Sentenciando Tráfico, por Fábio de Oliveira Ribeiro

As relações perigosas entre imprensa e Sistema de (in)Justiça foram delimitadas com cuidado por Marcelo Semer em seu livro.

Sentenciando Tráfico

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Hoje comecei a ler a segunda parte do livro “Sentenciando Tráfico”, Marcelo Semer, Tirant. Até o presente momento encontrei 7 erros ortográficos ou de impressão: páginas 37, 85, 94, 107, 121 (dois erros) e 148. A editora pisou na bola. Não sei se a versão “on line” apresenta os mesmos problemas.

De maneira geral fiquei surpreso com a primeira parte do livro. Na linguagem bolsonarista, a perspectiva que o autor adotou poderia ser chamada de “comunismo jurídico soviético vitaminado”. O “vitaminado” seria uma homenagem irônica ao uso recorrente que Marcelo Semer fez desse vocábulo.

O inventário teórico feito no livro é amplo, profundo e instigante. Alguns dos autores mencionados por Marcelo Semer eu conhecia, outros não. A primeira parte da obra provavelmente ganhará vida própria, pois ela é muito mais abrangente do que o estudo de caso feito na segunda parte.

As relações perigosas entre imprensa e Sistema de (in)Justiça foram delimitadas com cuidado. As consequências políticas, legislativas e criminais dos pânicos morais artificialmente criados por jornalistas foram objeto de atenção teórica e ilustradas por episódios históricos.

Semer fez questão de citar (p. 82/83) como o pânico moral jornalístico criado por causa de Canudos – que resultou num massacre vergonhoso e desnecessário – foi objeto de estudo por Erich Goode e Nachman Ben-Yehuda. Os autores de “Moral Panics and the Media” (2003) fizeram um estudo inédito do episódio que Brasil ou eles apenas citaram autores brasileiros? Essa dúvida pertinente não foi resolvida por Marcelo Semer.

Também é digno de nota o fato do autor de “Sentenciando Tráfico” ter esquecido um detalhe importante: quem convocou o Exército para reprimir os habitantes de Canudos foi um juiz. Isso ocorreu antes ou depois do caso ser transformado num pânico moral? Essa é outra dúvida relevante não resolvida pela obra comentada.

O legado autoritário da colonização, escravidão e repressão às revoltas populares foi revisitado pelo autor. As atrocidades cometidas pela ditadura militar e sua naturalização durante aquele periodo e depois dele foram referidas. Notei, entretanto, a ausência da evolução da população carcerária de 1964 a 1988 e a comparação com o período posterior.

Estimulados pela mídia, estados de negação permitem à sociedade e aos membros do Sistema de (in)Justiça ignorar a Lei e tolerar sofrimentos indevidos impostos aos réus e detentos. O livro explicou de maneira detalhada e satisfatória quais são e que características têm esses estados de negação.

Marcelo Semer não cometeu o erro comum de enquadrar a realidade brasileira num arcabouço teórico estrangeiro.

“… É certo que os traços mais pungentes do neoliberalismo aportaram por aqui com os estandartes da globalização, especialmente a partir do governo Collor, logo após a promulgação da Constituição de 1988. Mas também não se pode dizer, propriamente, que a emergência do neoliberalismo explodiu o Estado de bem-estar. O momento de maior alavancagem da população prisional deu-se justamente no governo Lula, sucedendo e de certa forma, parcialmente estancado, reformas neoliberais iniciadas nos oito anos de FHC. O hiper-encarceramento aqui não se dá quando os benefícios sociais são eliminados (como a curva de diminuição do AFDC, principal benefício norte-americano a famílias pobres, lembrada por Wacquant), mas justamente quando são fortalecidos.” (Sentenciando Tráfico, Marcelo Semer, Tirant lo Blanch, São Paulo, 2019, p. 51/52)

Transcrevi essa passagem por vários motivos. O fragmento exemplifica como a realidade é sempre mais complexa do que supõe os militantes de esquerda e de direita.

Programa social incivil alternativo, o aprisionamento em massa de brasileiros durante os governos do PT pode ser considerado um consenso político-partidário forjado naquele período? Seria interessante saber se essa questão delicada saiu do controle dos presidentes petistas ou se eles fizeram um “acordo com o Supremo, com tudo” para melhorar a situação da população em geral enquanto o Judiciário enchia os presídios de pessoas consideradas inúteis e descartáveis pelos neoliberais.

O compromisso de Marcelo Semer com os fatos e a interpretação deles sem um viés partidário é evidente. Portanto, os juristas bolsonaristas – essa expressão paradoxal parece ter sido criada por um escritor de literatura fantástica – cometerão outro erro se tratarem o autor do livro como um famigerado “comunismo jurídico soviético vitaminado”.

Seria interessante saber como o livro foi recebido pelos juízes, especialmente por aqueles que proferiram as sentenças pesquisadas. Não ficarei surpreso se, como ocorreu no caso de Rubens Casara, o autor de “Sentenciando Tráfico” for acusado de maleficiis no CNJ.

https://jornalggn.com.br/justica/o-pos-cnj-e-acusacao-de-maleficiis-feita-contra-rubens-rr-casara/amp/?__twitter_impression=true

O mérito do livro de Marcelo Semer é idêntico ao do que foi publicado pelo seu colega carioca. “Sentenciando Tráfico” e “Estado Pós-Democrático” são livros complementares e fadados a ser considerados incomodos e inoportunos pela maioria dos membros do Sistema de (in)Justiça brasileiro. Se fossem bem recebidos pelos juízes punitivistas ambos seriam irrelevantes.

“Sentenciando Tráfico” não é um livro que se fecha dentro do universo jurídico. Ao contrário, ele se abre para diversas disciplinas abrindo-as para aqueles que se limitam a estudar Direito e o Sistema de (in)Justiça brasileiro. Jornalistas, sociólogos, juristas e estudantes de ciências sociais em geral deveriam considerar essa obra uma leitura indispensável.

Fábio de Oliveira Ribeiro

3 Comentários

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  1. Atualmente está difícil ler qqer coisa com tanto erro ortográfico. Para começar pelo título do livro que está sendo comentado. Há 3 versões.

    1. Você acredita realmente que pode comparar uma Editora, que tem revisores profissionais, com um blogue que sem fonte de financiamento segura e permanente?

  2. Apenas nos últimos 10 dias, várias Matérias sobre Tráfico a Criminalidade aterradoras no Brasil. Tudo envolvendo o Poder Judiciário, a Imprensa e o Poder Político. E não estamos falando apenas da base mas de todas suas Elites. Então por que continuamos com a fantasia? Para que a Polícia Brasileira correndo atrás de ‘Pivetes’ entre Favelas e Bairros Pobres? Antes que se culpem os Policiais de baixa patente, estão trabalhando justamente para a Elite destes Poderes e Instituições? Apenas para matar e silenciar a Consciência Brasileira? Não é o que estão fazendo há 90 anos, sendo repaginados nestas farsantes 4 décadas de Redemocracia sob uma tal fraudulenta Constituição Cidadã? Este Veículo descaradamente afirma que o Ministro do STF, seu Presidente durante certo período, Gilmar Mendes obstrui a Justiça segurando Processo contra José Serra a fim de obter sua prescrição. A manobra é tão evidente e tão hipócrita que não merece nem defesa das Partes. Noutra Matéria o Presidente da Câmara dos Deputados da República Federativa do Brasil Eduardo Cunha, acossado por Processos, vende seus imóveis a Traficante Internacional foragido. Imaginem a ‘trabalheira’ da Polícia Federal em procurar por este Criminosos por quase 1 década? Anão Diplomático da Latrina QuintoMundista. Elites deste Estado Ditatorial Caudilhista Absolutista Assassino Esquerdopata Fascista. Vejam os Governos deste s períodos? A culpa deve ser dos outros. Pobre país rico. QUEM É o CRIME ORGANIZADO NO BRASIL? Mas de muito fácil explicação.

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