Silvia Maria, a cantora simbolo da TV Tupi e a Feira Permanente de Música Popular

Em homenagem a um aniversariante do sarau, Silvia Maria cantou lindamente a capela. Mas as músicas de Jean Garfunkel, lembrando a ditadura, trouxe uma outra semelhança incômoda

Ontem fizemos mais um sarau em casa. No meio da seleção brasileira de músicos que apareceu, veio também a Silvia Maria. Hoje em dia, é mais conhecida como mãe da excelente Adriana Godoy, filha dela e do Amilson Godoy, emérito pianista e compositor que, em priscas eras, tocava em Poços de Caldas, em um trio que tinha no saxofone o Cacalo, de uma família de músicos locais.

No final dos anos 60, no entanto, Silvia Maria era a cantora oficial da TV Tupi, a grande concorrente da TV Record na área de música. Sob inspiração do grande Fernando Faro, a Tupi organizou uma série de festivais de segunda linha, que andou revelando alguns sucessos.

Primeiro, os Festivais Universitários. Com nosso grupinho de Poços e de São João da Boa Vista participei de dois, mesmo sendo secundarista. A FAFI (Faculdade de Filosofia) de Poços quebrava nosso galho com um atestado de matrícula gentilmente oferecido pelo secretário Volpin.

Antes da Tupi, havíamos participado de inúmeros festivais da região, em São João, Pinhal, Poços, Machado, Moji Mirim, até ousarmos São Paulo.

Concorri em dois com músicas convencionais, frevinhos, valsas. Até que a Tropicalia explodiu no horizonte musical do país. Foi uma revolução sem paralelo. De repente, descobríamos que não precisávamos ficar presos a um gênero específico, que poderíamos explorar outras formas de som, das guitarras aos gravadores, e outras temáticas.

A esta altura estava terminando o clássico em São João da Boa Vista e o Tiro de Guerra em Poços de Caldas. A economia estava em crise, depois dos programas de estabilização de Roberto Campos e Otávio Bulhões. Havia o paradoxo dos jornais celebrarem os feitos econômicos e do dia a dia mostrar a recessão.

Foi nesse ambiente que eu e meu queiro parceiro João Kleber Jurity, colega de classe, resolvemos enveredar pela nossa primeira experiência. Escolhi um tema, o poema “Congresso Internacional do Medo”, de Carlos Drummond de Andrade. Depois, negociamos com Marina, nossa professora de português. Pararíamos de atazaná-la, pedindo para nos ensinar sobre a Semana de 22 (que ela não conhecia). Em troca, ela nos deixaria ficar no fundo da sala, testando nossa parceria).

Depois de algum tempo, a música estava pronta para entrar em festivais.

A música começava com citações da “Cavalgada das Valquírias”, de Wagner, que a guitarra do César e o baixo do Joaquim Papagaio conseguiam reproduzir à la Jimmy Hendrix. Entrava numa polifonia barroca (comum na época, depois que Vinícius fez “Rancho das Flores” em cima de uma música de Bach), passava por marcha batida, continuava por marcha rancho e terminava em um “dixieland”.

Vencemos o Festival de Poços a duras penas. Tive a ideia do festival e passei a direção para o Tião Cabo Verde, da nossa turma. Sabíamos que haveria dificuldades com um júri só de Poços, para se alinhar com a nova música. Por isso vim a São Paulo conversar com músicos e jurados que conhecera nos festivais universitários. Para a competição, consegui a adesão da turma do Eduardo Gudin (sobrinho da inesquecível dona Vitalina, da Casa Futurista) e, através do Faro, inscrições de Jorge Ben, do iniciante Renato Teixeira (que já tinha estourado na Record com “Dada Maria”, lindamente interpretado por Gal Costa), Vitor Costa (parceiro de Ivan Lins) e o conjunto da Rhodia.

O júri final foi composto por Júlio Medaglia, Walter Silva, Fernando Faro e Damiano Cozella -o grupo de músicos e intelectuais que dava recheio teórico e erudito para a Tropicália. Conservadoríssimo, nas Vitor Costa, que foi acompanhado por ninguém menos que o conjunto da Rhodia -com Alemão, Hermeto Paschoal, Lani Gordine a cantora Maricene Costa. Indignado com o que parecia uma mutretagem do interior, Gudin e seus amigos se recusaram a participar.

O “Congresso” foi apresentado na mesma semifinal que a música do pessoal da Rhodia. Assistir, nos ensaios, os improvisos de Lani Gordin e Hermeto, não teve preço. Assim como receber os conselhos de Alemão e Hermeto, para incluir trombons no final da música, que eram um dixieland.

Pela vitória, Faro aceitou que participássemos da final do mês de julho da “Feira Permanente da Música Popular” -um festival com edições semanais, lançado nos estertores da Tupi, que trazia desde Jorge Ben até grupos de vanguarda paulista.

Houve problemas com a censura. Uma parte da letra, essa de inspiração do João Kleber, mencionava o “Senhor K”, personagem de Kafka. Cismaram que o Senhor K era uma homenagem subliminar a Juscelino Kubitscheck. Tivemos que mudar para Senhor J. Como o festival era ao vivo, ficava o coitado do Faro na plateia, com um cartaz escrito Senhor F, para que não trocássemos a consoante.

O auditório estava rachado ao meio. De um lado, os alunos da Faculdade de Medicina, fazendo alarido em torno de “Ópera Obra”, uma peça de vanguarda boa mesmo, produzida por alunos da escola. De outro, o grupo tradicional fechado em torno do belíssimo “Flor da Campina”, da jovem compositora Suely Costa, interpretada por Silvia Maria, cantora morena, esguia, o maior nome da Tupi na época.

Como “Ópera Obra” era muito vanguarda, não teve chance. Aí, a torcida legista-musical da Medicina resolveu apoiar a nossa música e vaiar a obra-prima da Suely. Foi um frege dos diabos. Ficamos indignados com a polarização musical.

No fim, o júri decidiu dar empate ao “Congresso” e à “Flor da Campina”. Para a final, foram duas músicas de Jorge Ben -entre as quais “Domingas”-, duas do Paulinho da Viola -“Foi um Rio” e “Nada de Novo”- , a de Suely e o “Congresso”. Aí a Tupi faliu, não teve final e eu passei a contar para todo mundo que empatei com três monstros sagrados da MPB.

Entusiasmado com as experimentações musicais do grupo, Paulo Cotrim, crítico da “Veja” e o mais influente da época, vaticinou minha carreira como compositor. Alguns anos depois nos encontramos, ele crítico de culinária e eu jornalista. Falei para ele: “Acho que nós dois estávamos na profissão errada”.

Ontem, em homenagem a um aniversariante do sarau, Silvia Maria cantou lindamente a capela. Mas as músicas de Jean Garfunkel, lembrando a ditadura, trouxe uma outro semelhança incômoda. Na volta do festival, na Veraneio do meu pai, fomos parados na saída de São Paulo por uma operação da OBAN – que nos liberou logo depois.

 

 

 

Luis Nassif

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