Seguuuuura, Über Boy!!, por Beatrice Molotov

Seguuuuura, Über Boy!!

por Beatrice Molotov

Puxei assunto com o rapaz do Uber sobre a música que ele estava ouvindo. Era boa música popular e ele me disse que era típica de vaquejada. “Afinal, está proibida ou não a vaquejada?”, eu perguntei. Respondeu-me que foi regulamentada com restrições sobre a quantidade de areia no chão, esporas sem pontas, cuidados para não quebrar o rabo do animal, etc. Que agora o bicho não sente dor. Que está tudo certo. Tudo certo? Não sente dor? Pensei em rebater cada ponto, mas já previa a hora em que diria “pois me dê essa espora sem ponta para eu descer no seu lombo. Aí você me fala sobre dor”. Resolvi frear o impulso. “Certo seria deixar os bichos pastarem em paz, em vez de maltratar os pobres pra algum filho da mãe ganhar dinheiro”, eu disse, bastante azedo. “Mas é uma tradição”, ele ainda lançou. “Exatamente. E isso é o pior!” encerrei o assunto.

Breve silêncio. Conversei amenidades. “Não tinha um bar nessa esquina?” Olhei o carro e enfim percebi que era bastante caro (nunca reparo o carro das pessoas até que me dêem motivo pra esse tipo de raio-x). “Tinha. Deve ter fechado recentemente”. Olhei o cara. Ele próprio também parecia bastante caro. Roupas caras, corte de cabelo caro, relógio cafona, provavelmente caro. Ele puxou assunto se queixando de passageiros que não conversam. Muitas vezes não dão sequer um bom dia. “Eu sei que você tá reparando. Entende? Quero dizer, você tá olhando quem tá dirigindo. Muita gente não olha na minha cara”. Tinha nessa queixa uma certa perplexidade sobre a condição dos prestadores de serviços no Brasil. O boy bonito, branco, de classe média, que resolveu complementar a renda dirigindo Uber, estava experimentando pela primeira vez na vida a invisibilidade.

Já suspeitava desse sentimento de desconforto em alguns outros motoristas, mas este abriu o jogo. “Não sou taxi! A pessoa entra no meu carro e eu tô levando ela como se fosse uma carona, sabe?”, ele disse indignado. Sim, o Uber se anunciou como um aplicativo de caronas. Mais informal. Por isso muitos jovens da classe média que nunca trabalharam fora de suas áreas de interesse se dispuseram a experimentar. Não é como estar empregado no comércio por exemplo, ter patrão, uniforme, horário… Uber é cool! Atende de forma descontraída a necessidade de trabalho de pessoas que não se reconhecem da classe trabalhadora e portanto não querem um “emprego”. Esses são empreendedores! Buscam essa “renda alternativa” para bancar “projetos próprios”. Morar só, pagar faculdade, abrir um negócio, viajar ou levar a namorada à uma vaquejada. Serem tratados como sempre trataram o taxista os surpreende e revolta. Bem vindo à realidade!

Entramos na avenida que segue para a minha casa. Resolvi encaminhar o papo dele para algum desfecho. Montei meu cavalo, “pois é, as pessoas acham que porque estão te pagando, você não é gente”. Entrei na arena, “nesse mundo quem não é patrão, é tudo gado”. A porteira abriu-se e ele saiu pinotando: “Por isso que eu quis ser meu próprio patrão”. Avancei no trote, “Desculpe, mas o patrão é a Uber. Você é empregado…”, emparelhei com o bicho, “…patrão é o cliente, patrão é o dinheiro dele…”, agarrei o rabo, “…esse é um trabalho como os outros, cheio de desumanidades como todos os outros” girei o punho, “podem tirar as pontas das esporas e afofar a areia, mas não têm como diminuir a dor dos maus tratos”, derrubei o animal.

Chegamos ao meu endereço, paguei a corrida e desci: “Boa noite, companheiro. Bom trabalho!”

Fortaleza, 19/12/18

Redação

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