Sangue novo no panorama editorial
por Walnice Nogueira Galvão
Uma nova geração de editoras mulheres, preparadíssimas, com títulos universitários e muita garra, está mudando a figura do panorama editorial e do próprio objeto-livro. Mais admirável ainda é que, de conteúdo erudito e da maior competência, o novo livro também seja um objeto gráfico de primeira linha, quase que de luxo – se o alvo fosse esse. Não é à toa que a toda hora ganham prêmios. Para completar, estas editoras não disputam os holofotes, são modestas e sérias trabalhadoras. Vamos ver alguns de seus feitos.
O primeiro livro vem da editora Florear, de Londrina, pertencente a Cassia Leslie. Trata-se de Na companhia de Bela: Contos de fadas por autoras dos séculos XVII e XVIII, de Susana Ventura. Resultado de pesquisa nos arquivos da França, já se vê que traduzir a língua dessa época exige perícia. Pequenos estudos, introduções e apresentações das contistas, tudo impecável, acompanham a matéria. Aprendemos que, conforme vetusta prática patriarcal, o conto de Perrault A bela e a fera não é de Perrault, mas de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, e que Perrault apenas o perfilhou em sua famosa antologia. As autoras foram apelidadas de preciosas, escritoras cultas que presidiam salões e – que atrevimento!- se consideravam em pé de igualdade com os homens. Foram alvo do sarcasmo de Molière na peça As preciosas ridículas. E uma delas cunhou o título do gênero, batizando-o: “conto de fadas”.
O livro de agora, que é resultado da colaboração entre três mulheres (autora, editora/co-tradutora, ilustradora), é uma beleza. A começar pela capa, que é encadernada, rija, e por isso vai aguentar muito manuseio; o papel é um Polen de primeira. O livro inteiro é iluminado com lindas ilustrações inéditas, da autoria da arquiteta e estudiosa da cultura infantil Roberta Asse, que também comanda o projeto gráfico.
O segundo a ser destacado é a nova tradução publicada pela Ubu do Popol Vuh, o livro sagrado do povo maia, e, dizem, um de apenas quatro que escaparam à sanha incendiária dos conquistadores espanhóis. Até há pouco era negado que os maias tivessem escrita, e uma escrita em tudo paralela à egípcia, ou seja, são hieróglifos combinando imagens com sílabas (ou glifos logossilábicos). A partir de sua decifração, a história da América pré-colombiana está sendo reconstruída.
A tradução de Josely Vianna Baptista a partir do original em língua quiché é devidamente escorada por uma erudita apresentação, que explicita suas opções. O volume traz estudos de especialistas e finíssimos desenhos, que transpõem com respeito a exuberante iconografia maia. E mais mapas, bibliografia, índice de documentos – tudo isso tornando este livro, em papel Polen e capa cartonada tal como o anterior, uma obra de arte irretocável. A editora é a premiada Florência Ferrari, criadora da Ubu.
O terceiro aqui comentado é o Livro do Armazém. Num trabalho com todos os cuidados científicos, uma equipe especializada transcreveu o livro contábil da fazenda do Pinhal. Tudo sob a coordenação editorial de Marta Garcia, experiente profissional egressa de longos anos na Companhia das Letras. As transações da casa de secos e molhados que funcionava na fazenda são escrupulosamente registradas ao longo de várias décadas, assim constituindo precioso instrumento para pesquisas. O belo volume apresenta-se em tamanho maior que o normal e em material da melhor qualidade. Marta Garcia agora dirige a Editora Chão, devotada a publicar textos raros.
Acrescentamos a esses livros o lugar especial onde estão disponíveis: a nova Livraria e Cafeteria Mandarina. Pertencente a duas intrépidas jovens, Daniela Amendola e
Roberta Paixão, é dedicada à causa dos livros, das mulheres e do combate ao obscurantismo. A livraria funciona como um animado centro cultural, oferecendo festas de lançamento, cursos com conferencistas abalizadas(os), noites de cinema, batepapos, rodas de conversa e muitas maravilhas mais. Elas gostam de livros, entendem de livros e põem em sua mão os livros que você desejar, por mais difícil que seja desencavá-los. A sede fica num aconchegante bangalô em Pinheiros, à rua Ferreira de Araújo, 373. Quem for uma vez, vai ficar fisgado(a).
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.