Daniel A. Dourado
Médico e advogado sanitarista, professor universitário e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP. Doutorando e mestre pela Faculdade de Medicina da USP, especialista em Direito Administrativo pela FGV Direito SP, graduado em direito pela USP e em medicina pela UnB. Atua na área de Saúde Pública, com foco em Direito Sanitário, Políticas de Saúde, Direito Regulatório e Saúde Digital. Cofundador do centro de pesquisa independente HealthTech & Society.
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Saída de ministro revela pressão por uso irresponsável e ilegal de medicamento, por Daniel Dourado

Uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 sem comprovação científica é manifestamente ilegal

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Saída de ministro revela pressão por uso irresponsável e ilegal de medicamento

por Daniel A. Dourado

O que já era muito ruim, ficou ainda pior. A segunda troca do titular do Ministério da Saúde em menos de um mês expõe a desorganização do governo brasileiro, considerado por muitos analistas – incluindo este que aqui escreve – o pior do mundo no enfrentamento da pandemia de Covid-19. Mas além da instabilidade política durante a mais grave crise econômica e sanitária do século, a saída de Nelson Teich após 28 dias à frente da pasta da saúde revela pressão do presidente de República para a adoção de medida temerária e contra a lei: a criação de protocolo para uso de cloroquina na doença causada pelo novo coronavírus.

A cloroquina e a hidroxicloroquina são drogas utilizadas há muitos anos para tratamento de malária e doenças reumáticas. São medicamentos cuja segurança e eficácia estão bem definidas para essas indicações clínicas e que apresentam efeitos adversos também conhecidos, alguns potencialmente graves, como arritmias cardíacas. Por estarmos vivendo uma pandemia, cientistas do mundo todo têm se empenhado para encontrar algum tratamento para a Covid-19, inclusive testando muitos medicamentos – a cloroquina é apenas um deles.

A avaliação de segurança e eficácia de drogas para tratamento de doenças é feita mediante resultados de estudos científicos chamados ensaios clínicos randomizados. Na pandemia de Covid-19, estão sendo realizados vários desses estudos com diversas drogas, como antivirais e imunossupressores, mas até o momento nenhum demonstrou eficácia para tratamento da doença. É importante dizer que o Ministério da Saúde reconhece em publicações oficiais que ainda não há evidências de que nenhuma droga seja segura e eficaz contra a Covid-19.

Mas, por razões políticas, a cloroquina e a hidroxicloroquina ganharam projeção e passaram a ser considerados possíveis tratamentos mais promissores para combater o novo coronavírus, mesmo sem comprovação científica. Jair Bolsonaro tem insistido na ideia de que essas drogas deveriam ser usadas em todos os pacientes, desde o início do tratamento, e vem pressionando o Ministério da Saúde para definir protocolo para isso no SUS.

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta cedeu e decidiu liberar o uso de cloroquina como se fosse um tratamento estabelecido para casos graves de Covid-19. Sem segurança e eficácia estabelecidas, no último mês de abril, o Ministério da Saúde publicou uma nota técnica com um protocolo clínico e anunciou a distribuição de mais de três milhões de unidades do medicamento às Secretarias Estaduais de Saúde. Não sabendo se o medicamento de fato auxilia no tratamento, pacientes começaram a ser submetidos ao risco de efeitos adversos do uso dessas substâncias.

O então ministro Teich adotou uma postura vacilante desde o começo de sua curta gestão. Ao mesmo tempo em que afirmava privilegiar as evidências científicas, não demonstrou ter condição política para revogar o protocolo assinado por seu antecessor. Pelo contrário, passou a ser pressionado para alterar o protocolo a fim de incluir também o uso de cloroquina nos casos leves de Covid-19, como se fosse um tratamento reconhecido.

Numa intrigante coincidência, o Ministério Público Federal (MPF) no Piauí ajuizou uma ação civil pública contra a União, o estado do Piauí e o município de Teresina pedindo a incorporação imediata de um suposto protocolo clínico para uso de hidroxicloroquina em estágios iniciais da Covid-19 e a disponibilização desse medicamento no SUS em todo país. Essa ação, que ainda vai ser julgada, é completamente descabida. O MPF cofunde conceitos e usa relatos de especialistas e descrição de série de casos, chegando ao cúmulo de colocar vídeos com depoimentos de médicos como suposta evidência científica de eficácia desse tratamento. Um caso judicial que tem tudo para se tornar folclórico, mas que pode ter graves implicações para sistema público de saúde.

Um dia depois de essa ação ter sido ajuizada, o agora ex-ministro Teich pediu demissão do governo e há indícios de que a pressão do presidente para a adoção desse protocolo tenha sido determinante. Como ainda não há evidências de segurança e eficácia para uso de cloroquina e hidroxicloroquina para tratamento da Covid-19, seu uso em pacientes com sintomas leves – cerca de 80% dos casos – pode trazer riscos desnecessários, como o de precipitar arritmia cardíaca em alguém que não precisaria de remédio nenhum pela evolução natural da doença.

E além de imprudente do ponto de vista médico, o uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 sem comprovação científica é manifestamente ilegal.

O registro de medicamentos é obrigatório no Brasil e tem como requisito que o produto, através de comprovação científica e de análise, seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se propõe (Lei 6.360/1976, art. 16, II). Fora do uso registrado pela Anvisa, trata-se do chamado uso off label, que é a prescrição de tratamento medicamentoso com finalidade além da indicada na bula. Isso é essencialmente o que Conselho Federal de Medicina (CFM) reafirma no parecer sobre o uso de cloroquina e hidroxicloroquina na Covid-19: não agem ilegalmente os médicos que prescrevem esses medicamentos para pacientes diagnosticados com Covid-19, desde que assumam a responsabilidade e tenham consentimento livre e esclarecido desses pacientes.

Mas a adoção de protocolo clínico e diretriz terapêutica sem comprovação científica contraria a Lei Orgânica da Saúde. Pelo procedimento previsto na lei, a atribuição é do Ministério de Saúde e exige o assessoramento da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), considerando as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento (Lei 8.080/1990, art. 19-Q).

Além disso, a lei recentemente aprovada pelo Congresso para o enfrentamento da pandemia de Covid-19 também estabelece que quaisquer as medidas que sejam adotadas, como a determinação de realização compulsória de tratamentos específicos, somente poderão ser feitas com base em evidências científicas (Lei 13.979/2020, art. 3º, § 1º).

Ou seja, o Ministério da Saúde não pode definir protocolo clínico de hidroxicloroquina para Covid-19 e distribuir o medicamento na atual situação, porque a lei exige comprovação científica. É obrigação legal das autoridades sanitárias zelar pela segurança e eficácia dos medicamentos disponibilizados à população. O uso off label é situação excepcional e não deve integrar protocolos e diretrizes terapêuticas oficiais.

Talvez isso explique a decisão de Nelson Teich de abandonar o “governo”, agravando o caos que já reinava no combate à pandemia no país. Resta saber quem vai aceitar assumir a pasta da Saúde nessa condição tão arriscada política e juridicamente. Parece que já tem general e até terraplanista se apresentando para a missão. A impressão é que o fundo desse poço nunca chega. O povo brasileiro não merece isso.

Daniel A. Dourado – Médico, advogado, professor universitário e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa/USP)

Daniel A. Dourado

Médico e advogado sanitarista, professor universitário e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP. Doutorando e mestre pela Faculdade de Medicina da USP, especialista em Direito Administrativo pela FGV Direito SP, graduado em direito pela USP e em medicina pela UnB. Atua na área de Saúde Pública, com foco em Direito Sanitário, Políticas de Saúde, Direito Regulatório e Saúde Digital. Cofundador do centro de pesquisa independente HealthTech & Society.

3 Comentários

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  1. A industria GILEAD, fabricante do produto, foi presidida pelo RUMSFIELD, que também foi vice no governo dos USA Inc., aquela colonia sionista khazarian também conhecida com Estados Unidos da América. A empresa vêm tentando ampliar suas vendas em todo o mundo, mesmo sabendo que seu produto não possui nenhuma eficácia contra o virus COVID-19. Mas não importa o resultado. Importante é vender seu produto-lixo. Assim, propõe altas comissões aos seus “parças” em todos os países onde atua. No caso do Brasil, deve estar afinado com o Bostanauro e sua equipe, em virtude da insistência do mesmo em impor a droga para combater o virus, mesmo sem aprovação dos médicos ligados ao Ministério da Saude. Mesmo os titulares do Ministério da Saude não aceitam tal imposição e preferem se afastar do cargo, para não comprometerem sua credibilidade profissional, atitude digna e coerente.

  2. Quem é o proprietário do laboratório que detem os direitos da fabricação do remédio Reuquimol (a base de Cloquina)? Esse empresário possui ligação com o bolsonarismo? Perguntas a serem pesquisadas e respondidas pela imprensa.

  3. Penso que procurar interesses econômicos relativos à venda da cloroquina por trás da insistência de Trump e Bozo no uso do medicamento não é promissor, visto que é um produto barato com patente expirada há muito.
    Há sim interesses econômicos e políticos, mas são de outra natureza. Vende-se ao povo a ilusão de uma cura milagrosa, para mascarar a brutal incompetência e justificar o fim do isolamento social, que afeta profundamente a economia e os lucros.
    O que sabemos sobre a cloroquina?
    Temos, por um lado, o tipo de relato que em inglês é chamado de “anecdotal”, ou seja, não baseados em pesquisas e fatos científicos. Esses relatos não devem ser, evidentemente, desconsiderados, mas o seu interesse reside basicamente em sugerir caminhos para a pesquisa científica propriamente dita. Esses relatos podem vir de médicos e mesmo de pesquisadores. Isso não altera seu caráter “anecdotal” (não me vem à mente uma tradução adequada da palavra). Aliás, os relatos dos médicos clínicos são altamente considerados pelos pesquisadores. Basta constatar, nas publicações que adotam a revisão por pares aberta (como o Qeios), o respeito que os cientistas têm pelos clínicos. E não é apenas por serem estes que lidam com os dramas humanos da doença, o que não é para todo mundo, convenhamos. Conheço casos, inclusive, de médicos que foram para a pesquisa por não serem capazes de suportar o sofrimento do doente.
    Nem todos os espíritos, no entanto, são sensíveis a necessidade da pesquisa. Muitos procuram na ciência apenas a legitimação naquilo que acham que sabem (por intuição ou, quem sabe, inspiração divina?).
    Por outro lado, há as pesquisas. O que elas nos dizem?
    1) Cloroquina aplicada em pacientes graves: NÃO há indicações de que funciona.
    2) Cloroquina utilizada nos estágios iniciais da doença: NÃO há indicações de que funciona.
    3) Cloroquina utilizada ANTES da infecção (pacientes que já utilizavam o remédio para outros fins): NÃO há indicações de que funciona.
    Abstenho-me de indicar a literatura, pois ela está referida em muitos lugares (Folha, etc.). Todos esses estudos científicos estão sujeitos a qualificações, evidentemente. Ignorá-los, privilegiando os simples relatos, não tem sentido.

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