Sentenciando Tráfico 2 – o ódio como motivação da atividade judicial, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Sentenciando Tráfico 2 – o ódio como motivação da atividade judicial

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Comentei, aqui mesmo no GGN, a primeira parte do livro de Marcelo Semer. Há alguns dias terminei de ler a obra. Como ocorre algumas vezes, comecei a procurar uma chave que me permitisse abrir o conteúdo complexo e rico da segunda parte do livro para os leitores, especialmente para os leitores leigos (que obviamente não estão familiarizados com os conceitos jurídicos presentes nas sentenças e interpretados pelo autor, ele mesmo um Desembargador do TJSP).

Foi revendo o filme Elegia de Osaka (1936), do cineasta japonês Kenji Mizoguchi, que encontrei minha chave para comentar a segunda parte do livro Sentenciando Tráfico. A cena do filme a que me refiro é aparentemente banal. Levada para a Delegacia de Polícia, Ayako Murai é interrogada por policiais. Durante o interrogatório um deles diz à protagonista do filme a seguinte frase:

“‘Odeie o crime, não a pessoa’, é o que diz a lei.”

No Direito Penal brasileiro não existe nada semelhante. Seria possível recriar esse princípio a partir de outros que existem em nossa legislação, mas essa operação causaria estranhamento. Entre nós, que pertencemos à uma tradição ocidental racionalista, há uma separação marcante entre o universo conceitual jurídico e o contexto emocional em que ele deverá ser aplicado.

O único ponto de contato admitido expressamente entre esses dois campos é aquele em que são estabelecidos os critérios para que um juiz seja considerado suspeito para processar e julgar o réu.

Formulado de uma maneira tão simples e elegante, esse princípio jurídico do Direito Penal japonês me fez perceber qual é o sentimento predominante nas sentenças analisadas por Marcelo Semer.

“As consequências do pânico moral parecem tão contundentes sobre a necessidade de reprimir o tráfico que tem-se a impressão de que em cada processo é o próprio crime de tráfico que está em julgamento, não o réu.” (Sentenciado Tráfico, Marcelo Semer, editoraTirant lo Blanch, São Paulo, 2019, p. 242)

Os juízes odeiam o tráfico. Esse ódio, entretanto, se transfere do crime para a pessoa do réu na medida em que as sentenças analisadas por Marcelo Semer adotam critérios rigorosos e até ilegais tanto para aferir a materialidade do delito quanto para impor a pena.

A obra é extremamente detalhada. Em razão disso farei aqui um resumo das questões jurídicas mais importantes.

O crime de “tráfico de drogas” exige a prova do comércio da mercadoria. Mas na maioria dos casos o ato comercial é presumido pela posse da substância entorpecente. Ao descartar o crime menos grave, inclusive alegando a dificuldade do Estado provar o crime mais grave, os juízes expressam um forte sentimento de rejeição ao próprio réu cuja conduta são obrigados a julgar.

A quantidade de droga apreendida nos processos, salvo alguns casos, é muito pequena. Esse fato aliado à ausência de prova do ato comercial levaria à classificação da conduta como “porte de drogas”. Todavia, isso não ocorre mediante um artifício retórico. Os juízes consideram como sendo “extremamente elevadas” quantias insignificantes e irrisórias de substâncias entorpecentes apreendidas.

Segundo o que se depreende da pesquisa, a esmagadora maioria das sentenças leva em conta apenas o depoimento dos policiais que efetuaram a prisão do traficante. Os depoimentos deles são considerados verdadeiros até prova em contrário. Os depoimentos oferecidos pelas testemunhas do réu são quase sempre descartadas, pois contrariam o que foi dito pelos policiais. Elas são presumivelmente suspeitas.

Primeiro o ódio pula do crime para o criminoso,. Depois ele condiciona a maneira como o juiz enxerga as pessoas que supostamente querem ajudá-lo.

As defesas oferecidas são ignoradas. Lendo algumas transcrições feitas por Marcelo Semer percebemos que os juízes punitivistas consideram que os advogados tentam enganar a Justiça utilizando subterfúgios e tecnicalidades para conseguir a absolvição de culpados. O ódio aos advogados também emerge de algumas sentenças condenatórias.

Ao fixar a pena, os juízes são extremamente rigorosos. Eles ignoram os benefícios legais concedidos aos réus e desprezam até mesmo decisões “erga omnes” de inconstitucionalidade proferidas pelo STF. O ódio que já havia se transferido do crime para o réu, suas testemunhas e advogados avança sobre o universo conceitual jurídico provocando uma corrosão dos próprios princípios que limitam o poder estatal de punir.

Preso em flagrante portando quantias mínimas de entorpecentes, o suspeito é simplesmente triturado como se não fosse um ser humano. A confissão que ele fez na Delegacia (ou aos policiais durante a prisão) são consideradas provas inquestionáveis do comércio de substância entorpecente.

Assim que é capturado pelo sistema de ódio institucionalizado ao tráfico, o usuário de drogas só pode sair dele punido com exagerado rigor. A sentença condenatória apenas confirma o  sentimento que motiva a atividade policial no Brasil.

A missão do juiz, que deveria ser a garantia da legalidade, inclusive e principalmente para reconhecer os limites do poder estatal de punir, sofre uma transformação simbólica em virtude do contágio da emoção que predomina. Ao proferir a sentença ele legitima o ódio policial ao tráfico de drogas inclusive ignorando as agressões que o suspeito sofreu para confessar o crime.

“‘Odeie o crime, não a pessoa’, é o que diz a lei.”

Se algo semelhante fosse expressamente enunciado pela legislação brasileira a maioria das sentenças analisadas por Marcelo Semer seriam inevitavelmente consideradas nulas. Elas só teriam valor jurídico como meio de prova documental do conteúdo emocional inadequado dos operadores de um sistema que poderia muito bem ser chamado de Sistema de Ódio à Justiça.

Existe uma evidência adicional de que o ódio ao réu é o combustível que movimenta a atividade judicial no Brasil. Juízes garantistas como Kenarik Boujikian e Roberto Corcioli tem sido cruelmente perseguidos, punidos e afastados do trabalho porque insistem em decidir processos sem odiar cidadãos submetidos a julgamento em processos criminais. Desde quando a ausência de ódio passou a ser prova de parcialidade?

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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