Sine Die: Reflexões sobre a pandemia da Covid-19, por Roberto E. Zwetsch

Sine die, do velho latim, quer dizer: sem dia marcado. Esta crise, infelizmente, não tem dia marcado para terminar.

Sine Die

Reflexões sobre a pandemia da Covid-19

por Roberto E. Zwetsch

Há uma falsa expectativa sendo disseminada paralelamente ao avanço do contágio da Covid-19 pelo país. A situação se apresenta cada dia mais grave, com números sempre mais alarmantes, tanto de pessoas contaminadas como de óbitos, números aparentemente frios, mas que escondem uma tragédia monumental em curso. E tem gente que, com a maior desfaçatez, continua a dizer: “isso vai passar … logo”; “depois da pandemia, voltaremos à normalidade”; “todos esperamos que logo passe a pandemia para voltarmos à normalidade”. E frases ocas do tipo.

Que “normalidade” é essa de que as pessoas falam? É a normalidade do aumento crescente do feminicídio no Brasil? É a normalidade do massacre imposto a jovens negros nas periferias do país? É a normalidade da homofobia e perseguição a pessoas com diferentes condições de vida? É a normalidade da invasão das terras indígenas por madeireiros, garimpeiros e grileiros de terra? Ou a normalidade da entrega da base de Alcântara para o governo dos EUA, e a expulsão de uma comunidade quilombola do lugar? É a normalidade das agressões constantes contra a China, nosso maior parceiro comercial? É a normalidade da Reforma Trabalhista de Temer que só favoreceu as empresas ou a votação recente de uma nova “carteira de trabalho verde e amarela” que exclui direitos trabalhistas, pagamento de INSS e outros benefícios duramente conquistados pela classe trabalhadora? É a normalidade do desemprego permanente de mais de 12 milhões de pessoas, que vem de anos e não foi causado pela pandemia? Ou a normalidade da uberização da vida de milhões de pessoas que, de repente, são consideradas “empreendedoras” e com isto perdem todos os seus direitos trabalhistas? Ou ainda é a normalidade dos juros escorchantes que se paga no cartão de crédito no Brasil? Por fim, seria a normalidade de um presidente que já praticou inúmeros “crimes de responsabilidade”, mas que olimpicamente o STF desconsidera e não aceita julgar? Que normalidade se está anunciando que virá?

Como cantou o poeta, “nada será como antes”, nem ninguém sabe o que o amanhã vai trazer. É uma angústia extrema aquela com que nos defrontamos. E temos de encontrar forças e energia para suportarmos razoavelmente esta angústia. Não tem outra solução. É como na falsa discussão sobre fazer ou não o isolamento/distanciamento social, não vem ao caso o nome. É isto ou o caos. Como já se começa a perceber tristemente em algumas cidades como Manaus, Fortaleza e proximamente em São Paulo e Rio de Janeiro. A contaminação precisa ser barrada nos lugares de origem, como afirmou Miguel Nicolelis, que faz parte de um grupo de cientistas que está assessorando com sua comprovada competência o grupo dos governadores do Nordeste que se aliaram num consórcio e tomam decisões unânimes e centralizadas, e que deverão logo mostrar a que vieram. Quanto menos o vírus se espalhar, maiores serão as chances de mitigar o número de perdas humanas. E mesmo assim, já serão muitas, milhares, possivelmente centenas de milhares, talvez na ordem do milhão.

Não haverá mais normalidade alguma nem agora durante a virulência da pandemia, nem depois de passar o pior dela! É isto que temos de assumir como pessoas e como sociedade. Acabou-se a farsa de um mundo dominado pelo dinheiro e falsas ilusões. Como alguns biólogos e cientistas sérios vêm afirmando, teremos de aprender a conviver com esta e outras pandemias daqui por diante. E o sistema mundial vai inevitavelmente mudar. Em que direção ainda não sabemos bem. Analistas afirmam que o sistema mundial não vai arredar um milímetro. Ele tende a se fortalecer ainda mais, especialmente, a força da moeda norte-americana e seu poderio militar; e a potência industrial e econômica chinesa. As instituições mundiais de distensão perdem cada vez mais incidência, embora não se possa abrir mão delas de jeito nenhum.

O mundo que virá dessa crise global será diferente. O que eu esperaria é que os movimentos populares se fortalecessem e a economia solidária que está sendo praticada em muitos lugares pudesse se tornar um contraponto forte, massivo, convincente diante do sistema neoliberal que mostrou toda sua iniquidade nesta pandemia. Só assentamentos do MST já doaram em várias cidades toneladas de alimentos a comunidades vulneráveis urbanas. O verdadeiro rosto deste sistema perverso começa a aparecer, uma vez que antes se escondia nas sombras da eficiência do sistema, na segurança econômica e jurídica de suas políticas. Tudo falso e a serviço de uma minoria no mundo, como se mostrou em Nova York anos atrás (1% x 99%). Aliás, a cidade cosmopolita é o exemplo mais contundente da falência do ineficaz e caríssimo sistema de saúde norte-americano. E que o Obamacare – se aprovado e sustentado – poderia ter contribuído para mitigar a desgraça em curso. Mas o sistema o rejeitou e deu no que deu. Se podemos aprender algo no Brasil, é a importância do SUS, agora defendido justamente por quem o queria detonar e lutou para diminuir suas verbas. Não só temos de defender o SUS, mas ampliá-lo. Em vez de cortar recursos, justamente fortalecê-lo ainda mais. Por exemplo, retomar com urgência o Programa Médicos de Família, que neste momento seria um instrumento privilegiado para conter a pandemia. Ou aprender com a decisão de instituir o Programa da Renda Básica Cidadã nesta emergência, para torná-lo uma lei permanente, como defendeu há muito tempo o Senador Eduardo Suplicy. O mesmo se pode afirmar do Bolsa Família, que de repente deixa de ser criticado para se tornar um meio para ajudar as famílias pobres e garantir o mínimo de alimento para as crianças. A razão para estas justas demandas é simples: todo investimento nesses programas é muito mais importante economicamente do que os recursos que – na calada da noite – este governo decidiu repassar aos bancos e sistema financeiro, algo da ordem de R$ 1,3 trilhão. A conta dos programas sociais custa bem menos e representa investimento de recursos públicos que ficam no Brasil e garantem a luta por vida digna para todas as pessoas, especialmente as mais necessitadas e vulneráveis. O dinheiro do rentismo – os economistas sabem muito bem – beneficia alguns bilionários e com facilidade vai para contas fora do Brasil.

Sine die, do velho latim, quer dizer: sem dia marcado. Esta crise, infelizmente, não tem dia marcado para terminar. É bom que aprendamos desde já a conviver com ela, a mudar de mentalidade, a exercitar dia a dia o máximo de solidariedade possível, a inventar – ainda que reclusos – o novo mundo, que deverá ser mais social, mais comum e menos individualista e egocêntrico. Quer dizer, um mundo onde se possa viver e amar incondicionalmente. Só assim haverá alguma chance de sobrevivermos com relativa saúde física, mental e espiritual. Quem viver, verá.

Roberto E. Zwetsch – Teólogo, professor associado de Faculdades EST, São Leopoldo, RS.

Redação

1 Comentário

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  1. O tempo ruge:

    “A Vitória da Economia sobre a Vida
    (Roberto Kurz)

    Como o mundo está a ser destruído pela eficiência da economia empresarial

    Já faz quase um quarto de século que o cientista norte-americano Dennis Meadows e seus colaboradores apresentaram o famoso relatório do Clube de Roma sobre “os limites do crescimento”. Nele se mostra que o crescimento exponencial da economia moderna acarreta como conseqüência necessária, num espaço de tempo historicamente curto, uma catástrofe dos fundamentos naturais da vida. O consumo voraz de recursos e a emissão desenfreada de poluentes, afirma Meadows, põem em xeque a sobrevivência da humanidade.

    Em termos empíricos, o resultado é inequívoco e só pode ser contestado por ignorantes. As condições elementares da vida, como a água, o ar e a terra, estão expostas a um crescente processo de envenenamento. A camada protetora de ozônio na atmosfera é corroída. No Sul da Argentina e na Austrália, uma infinidade de ovelhas já pasta com cancros à mostra, e também para os homens o banho de sol torna-se perigoso. A água potável, além de sofrer contaminação, está cada vez mais escassa. Os desertos avançam dia a dia, e há prognósticos de que a guerra do século 21 terá como estopim o controle de mananciais hídricos. Com uma rapidez inquietante, são extintas espécies da flora e da fauna. As florestas tropicais, a maior reserva natural da Terra, desaparecem num piscar de olhos. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial até hoje, a destruição foi maior do que em toda a história da humanidade. Com a ingestão excessiva de ingredientes tóxicos, o sistema imunológico humano ameaça entrar em colapso (sobretudo nas crianças). Os médicos profetizam o surgimento de NOVAS EPIDEMIAS, contra às quais não haverá remédio.

    A lista das destruições e das catástrofes iminentes poderia ser prolongada infinitamente. A própria beleza do mundo desaparece. A economia de mercado desfigura o semblante da natureza. Quando visitei São Paulo, mostraram-me antigas fotos de um rio no qual se podia banhar, em cujas margens passeavam os habitantes e que constituía um espaço popular de lazer. Tive oportunidade de ver esse rio hoje em dia: uma espécie de esgoto a céu aberto, com águas turvas e malcheirosas, em cujas margens só os ratos fazem seu passeio. Lamentáveis comparações como esta podem ser feitas em todos os países. Tudo indica que a economia trabalha com grande eficiência para transformar todo o planeta num fedorento depósito de lixo e finalmente extinguir a vida humana…”

    Isso é a normalidade, cuja volta é tão esperada pelos capitalistas e demais sanguessugas.

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