Saia Injusta: precisamos falar sobre as telenovelas, por Vinicius Canhoto

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Foto: TV Globo

Por Vinicius Canhoto

O comentário da atriz Taís Araújo, embora autocensurado pela própria, em tom até demasiado autocrítico, mas que revela o vazio e a superficialidade da obra de um dos mais consagrados e festejados autores globais: Manoel Carlos. Este comentário da atriz vem muito ao encontro do tema José Mayer. Porque foram em várias novelas deste autor, que o ator construiu a imagem, que agora foi desconstruída. A imagem de homem viril e conquistador não saiu da cabeça do ator assediador, mas foi criação de um autor de teledramaturgia que utilizou a variante do personagem inúmeras vezes. Da mesma forma que em incontáveis vezes criou personagens femininas com o mesmo nome. 

 

Não podemos menosprezar a importância da telenovela no imaginário popular, da mesma forma que sabemos o quanto o futebol está presente na nossa cultura cotidiana. Embora as telenovelas não tenham a mesma audiência das décadas de 70, 80 e 90, elas ainda são um meio de propagação e intercâmbio cultural. Durante décadas foi através das telenovelas que a burguesia brasileira transmitiu sua cultura e valores para a massa. É bastante interessante ver o quanto já se gastou em caracteres escritos para analisar o Jornal Nacional e o quão pouco se escreveu sobre as fatias do pão. Porque é impossível não associar a programação da TV Globo a um sanduíche como o Big-Mac. As novelas são o pão que alimentam cotidianamente, enquanto os telejornais são a proteína, o queijo e a salada que dão o sabor e recheio ideológico à programação. Da mesma forma que o imperialista sanduíche, construído não apenas como uma composição de sabores, mas como uma concepção de mundo, a grade teledramatúrgica global é montada de forma harmonizadora com a jornalística para criar uma determinada visão de país e sociedade.

Neste aspecto, os folhetins de Manoel Carlos sempre foram o encontro entre a mão e a luva. Geralmente, suas tramas e seus dramas se passam no eixo Leblon-Ipanema-Copacabana quando vai mais longe chega à Barra da Tijuca. Destes bairros são extraídos seus tipos humanos e suas Helenas como se estas regiões fossem uma espécie de Atenas. A mesma crítica serve para autores paulistas que querem transformar o Bexiga ou a Mooca em uma Roma Antiga. Mas vamos nos concentrar em Manoel Carlos. Recordo-me de um diálogo de uma personagem menor, de alguma de suas novelas, que ao criticar o Rio de Janeiro para o pai, que era representado por Tony Ramos, falava da qualidade de vida em São Paulo, citando como exemplos Granja Vianna e Alphaville. Ou seja, este é o mundinho Manoel Carlos. Neste mundo, além do suposto galã de meia-idade irresistível, existiu um personagem misógino, agressor, que se utilizou até de uma raquete de tênis para agredir sua parceira. No ano passado, vi um incomodado Dan Stulbach no palco, tendo responder a um homem na platéia se na peça haveria: “Raquetada”.

O ator convidou a platéia a refletir sobre a questão, perguntou ao seu interlocutor se ele se recordava o ano da novela. Claro que o espectador que fez a pergunta não se recordava, como provavelmente todos na platéia não se recordavam. A partir deste esquecimento cronológico, o ator buscou relativizar. Disse que as cenas com de agressão com a raquete foram duas cenas, que somando o tempo de duração não chegavam há doze minutos; disse que a novela passou há quinze anos, ou seja, são duas cenas, de doze minutos, feitas há quinze anos… Coloco aqui reticências porque foi assim que o ator terminou a questão, deixando para o público pensar a respeito da permanência de determinadas cenas no imaginário. O que cabe aqui nós pensarmos é na permanência das cenas da raquete, criadas por Manoel Carlos, depois de tantos anos passados.

Em uma época em que o termo “narrativa” saiu da teoria literária e partiu para a política, precisamos pensar não apenas as “narrativas”, como os autores destas. Os atores, com o perdão da palavra, são os “cavalos” (em sentido afro-religioso) que incorporam as personagens que lhes são legadas pelo texto, pelo soldo, e lhes dão vida e verossimilhança. Alguns atores como Taís Araújo e Dan Stulbach tiveram senso crítico e maturidade para perceber os limites e o vazio político de suas personagens e se afastarem o máximo possível deste vaticínio, outros, como José Mayer (talvez) tenham acreditado na narrativa e de forma narcisista se visto sendo irresistíveis brancos de meia-idade, eternos e onipotentes como os personagens fúteis, vazios e coisificados de Manoel Carlos.

Estamos vivendo em uma época em que pessoa e a persona se confundem sem saberem onde começam a pessoa e onde terminam a personagem. Neste contexto, como bem observa em seu blog a jornalista e escritora Nina Lemos, “é muito simbólico saber que o ‘galã’ na verdade era um assediador justamente nesse momento em que as mulheres do Brasil dizem não para a cultura machista”. Também é muito simbólico a atriz Taís Araújo fazer críticas, que muito mais que expor o limite de seu trabalho (“Aquele texto não me dizia nada, eu me sentia a professora do Snoopy”) expôs não as limitações na atuação da atriz, e sim o vazio dramático do autor: “Eu não fazia bem, e não sei se tinha como fazer”. A vida, palavra tanta vezes utilizadas por Manoel Carlos em seus títulos pouco sugestivos, revela que não imita a pseudo-arte e que não há mais lugar na realidade para o obsoleto “macho-mulherengos de meia-idade” tampouco para “mulheres vítimas de raquetadas”.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

12 Comentários

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  1. cópia

    Conforme falou Jung, “todos nascemos originais e morremos cópia”. Seria interessante algum leitor do blog, psicologo ou psiquiatra comentar algo.

    Tanto as novelas quanto as produções hollywoodianas, fabricam todas as variáveis de tipos (inofensivos) ao sistema o tempo todo. Quantas “personagens” não vemos diariamente no trabalho e em todas as reuniões sociais por ai? Quanto de nós mesmos não são parte de modelos que nos foram “vendidos”  e adotamos inconcientemente como bom exemplo?

    Somos todos estimulados o tempo todo a pensar a vida de forma que estimule a competição e o consumo! O “sucesso” é medido, não pelo que você faz, mas por quanto dinheiro você ganhou!

    “Corra atrás do seu sonho”! Enquanto você cresce, progride, tem sepre um Banco ou um rentista para te “auxiliar”! Quando você quebrar, como na dança das cadeiras , entra outro sonhador no seu lugar.

     

     

  2. cópia

    Conforme falou Jung, “todos nascemos originais e morremos cópia”. Seria interessante algum leitor do blog, psicologo ou psiquiatra comentar algo.

    Tanto as novelas quanto as produções hollywoodianas, fabricam todas as variáveis de tipos (inofensivos) ao sistema o tempo todo. Quantas “personagens” não vemos diariamente no trabalho e em todas as reuniões sociais por ai? Quanto de nós mesmos não são parte de modelos que nos foram “vendidos”  e adotamos inconcientemente como bom exemplo?

    Somos todos estimulados o tempo todo a pensar a vida de forma que estimule a competição e o consumo! O “sucesso” é medido, não pelo que você faz, mas por quanto dinheiro você ganhou!

    “Corra atrás do seu sonho”! Enquanto você cresce, progride, tem sepre um Banco ou um rentista para te “auxiliar”! Quando você quebrar, como na dança das cadeiras , entra outro sonhador no seu lugar.

     

     

  3. Eu acho “engracado” como

    Eu acho “engracado” como brasileiro discute raquetada em telenovela como se fosse a coisa mais normal do mundo…

    A ultima novela que assisti foi Eramos 6.  TODOS os personagens estrangeiros eram ladroes, pilantras, ou pateticos.  Ate hoje eu sou a unica pessoa que se lembrou de notar a xenofobia explicita da novela!  Deve ser coisa “normal” tambem.

  4. Doutrinação futebol.

    Como citado no texto, também o futebol com sua lógica, tem uma parcela muito significativa na construção da personalidade do povo brasileiro.

    Discussões “clubísticas” sobre politica, dispensando o embasaento lógico, são a maioria em todos os lugares possíveis de se comentar algo.

    A percepção/confusão de entender o  ÁRBITRO, inquestionável do futebol, com o JUIZ, que tem que obedecer as leis e constituição.

    Parece besteira, mas fazem parte sim da construção do inconciente nacional.

  5. Cuba desde há muito tempo,

    Cuba desde há muito tempo, desde a Escrava Isaura, é uma grande consumidora de novelas da Globo.

    Tempo atrás estava vendo documentário sobre Cuba, da época que por lá foi liberado aqueles pequenos restaurantes caseiros, quando o documentarista se apresentou como brasileiro para uma senhora ela ficou toda sorrisos…Ah del Brasil, assisto todas las novelas del Brasil…mui lindas….Na ocasião estava passando uma novela que não lembro o nome com a Juliana Paes.

    Vai ver é por causa das novelas brasileiras que Cuba está virando capitalista.

  6. RAQUETADA

    Olhar para o Dan Sthubart a qualquer tempo e`  se lembrar da raquetada.

    Culpar a exigencia de personagem pelo carater pessoal canalha do ator pode ser conveniente mas so evidencia a canhalhice.

    Numa novela destas, o indigitado ator assediador de camarim interpretou uma personagem bisexual, machista, que mantinha um amante louro e jovem nas horas vagas enquanto pousava de bom marido, executivo bem sucedido e pai extremado.

    Quando seu “romance“ foi exposto, ele apenas deu um pontape` no amante, que na verdade  o amava e confiava que pudesse ter uma oportunidade futura no mundo artistico (era essa a isca que usava para atrair seus amantes).

    A maneira com que o ator interpretou o papel me incomodou. Ele via com legitimidade o abandono a que relegou o amante bem como o seu direito de posar e usufruir de sua fachada de marido com a devida conveniencia da esposa, a quem dizia amar. O amante foi parar na sarjeta, comendo no lixo e somente com a ajuda da esposa da personagem que o cara representava conseguiu sobreviver, para – imagine – ser perdoado e voltar `as boas com o amante.

    Tudo muito natural e esquisito para o macho de novela que parecia estar interpretando a si mesmo.

    Assim, nada surpreende nas atitudes privadas do jose mayer.

     

  7. Expulsar os poetas da república de novo!

    As bobagens não têm fim: “Durante décadas foi através das telenovelas que a burguesia brasileira transmitiu sua cultura e valores para o povo”. 

    De onde vem tantas bobagens e besteiras que ultimamente sobre esse título “precisamos conversar sobre …”.

    A forma desses títulos, que remete a uma conversa, não a uma análise, conversa de buteco ou de porta de condominio de pobre ou de rico, é doxa. 

    Quanto aos argumentos, coisas absurdas:

    1°) o povo, seja lá o que isso quer dizer, é puro: não nasceu sob o signo do pecado original, ou se foi, A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire o redimiu; 

    2°) assédio e galãs, somente existe no meio da burguesia: no meio do povo não existem homens com duas famílas, não há com homens casados e com amante, não existim adultério;

    3º) metáforas infantis e inutis: TV Globo é sanduiche, pão é novela, telejornais são proteinas; ora, o que as novelas fazem é exercitar, num aspecto particular, relação homem e mulher, a libido e eros, no jogo de sedução, é psique enquanto id freudiano;

    4°) imaginário, outro conceito imprestável e semi-idealista como um arquitipo platônico – sabe-se lá o que é imaginário, também, o que é isso: seja com Bordeiu, ou Durand, mas ambos possiveis de serem batidos a partir de Kant e Freud;

    5°) Vinicius Canhato, ingenuamente, bom moço por certo, repete Platão na República – o que depois a Igreja Católica fez na Idade Média – expulsar da vida o Drama e a Comédia; isto contra Aristóteles que afirmou o Drama como purgante da alma. 

  8. Em quantas novelas só na globo teve violência contra mulheres?

    Se não todas, quase todas. É algo de criação e geração cultural mesmo. Assim como as pessoas “apendem” a gostar das meias de dancing days (novela dos anos 70), em muitas outras novelas elas simpatizam com o personagem que dá uma surra na “mulher chata”. Alimentaram isto em busca de ibope e dos cobres.

  9. Telenovelas…

    Há quem queira relativizar o assunto, mas convenhamos: essas novelas são o fim da picada. Não acrescentam um mínimo do que seja aproveitável na vida de qualquer pessoa. Digo mais: reforça a cultura do racismo, consumismo fútil, sexismo, frivolidades de toda espécie, a pasteurização da cultura, e mais: os valores que rede globo QUER que tenhamos…
    Um mundo de faz-de-conta que anestesia a consciência das pessoas e subliminarmente, ou não, impõe gostos e “modas”. Ou seja: a vida social, e a estética noveleira, pra vida.
    Mas falar disso, é pregar no deserto…
    Seria engraçado, se não fosse trágico. Os gostos e costumes de um país continental e de uma cultura outrora riquíssima, ditados pela cultura noveleira. E nem sequer dão por isso…
    Pobre povo, pobre país…
    Que tragédia.

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