínio o faz perder a paciência…

    “Não sou homem porra nenhuma, digo suavemente, sou o Cobrador.” Ele explode diante de um executivo que, para aliviar a barra pesada, apela para um sentimento humano tipo “homem que é homem…”

    Assim, ele descreve este mesmo devedor da sociedade: “(…) deslumbrado de coluna social, comprista, eleitor da Arena, católico, cursilhista, patriota, mordomista e bocalivrista, os filhos estudando na PUC, a mulher transando decoração de interiores e sócia de butique.”

    E segue com uma vida a cobrar, nesta obra-prima que antecipa, em crueldade, o recente filme argentino Relatos Selvagens: “Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol”, enumera o homem revoltado. “Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!”

    Papai Noel que se cuide no Natal. O cobrador jura que irá acertar as contas. O bom velhinho é um dos seus maiores devedores.

    “A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo.”

    Feios, sujos e malvados

    O eterno retorno dos arrastões nas praias cariocas me fez lembrar uma multiplicação, em versão infanto-juvenil, dos cobradores de Rubem Fonseca. Como os gremlins do cinema americano, eles se multiplicaram nas areias e calçadas de Ipanema e Copacabana. Cesse tudo que a Bossa Nova canta, o barquinho vira, o pancadão do funk se alevanta.

    Os novos cobradores não pouparam ninguém do alvoroço. Nem moradores de rua e muitos menos os passageiros de morros e arrabaldes que chegaram às praias nos mesmos ônibus. Não é umacobrança obrigatoriamente de classe. É um redemoinho dos “feios, sujos e malvados” –vide o filme italiano de Ettore Scola, da mesma época de O cobrador brasileiro– que assusta os moradores da zona sul pelo menos há três décadas.

     

    Repare na reportagem que publicava no dia 04 /11/1984, noJornal do Brasil, o cronista Joaquim Ferreira dos Santos:

    “Ipanema, essa senhora cada vez mais gorda e poluída, reclama de novas estrias e dentes cariados em seu corpanzil: agora é culpa dos ônibus Padron, a linha 461 que, há um mês, traz suburbanos para seu “paraíso”, numa viagem de apenas 20 minutos, via Rebouças. É o que dizem seus moradores, inconformados. Ouçam só: ´Que gente feia, hein?!´ (Ronald Mocdes, artista plástico, morador da Garcia D’Ávila, bem em frente ao ponto do ônibus).”

    Os novos cobradores apresentam mais uma vez uma velha dívida. Não que haja assim um movimento organizado como os crimes da política oficial. Tampouco uma chantagem de peemedebistas loucos para vampirizar o Ministério da Saúde e o país, sob o olhar complacente de uma presidenta que sangra em público –como prometeram os caciques do PSDB.

    O sequestro da Primavera

    Os moleques, entre um jacaré e outro nas ondas do Arpoador, arrepiam com o sol por testemunha. No derradeiro final de semana conseguiram sequestrar a Primavera e fazer o Rio saltar direto para o veraneio dos Trópicos.

    Eles cobram com paus e pedras. Em alguns momentos parecem se divertir, perversamente, com o pânico no balneário; há também um quê de aventura e adrenalina nas galeras, como no sujeito solitário de Rubem Fonseca –pelo menos até encontrar a Ana, amante e cúmplice.

    Estão devendo tudo à esta molecada, inclusive explicações sobre as mortes de meninos como eles, abatidos pela polícia como bichos. A última vítima foi enterrada nesta quinta, 24 de setembro, sob protesto no Cemitério do Caju: Herinaldo Vinícius de Santana, 11 anos, assassinado com um tiro na cabeça na zona norte do Rio. Aqui se deve, aqui não se paga a esse tipo de gente. Os cobradores, personagens literários ou não, sabem que ninguém baterá nem uma lata por eles em uma geografia carioca altamente paneleira.

    São os estranhos e proibidões no paraíso.

    Tem uma turma aqui na vizinhança da minha casa, ai de tiCopacabana, torcendo para que não dê praia neste final de semana. Tem outro grupo, conforme se vê nas redes sociais e no zunzunzumdo bairro, se preparando para reagir aos “invasores bárbaros”, como já ocorreu em algumas ocasiões.

    Resta samplear, ingenuamente, o compositor Nelson Cavaquinho: “É o juízo final/ A história do bem e do mal/Quero ter olhos pra ver/ A maldade desaparecer… // O sol (…)”

     

     

     

     

    http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/25/opinion/1443183560_048031.html

  2. rio maravilha

    Roberto,

    O apartheid virou notícia internacional, muito bem.

    Como eu digo, no dia em que o narcotráfico deste patropi ficar profissionalizado como no México, bye bye demagogia barata e todos com a bundinha colada na parede.

    E se alguém conseguir me explicar por qual o motivo os arrastões sempre se restringiram à praia do Arpoador, mais duas quadras de Ipanema e dali não passa, ficarei bastante agradecido pela informação.

    Quando eu escrevi que o assassinato na Lagoa ocorreu porque os organizadores da patranha erraram a mão, e por isto não haveria mais nenhum ataque, acertei. Seria muito bom prá todos os cariocas, que viessem a conhecer um pouco mais de sua cidade e, assim, parasse de acreditar que a versão do JN é que é a boa, até porque ela é uma boa merda.

    Será que ninguém se lembra, pela boca do Bonner, dos muros com 3 m de altura a rodear as favelas da zona sul ? Pois é.

  3. Muito bom o “Cidade

    Muito bom o “Cidade gentrificada”.

    Pergunta que não quer calar:

    Para não voltar muito no tempo, qual diferença do praticado hoje com os guetos implantados pelo programático nazista ?

     

  4. Alegoria de luta de classes

    Uma, duas, mil vezes repete-se o mantra. É como uma obsessão: desde o fracasso da luta armada, que não teve o apoio dos trabalhadores, os esquerdistas brasileiros têm procurado angariar seu novo público entre os marginais das periferias, aqueles a quem Marx denominava o lumpenproletariado. Desde então, os comentaristas têm se obstinado em dar uma leitura de luta de classes ao fenômeno da criminalidade; na visão deles, os bandidos que vem fazer arrastão nas praias são os “cobradores”, vingadores da espoliação de que seus ancestrais foram vítimas.

    Como alegoria cai bem. Já foi explorada por multidões de literatos, artistas e cineastas. Mas e a realidade?

    Aí as peças começam a não se encaixar. A moça que foi vítima do pivete anteontem não era uma moradora riquinha da zona sul. Era uma humilde auxiliar administrativa que veio de ônibus dos subúrbios. E o garoto que roubou o celular dela apareceu hoje no jornal dizendo com toda as letras que roubou só para divertir-se, e que não sabe se vai parar de roubar. Ele tem família, a mãe dele disse que nunca lhe faltou nada, e chegou até a estudar em uma escola particular. É aí que nos conscientizamos do quanto fomos ingênuos ao acreditar que os bandidos roubam por necessidade, como naquela canção de Chico Buarque, Meu Guri, que fala de um pivete que roubava para sustentar seus pais idosos. Foi do princípio dos anos oitenta, dá para ver que o tempo da inocência não está tão longe assim. Quanto a mim, sempre desconfiei dessa história de que bandido não rouba pobre desde que ouvi a empregada de meus avós contar como era sempre assaltada por pivetes ao tomar o trem. Outro dia vi uns pivetes negros correndo na rua da Carioca, perseguidos por um homem igualmente negro.

    Caindo na real, vemos que os manos das periferias não são cobradores de injustiças sociais, muito menos revolucionários, por uma razão muito simples: eles são capitalistas. Na verdade, eu diria até, hipercapitalistas, a julgar pelo consumismo e pela vaidade que exibem. Disso o velho Marx já sabia, tanto que sempre deixou claro que os lumpens eram imprestáveis como revolucionários, embora previsivelmente culpasse o capitalismo pela degradação que produzia os lumpens. Mas aqui no Brasil, os órfãos do socialismo continuam sonhando que os manos vão fazer a revoução que vai alçá-los ao poder.

  5. Chega de maldade

    Chega de maldade

     

    Visto de cima

    De longe ou de fora

    O Rio de Janeiro continua lindo

    (Como sempre o fora)

     

    Agora é sonharmos

    Maravilhosa a cidade

    Plena de beleza em todo canto

    Reino da bossa

    Rainha do mar, do samba e do amor

    Sob o mesmo sagrado manto

    Do Redentor

     

    Queira Deus

    Que os teus iluminados guris

    Sejam, além de bambambãs

    Na baixada e no morro

    No samba e na bola

    Também na vida

    Na vila, na avenida

    No amor e na escola

     

    Reino de tanta riqueza tão mal dividida

    De tanta gente feliz e de tanta gente desvalida

    Sob o mesmo sagrado manto

    Do Redentor

     

    Chega de maldade

    Desigualdades, desmandos

    Desencanto e pranto

    O Rio, de tantos encantos

    Não merece tanta dor

     

    Tanta luminosidade encanta

    Tão generosos são teus sinuosos traços

    O Maracanã, lotado ou vazio, nos toca

     

    Alô, torcida carioca

    Aquele abraço

     

    Virgílio Siqueira

     

    Musicado por Davi Siqueira

  6. Engraçado esse termo

    Engraçado esse termo cobrador. Me lembrei de uma situação que na hora não entendi direito.

    Uma época eu morava em um condomínio classe média alta (nem tanto), num bairro idem, na casa de uma amiga, quando um pessoal comprou uma casa vizinha. Eles vinham de uma bairro mais popular, perto de uma comunidade.

    O filho do casal deu uma festa e convidou a galera da comunidade, devia ter uns vinte. Lá pelas tantas começaram a tocar terror na piscina do condomínio, querendo pegar coisas no bar sem pagar, falando alto e mexendo em tudo, e alguns sairam pelas garagens e começaram a pegar as bicicletas, levaram várias. Eu, por exemplo quase me atraquei com um para não levarem a minha.

    Fiquei olhando para aqueles meninos sarados, bonitos e equivocados e o pensamento que veio foi, que desperdício. O Brasil com um povo moreno desses devia ser uma potência olímpica, no mínimo.

    Eu moro perto de várias comunidades e a gente vê essa rapaziada andando na rua cheia de moral, se sentindo empoderada. E isso pode ser para o bem ou para o mal.

    Acho que (na minha humilde opinião) esse é o dilema do país, não dá mais essa desigualdade social. Não podemos cair na armadilha semiótica de que isso vai se resolver com polícia e não com políticas de desenvolvimento social. Ainda mais quando a gente vê todos os dias figurões se apropriando de milhões impunemente. Nínguem chama a polícia. Só o Neymar é acusado de sonegar mais de 100 MILHÕES. Eles não podem se apoderar da narrativa.

    Um tempo atrás estava em Brasília numa superquadra daquelas quando um rapaz moreno forte veio com passos decididos na minha direção. Já tinha visto ele fumando crack num parquinho. Não arredei o pé. Ele parou na minha frente e pediu um cigarro. Dei o cigarro e acendi olhando nos olhos dele. Ele me disse espantado: o senhor está me olhando. Eu falei: qual o problema? Nunca ninguém me olha, disse ele.

    Como disse o Pelé uma vez, precisamos cuidar de nossas criancinhas.

     

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