Sergio, um homem sob as ruínas de seu tempo, por Arnaldo Cardoso

Sergio é o título do filme lançado no último dia 17 pela Netflix, que retrata os últimos anos da vida do brasileiro Sergio Vieira de Mello, diplomata de carreira

Sergio, um homem sob as ruínas de seu tempo

por Arnaldo Cardoso

Sergio é o título do filme lançado no último dia 17 pela Netflix, que retrata os últimos anos da vida do brasileiro Sergio Vieira de Mello, diplomata de carreira da Organização das Nações Unidas que morreu em 19 de agosto de 2003, aos 55 anos, vitimado num atentado suicida contra o centro de ações da ONU em Bagdá, onde o diplomata se encontrava no desempenho do cargo de Alto Comissário para os Direitos Humanos da ONU. No atentado cuja autoria foi reivindicada por Abu Musab al-Zargawi, um dos líderes da Al Qaeda, morreram outras 21 pessoas.

O filme tem o ator Wagner Moura no papel principal e a atriz cubana Ana de Armas representando a economista ítalo-argentina Carolina Larriera que também realizava trabalho no Timor Leste, país asiático que depois de mais de 20 anos de dominação pela Indonésia fez sua independência. Do encontro de Sergio e Carolina num instável Timor, afloraram ideais e outras afinidades, cujo resultado foi uma paixão que ocupa o plano principal do filme, tornando-o um romance em vez de um thriller político, para frustração de muitos.

De fato, não são poucos nem de pouca importância os elementos políticos que compõem o cenário e o tempo histórico em que a trama do filme se desenrola, mas esses só foram explorados superficialmente. Em socorro aos produtores do filme é justo reconhecer que nenhum dos elementos poderia ser explorado em profundidade num filme de menos de duas horas, o que nem uma série com vários episódios conseguiria.

A vida e a carreira de Sergio Vieira de Mello; as diferentes missões em que participou, sempre em contextos de conflitos; a independência do Timor, o primeiro novo país soberano do século XXI; o governo George W. Bush e a guerra ao terror; a invasão e ocupação do Iraque sem aval da ONU; a crise da ONU; a evolução das “Missões de Paz” da  ONU, do peacebuilding ao statebuilding; a lógica moral da intervenção humanitária; um primeiro secretário geral brasileiro para a ONU, em meio a demandas por reformas da organização; são só alguns dos elementos que o filme suscita. 

Carioca, filho de diplomata que após o golpe de 1964 no Brasil foi aposentado compulsoriamente, Sergio muito jovem se lançou ao mundo, indo estudar na Europa, inicialmente na Universidade de Freiburg e depois na Sorbonne, em Paris, tendo vivido o turbilhão de maio de 1968 na capital francesa. Em 1969, já graduado em Filosofia, ingressou na ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) em Genebra, no posto de editor assistente. Continuou seus estudos doutorando-se em Filosofia e desenvolveu seus conhecimentos de línguas estrangeiras (se tornará fluente em inglês, francês, espanhol, italiano, além do português), mas foi no trabalho de campo que encontrou sua realização.  (Lecionando para jovens estudantes de relações internacionais sempre os alertei, assim como outros colegas o fazem, de que a carreira diplomática – desejada por muitos – demanda entrega, exige sacrifícios pessoais. A realidade não corresponde à aura de glamour que constitui o imaginário sobre a carreira. O mais importante não são os salões elegantes, mas sim a realidade das pessoas impactadas por conflitos, guerras, fluxos migratórios desordenados, pandemias… No filme em tela, a personagem Sergio faz depoimento nessa mesma direção). 

Ao longo de sua carreira de trinta anos na ONU, Sergio trabalhou em programas no Sudão, Bangladesh, Chipre, Moçambique, Peru, Bosnia Herzegovina, Camboja, chegando ao ápice de sua carreira na missão no Timor Leste, avaliada internacionalmente como de grande êxito. 

Carolina Larriera, conta que Sergio só aceitou a missão no Iraque para atender um pedido pessoal do então secretário geral da ONU, Kofi Annan. Segundo ela – que hoje dirige o Centro Sergio Vieira de Mello e leciona relações internacionais no Rio de Janeiro – e como retratado no filme, Sergio desejava voltar para sua cidade natal. Planejava se casar e, numa das cenas de forte apelo emocional do filme ouvimos a confidência de que o lugar que mais desejava estar era a praia do Arpoador. 

Sobre a atuação de Sergio no Timor diante de negociações difíceis, o filme retrata alguns momentos de tensão como em um diálogo com o presidente da Indonésia que recusava fazer um pedido oficial de desculpas ao povo timorense pelos anos de dominação. Já num diálogo com o  timorense Xanana Gusmão – que inicialmente desconfiava das proclamadas boas intenções de Sergio e da ONU – vamos o líder político dizer a Sergio não desejar ver se repetir no Timor situação semelhante a que viu acontecer no Camboja. 

Quanto a missão em Bagdá, é com Paul Bremer, o administrador americano do Iraque que ocorrem as situações mais tensas retratadas no filme. Logo na chegada de Sergio ao país, Bremer tenta subordinar aos seus planos tanto o diplomata quanto a missão da ONU para a qual Sergio havia sido designado.

Num diálogo do filme, as personagens de Sergio e Bremer trocam ríspidas frases em que Sergio afirma seu desejo de autonomia e necessidade de afirmar o papel da ONU no país diferenciando-o do das forças de ocupação, ao que Bremer lhe responde ”Aqui você não é o Vice-Rei” (em alusão a condição positiva de Sergio na evolução do processo de transição no Timor). (Sob o título Vice-Rei há um capítulo da biografia sobre Sergio de autoria de Samantha Power).

O filme retrata que Sergio logo pediu que sua equipe preparasse um relatório que seria encaminhado ao Conselho de Segurança da ONU relatando violações de direitos humanos produzidas pelas forças de ocupação. Sergio teria dito “o mundo tem o direito de saber o que acontece aqui”.

Também uma reunião com o aiatolá Sistani no Iraque provocou a ira de Bremer pois o poderoso líder religioso se recusara até então a falar com qualquer membro da coalisão, mas atendeu Sergio.

Paul Bremer era um ex-funcionário do Departamento de Estado dos Estados Unidos, de 61 anos, aposentado e que tinha fama de ser rude e decidido. Foi convocado pelo então presidente norte americano George W. Bush para assumir a posição no Iraque ocupado.

Foi chefe de operações antiterror do Departamento de Estado e, em 1986 foi nomeado pelo ex-presidente Ronald Reagan embaixador a cargo do combate ao terrorismo. Em seu cargo no Iraque respondia diretamente ao secretário de Defesa, Donald Rumsfeld.

Utilizando do recurso de idas e vindas no tempo, há uma passagem no filme que despertou discussões entre os que o assistiram. Nas negociações para libertação de milhares de refugiados no Camboja, Sergio teve de estabelecer comunicação com o líder do Khmer Vermelho Ieng Sary, que assim como ele – só que anos antes – havia estudado na Sorbonne e,  ambos viveram os turbulentos acontecimento de maio de 68 na França, fato que teria sido explorado por Sergio para conseguir aproximação do chanceler do grupo radical maoísta e assim o avanço nas negociações. (Ieng Sary morreu em 2013, aos 87 anos. Foi acusado por genocídio e crimes contra a humanidade).

Quanto a essa passagem, o filme traz um comentário espirituoso de Sergio sobre a necessidade em seu trabalho de, por vezes, negociar com criminosos internacionais. O comentário que segue consta de sua biografia escrita por Samantha Power “ele brincou que sua autobiografia seria chamada ‘Meus Amigos, os Criminosos de Guerra’”.

A referida biografia publicada em 2008 que tem o título original Chasing the flame – Sergio Vieira de Mello and the fight to save the world, traduzida como “O homem que queria salvar o mundo” é um rigoroso trabalho de pesquisa que retrata através de 667 páginas a trajetória internacional de Sergio Vieira de Mello até sua trágica morte. Sua autora, Samantha Power, é jornalista e professora da John F. Kenndy School of Government na Universidade Harvard e, como informa um resumido currículo no site da prestigiosa universidade, “é uma das maiores autoridades em relações internacionais da atualidade”. De 2009 a 2013, Power atuou no Conselho de Segurança Nacional como Assistente Especial do Presidente Obama e Diretora Sênior de Assuntos Multilaterais e Direitos Humanos. De 2013 a 2017, Power serviu como 28ª Representante Permanente dos EUA nas Nações Unidas. É autora também de “A problem for hell” (“Genocídio: a retórica americana em questão”), com o qual ganhou o prêmio Pulitzer em 2003.

Samantha Power já concedeu inúmeras entrevistas explicitando sua admiração pela trajetória diplomática de Sergio Vieira de Mello e reconhecendo nele um expoente da diplomacia mundial do século XX e referência para o XXI. 

Se tanto a vida do diplomata brasileiro quanto as questões internacionais com as quais lidou são de pouco conhecimento da grande maioria dos assinantes da Netflix  e se o filme conseguir despertar curiosidade sobre elas, já terá cumprido uma nobre tarefa além de oferecer entretenimento em tempos de isolamento social e de agravamento de outras tantas questões internacionais.

Quanto ao trabalho dos atores protagonistas do filme, as atuações de Wagner Moura e Ana Armas são convincentes e a química entre eles causa bom efeito no público. As locações e fotografia merecem também elogios.

Quanto a direção de Greg Barker que já dirigiu em 2009 um documentário da HBO sobre o diplomata brasileiro, predominam as avaliações positivas, uma vez que o diretor parece ter trabalhado com bastante desenvoltura uma vez já tinha familiaridade com a história da personagem principal.

O filme Sergio nos coloca em contato com um mundo em turbulência, quando analistas apontavam para o colapso da ordem mundial. Passadas duas décadas do tempo retratado no filme, as circunstâncias em que foi lançado nos leva a pensar sobre essa mesma ordem mundial posta novamente em xeque e, desta vez, com novos riscos de que, se não realizarmos as necessárias ações corretivas, terminaremos todos sob ruínas.

Arnaldo Cardoso, cientista político

Redação

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