Sadismo político/carcerário e vulnerabilidade social, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Quando consegue se estruturar politicamente como poder dominante o sadismo não pode admitir qualquer concorrência, seja ela real ou simbólica.

Sadismo político/carcerário e vulnerabilidade social

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Não é possível construir uma tirania sem o exercício permanente da violência simbólica e da brutalidade policial e/ou militar. Mas o sadismo somente se torna uma realidade política dominante quando há vulnerabilidade. O que possibilita a expansão da barbárie é, portanto, um fenômeno social e/ou econômico.

O empresário que agrediu brutalmente uma moradora de rua foi brutalmente espancado e mutilado num presídio.

Antes de ser vítima do empresário a pobre mulher agredida gratuitamente já havia sido condenada à miséria por um sistema político que incluiu os banqueiros nos cálculos do exercício do poder para poder excluir economicamente da agenda pública a maioria da população. A criminalização da pobreza é um fato consumado e evidenciado pelo discurso do Ministro da Economia da Jair Bolsonaro.

Paulo Guedes disse que os ricos são virtuosos porque poupam e os pobres não têm virtude porque consomem tudo que ganham. Esse discurso omite um fato essencial: desde o golpe de 2016 o Estado brasileiro tem permanentemente diminuído os investimentos em saúde, educação, habitação popular, previdência, programas sociais, etc… e aumentado as despesas com juros bancários em virtude da queda de arrecadação. O neoliberalismo enriquece os ricos garantindo-lhes o privilégio de se assenhorar dos recursos públicos através de juros crescentes numa economia com crescimento negativo ou em declínio. Abandonados a própria sorte, os pobres que estão desempregados não tem condições de consumir. E aqueles que estão empregados não podem poupar porque são obrigados a custear serviços que deveriam ser públicos e gratuitos.

Acreditando que era livre para exercitar seu sadismo diante de uma mulher vulnerável e desamparada pelo Estado, o empresário se tornou vulnerável quando foi levado à prisão. Atrás das grades, os prisioneiros não são livres para fazer o que querem. Mas quando querem fazer algo (espancar, mutilar, matar e decapitar) ninguém é capaz de impedi-los. O que ocorreu com ele era previsível e confirmou as palavras dos juristas Alexandre Moraes da Rosa e Salah H. Khaled Jr.:

“As histórias de ‘sucesso’ daqueles que emergem do sistema penitenciário são histórias de sobrevivência. Não são demonstrações da capacidade da pena para fazer o bem. A prisão não ressocializa. Ela dessocializa. Ela não integra, mas segrega. Se ela ensina algo, são estratégias de sujeição e sobrevivência na própria prisão. O que a prisão efetivamente faz é neutralizar seletivamente quem comete crimes como se inimigo fosse, mesmo que isso coloque em questão o Estado Democrático de Direito, o que é comprovado pelos últimos séculos de atividade do poder punitivo. Não seria exagero dizer que a prevenção especial positiva está rapidamente se tornando prevenção especial negativa na prática, pelo menos no holocausto nosso de cada dia, que avança cada vez mais no Brasil: está voltada para a simples inocuização dos detentos, no que se aproxima muito da lógica de segregação e incapacitação dos inimigos, típica da Alemanha Nazista.” (In Dubio Pro Hell – profanando o sistema penal, Editora & Livraria Jurídica, Emais, 3ª edição, florianópolis, 2018, p. 118)

Suprema ironia, lógica punitivista que embruteceu os inimigos da sociedade massacrou alguém que acreditava ser amigo dela no exato momento em que agredia uma mulher vulnerável.

No momento em que cometeu a agressão o empresário sádico selou seu destino? Não. Na verdade, antes mesmo de cometer um crime ele foi vítima de outro: a expansão da ideologia bolsonarista, esse misto de ódio pelo “outro” (por qualquer “outro”), crença na virtude da violência como meio de solução dos conflitos e a predisposição continuamente estimulada pelo mito de que a autotutela agressiva é a única maneira legítima de resolver os problemas cotidianos, sejam eles privados e políticos.

O empresário espancado na prisão deveria servir de exemplo para Jair Bolsonaro e seus filhos. Mas não. Eles triunfaram e acreditam que poderão triunfar para sempre. O poder tem limites, mas a disposição deles para agredir o Estado de Direito e legitimar agressões gratuitas é crescente e infinita. Num dia Eduardo Bolsonaro ri e fala em reeditar o AI-5. No outro o presidente faz uma careta e diz que os anunciantes da Folha de São Paulo tem que tomar cuidado.

A expressão “Bolsonaro, doença mensal” já produz 772 mil resultados no Google. Mas ninguém pode dizer que o Brasil adoeceu após a posse de Jair Bolsonaro. De fato, a eleição dele foi apenas o sintoma de um mal que vinha crescendo e sendo alimentado pela mídia desde o mensalão. O ódio irracional ao PT antes, durante e depois do julgamento do Mensalão se transformou em ódio à soberania popular durante o golpe contra Dilma Rousseff e evoluiu para o ódio aos princípios constitucionais do Direito Penal antes, durante e depois da condenação de Lula no processo do Triplex.

O Brasil foi transformado numa prisão em que a ideologia do punitivismo atravessa as paredes da prisão para penetrar a sociedade como um todo.

Nas ruas o ódio ao PT se transforma em ódio aos gays, aos negros, aos índios, à natureza, aos pobres, aos favelados, aos pedintes. É possível estruturar a sociedade com base na amizade (Aristóteles) ou na devoção à mesma divindade (como acreditaram os fundamentalistas cristãos e islâmicos desde a Idade Média). Também é possível estruturar a sociedade com base no ódio ao “outro” (o nazismo dos anos 1930, o americanismo triunfalista de Donald Trump). Mas não é possível estruturar a sociedade com base no ódio puro e simples, como aquele que vem sendo difundido pelo clã Bolsonaro e que encontrou solo fértil na sociedade brasileira em virtude do ódio que a imprensa continua destilando diariamente ao PT.

O empresário agredido e mutilado é uma vítima do bolsonarismo e do punitivismo. A integridade física e moral dele teria sido preservada se os “outros” (os prisioneiros comuns que são objeto do desprezo e do ódio de Jair Bolsonaro e dos juristas olavistas) cumprissem suas penas dentro dos limites estabelecidos pela legislação. Ponto para juristas Alexandre Moraes da Rosa e Salah H. Khaled Jr.:

“A pena não pode ser mais do que a lei diz que ela deve ser. Qualquer nível de dor experimentado para além das restrições normativamente impostas é ilegal. Precisamos colonizar a pena privativa de liberdade. É território inóspito, selvagem. Puro poder punitivo exercido de forma irrestrita, antidemocrática e bárbara. Precisamos abandonar a busca metafísica por uma resposta correta ao ‘porque punir?’ e pensar ‘como punir’.” (In Dubio Pro Nell – profanando o sistema penal, Editora & Livraria Jurídica, Emais, 3ª edição, florianópolis, 2018, p. 120)

As empresas de comunicação brasileiras criaram um monstro e serão devorados por ele. Não, eu não estou me referindo a Bolsonaro. Ele é um fenômeno transitório. O monstro que está sendo alimentado diariamente é a pobreza jornalística que se difude do ódio ao PT e que alimenta o ódio de todos contra todos por qualquer motivo pueril.

O empresário precisava realmente agredir a pedinte? Não. O sucesso dele se transformou em fracasso no exato momento em que ele foi dominado pelo ódio. Tudo o que está ocorrendo no Brasil (inclusive as agressões gratuitas do empresário à pedinte e aquelas que ele sofreu na prisão) podem ser considerado o fruto podre do ódio em estado bruto destilado diariamente pelo jornalismo de guerra ao PT. E nem mesmo as ameaças de torturas, prisões e assassinatos em massa, que tem sido feitas e reiteradas pelo clã Bolsonaro, são capazes de convencer os jornalistas que eles seguem o caminho da perdição. Quando começarem a ser encarcerados eles serão recebidos com flores por detentos embrutecidos pelo sistema prisional brasileiro?

Quando consegue se estruturar politicamente como poder dominante o sadismo não pode admitir qualquer concorrência, seja ela real ou simbólica. Aqueles que triunfam num regime criminoso se tornam tão criminosos quanto os seus líderes. Os que caírem em desgraça e sobrevivem para contar a história emergirão como heróis incontestes do combate à tirania. Eticamente distintas, as escolhas que os jornalistas têm diante de si são semelhantes num ponto: sofrimento num futuro distante que pode ser neutralizado, martírio num futuro próximo possível.

O Brasil não é uma doença sem cura. Mas a valorização da pedagogia da opressão e do assassinato não resolverão nossos problemas dentro e fora dos presídios.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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