Sobre crenças, por Gustavo Gollo

Serão nossas próprias crenças menos tolas que essas? Serão as crenças científicas do mesmo tipo que essas, mas apenas legitimadas pelo rebanho?

Sobre crenças

por Gustavo Gollo

Tenho visto arroubos de indignação em decorrência de crenças idiotas, como terra plana, criacionismo e tolices análogas. Serão justificáveis tais arroubos? Por que acreditamos que tais crenças sejam tolas? Serão nossas próprias crenças menos tolas que essas? Serão as crenças científicas do mesmo tipo que essas, mas apenas legitimadas pelo rebanho?

Em que se baseiam nossas crenças?

Possuímos variados tipos de crenças, cada um deles oriundo de um tipo específico de fonte.

Crenças convencionais

Um desses tipos se baseia em convenções. O significado das palavras, por exemplo, é determinado por um acordo entre os falantes da língua. Os nomes das pessoas e das coisas, são atribuídos por convenção, assim como as leis.

Convenções são acordos entre os grupos, e podem ser alterados por eles. A regra ortográfica da língua portuguesa, por exemplo, foi alterada há uns anos.

De modo geral, as convenções podem ser instituídas e alteradas conforme os desejos de um grupo. De qualquer forma, o conhecimento das convenções estabelecidas constitui um conjunto de crenças bastante útil.

As leis também são o resultado de convenções, e assim como a ortografia e a gramática, podem ser consultadas em livros, ou pela internet, os acordos que determinam tais convenções estão grafados ali. Assim, nossas crenças sobre convenções são justificadas através de consultas a textos, e decorrem da interpretação de palavras – informalmente, também existem convenções orais, mais fluidas, consultadas oralmente, mas também definidas através de palavras.

Creio que as crenças decorrentes de convenções sejam as mais simples e bem compreendidas, exatamente por decorrerem de palavras, podendo ser decidias através da simples leitura de um texto. A maioria das crenças, dos conhecimentos, no entanto, não decorre de convenções.

Crenças sobre os fatos e a ciência empírica

Sabemos que a chuva molha, e continuará molhando, independente de que queiramos, ou não, que ela molhe, ou de que, de algum modo tresloucado, tentemos estabelecer, ou convencionar, que a chuva não molhe. Trata-se de uma crença empírica, sobre fatos, não de uma convenção, e não podemos alterá-la ao nosso bel-prazer, ou melhor, se desdenharmos dos fatos, como podemos fazer com as convenções, simplesmente nos equivocaremos, de modo que, mesmo que simulemos não acreditar que a chuva molha, ela continuará molhando.

Questões empíricas – ou crenças sobre a veracidade dos fatos, como a de que a chuva molha –, podem ser bem mais espinhosas do que usualmente se imagina. De qualquer modo, são decididas através de observações.

Discordâncias quanto a fatos e observações, no entanto, nem sempre podem ser resolvidas facilmente, eventualmente, se arrastam por décadas, mesmo quando relativas a questões importantes, e de forte significado para a sustentação de muitas outras crenças, como tão bem ilustrado por Thomas Kuhn em seu livro “A estrutura das revoluções científicas”. As discordâncias sublinhadas nesse texto, frequentemente de maneira gritante, consistem todas elas, em minúcias muitíssimo sutis. Utilizadas como fundamentos estruturantes de teorias, no entanto, minúcias sutilíssimas sofrem amplificações que acabam expostas de maneira gritante nas estruturas teóricas baseadas nelas. As situações apresentadas nesse livro assemelham-se a bandejas equilibradas sobre muros, ou quaisquer divisas instáveis, que permitem a queda do conteúdo da bandeja para um, ou, outro lado, transformando o desequilíbrio sutil em tudo ou nada, e amplificando-o drasticamente.

Boas teorias devem ser erigidas assim, de modo estruturado, resultando na aceitação de blocos compostos por peças engatadas, impossibilitando o arbítrio na escolha de peças a serem encaixadas. Minha própria estruturação da teoria da evolução se baseia em tal pressuposto, pode ser encontrada aqui,  https://jornalggn.com.br/ciencia/teoria-da-evolucao/  acredito ser a melhor estruturação existente hoje. Em minha concepção a teoria apresenta-se estruturada em um bloco compacto, composto por peças encaixadas umas às outras, de maneira mais estruturada que sob outras formulações.

Consistirá em bom exercício tentar refutar essa versão da teoria, recomendo a todos, trata-se de um bom jogo. Faz parte do jogo da ciência.

Idealmente, o jogo da ciência funciona assim – essa é uma ligeira alteração da proposta de Karl Popper, um epistemólogo, ou teórico da ciência :

  1. Um cientista propõe uma teoria, uma explicação sobre algo. Pouco importa a inspiração do cientista, o que o levou a sugerir tal hipótese, talvez um delírio. Toda loucura, toda inspiração criativa merecerá atenção. (Examine a física contemporânea e perceba que, exceto pelo uso da matemática, é bem difícil discernir entre ela e os delírios de um louco).
  1. Analisa-se a teoria em busca de uma contradição. Por razões lógicas, teorias contraditórias não são aceitáveis. A lógica é um campo de conhecimento análogo à matemática e aparentado com ela. De acordo com a lógica clássica, de uma contradição pode-se inferir qualquer conclusão, tornando inútil a crença em uma teoria contraditória, da qual tudo pode ser inferido – incluindo nisso todos os absurdos –, razão pela qual deve ser evitada.
  1. Analisa-se a proposta conferindo-se se ela é informativa, se ela, de fato, afirma algo sobre o mundo, ou, no linguajar de Popper, se a teoria é refutável. Esse quesito pode parecer despropositado e esdrúxulo dado que, na vida comum, assumimos que tudo o que dizemos seja informativo, um erro. Grande parte de nossa conversa é absolutamente vazia, não informa nada. Para descobrir se uma dada teoria é informativa, devemos buscar uma situação qualquer, um estado de coisas que seja proibido pela teoria. Que acontecimento, que constatação, me compeliria a negar a teoria, a refutá-la? Se não conseguirmos definir um estado de coisas que refute a teoria, devemos considerá-la vazia, e desprezá-la, por isso. (A proposta também parece estranha por exigir a refutabilidade da teoria, condição que permite a realização da etapa final, abaixo).
  1. Confere-se se a teoria é mais informativa que outras, se ela, de fato, acrescenta algo ao conhecimento prévio, ou seja, se ela exclui, ou proíbe, algum estado de coisas que não era proibido anteriormente.
  1. Tendo idealizado, durante a etapa 3, um estado de coisas proibido pela teoria – ou melhor, um conjunto deles –, procede-se, então, ao seu teste empírico. O teste consiste na tentativa de realização da situação proscrita imaginada como falha da teoria. Tenta-se, desse modo, por todos os meios possíveis, refutar a teoria, trazendo à luz um estado de coisas – uma situação, um fato –, proibido pela teoria. Caso se consiga expor algum fato que contradiga a teoria, ela se vê refutada, perdendo sua credibilidade.

Popper enfatiza que a brincadeira acima nunca deva parar, que devemos continuar duvidando das teorias para sempre, nunca nos permitindo desistir e acreditar que encontramos a verdade derradeira!

Atente para a advertência acima, importantíssima. Para Popper, um cientista nuca poderá acreditar piamente em uma teoria, ou terá saído do jogo. Para ele, a dúvida sobre qualquer teoria deve permanecer eternamente, assim como as sucessivas tentativas para refutá-la!

Agora imagine que uma dada hipótese, uma dada teoria, venha resistindo, há décadas, a sucessivas tentativas de refutá-la, de mostrar que seja falsa. Que embora as mentes mais brilhantes venham se empenhando em tentar refutar a teoria através de métodos cada vez mais engenhosos, a teoria continua resistindo a todos os testes!

Oh!

Bem, nesse caso, parecerá sensato crer nessa teoria – embora consciente da possibilidade de que, amanhã, ela seja refutada. (A descrição acima corresponde à demarcação de Popper entre teorias científicas e outras formulações. Note que, embora Popper exija que as teorias científicas sejam, necessariamente refutáveis, ele também exige que, efetivamente, ninguém consiga refutá-las, apesar de incansáveis tentativas realizadas com esse propósito. Seria essa a força das teorias científicas e a justificativa das crenças científicas: como duvidar de algo que ninguém consegue refutar?).

Tal idealização parece muito clara, simples e incontroversa. Efetivamente, no entanto, no mundo real, as coisas são bem mais espinhosas, havendo muito menos clareza que na esquematização teórica descrita acima. Esse, aliás, é o tempero do jogo. Assim como no futebol, embora as regras sejam claras, em certos lances, não haverá surpresa caso se expressem dúvidas quanto à ocorrência de um pênalti. De maneira análoga, controvérsias acerca de certos lances científicos – mesmo sobre observações aparentemente muito simples –, podem se arrastar longamente.

Embora tais dúvidas, de fato, ocorram, a maior parte do jogo transcorre incontroversa. De meu ponto de vista iconoclástico – por alguma razão costumo ser bastante herético –, o ensino de ciências costuma ser absurdamente dogmático – Kuhn diz o mesmo, mas acredita que deva ser assim, não endossando essa minha aplicação da palavra “absurdamente”.

Contrariamente a Kuhn, creio que poderíamos e deveríamos manter alguma apreciação de nosso próprio dogmatismo, e daquele que nos vai sendo imposto durante o aprendizado científico, embora seja bem difícil gerenciar a dúvida, domesticá-la. Se incitados a duvidar dos ensinamentos recebidos, quase todos os aprendizes o farão de maneira tresloucada, como cavalos xucros tentando se livrar de qualquer encilhamento, antes mesmo de tentar compreendê-lo. Nesse caso, a incitação ao antidogmatismo, à atitude racional, resultará muito frequentemente na manutenção da ignorância, uma vez que a negação da teoria ainda não compreendida impede sua compreensão. Cabe ao aprendiz tentar compreender a teoria antes de questioná-la e refutá-la. A calibração do ceticismo, a intensidade ótima da dúvida a ser aplicada em cada momento, no entanto, tende a ser bem difícil.

O cenário se altera quando acontece o aaahhh!, a sensação mágica de que tudo finalmente se encaixou. Nesse instante a metodologia popperiana recomenda que o cientista passe, então, a tentar mostrar o contrário, que nada daquilo é verdadeiro! (Sim, cientistas devem agir como criaturas do contra, tentando sempre mostrar o contrário, não importa o que se diga). Confira que o despropósito aparente acaba por resultar em teorias altamente robustas. Imagine a força de uma teoria que vem sendo sujeita a inúmeras tentativas de refutação efetuadas pelos maiores estudiosos do assunto no planeta, e que, apesar disso, resiste a todas as críticas! Do ponto de vista popperiano, é essa dinâmica que dá credibilidade à ciência.

No mundo real

Enquanto as idealizações nos sugerem o paraíso da racionalidade, no mundo real as crenças tendem a ser adquiridas de maneiras, digamos, mais escusas.

Consideremos a física contemporânea; nada se compara a ela. Quantas pessoas compreendem a mecânica quântica, ou a relatividade, hoje? Parece razoável supor que, tendo cursado uma graduação, um mestrado e um doutorado versando sobre alguma variação do tema, os físicos devam compreender tais teorias. De fato, a suposição contrária, de que não compreendem seu objeto de estudos, parece absurda.

Não sei como andam as tentativas de compreensão da mecânica quântica, mas até pouco tempo o pensamento dominante a respeito asseverava que a teoria era incompreensível, que a mente humana era incapaz de compreender as estranhezas do mundo quântico, o que revela que ninguém ousava assumir a compreensão clara da teoria, ou seja, ninguém a compreendia, de fato. Pessoalmente, considero essa situação absurda, penso que temos obrigação de tentar compreender as coisas. Eventualmente, podemos nos cansar e desistir de compreender uma dada questão, declarando-nos incapazes e entregando os pontos, acontece. Nossa derrota, no entanto, não pode ser impingida a outros. Posso me considerar incapaz de compreender a mecânica quântica, mas não devo, por isso, declarar que o mundo quântico seja incompreensível e que ninguém irá jamais compreendê-lo. Outros, mais inteligentes, ou mais hábeis que eu, logo o compreenderão, espero. Creio que, em casos assim, devemos sempre torcer por isso.

Peculiaridades ainda mais prosaicas afetam o mundo real. Nos livros de biologia, a explicação para a atração dos insetos pela luz é explicada pelo sistema de orientação das criaturas, que imporia a manutenção de sua trajetória sob um dado ângulo em relação à fonte de luz de modo a alcançar seu destino. Abelhas, de fato, agem assim. Em consequência, eventualmente, são iludidas por lâmpadas artificiais que as compelem a se aproximar da lâmpada em um voo espiralado. Esse resultado, o voo em espiral direcionado à fonte de luz é uma consequência da manutenção de um ângulo fixo, com menos que 90 graus, em direção à lâmpada.

Ocorre que a profusão de insetos que se dirige para as fontes de luz não o faz dessa maneira. De fato, a imensa maioria dos insetos atraídos pelas lâmpadas encaminha-se diretamente para elas, não se aproximando sob trajetória espiralada.

A explicação para o fato é bem simples e poderá ser compreendida por qualquer pessoa inteligente que leia o texto indicado abaixo: na ausência de iluminação artificial, os insetos atraídos pelas lâmpadas estariam voando em direção à lua. Incorreriam em tal desvario quando estivessem em busca de parceiros sexuais, conforme explicado aqui:

https://jornalggn.com.br/ciencia/por-que-os-insetos-sao-atraidos-pela-luz/

Essa singela refutação, ou complementação, da teoria ortodoxa, tão facilmente testável, ainda não aparece nos livros, nem em textos “oficiais”, embora proposta há décadas.

Leitor, confie em seu próprio taco!, recomendação sábia e propícia a quase todas as instâncias da vida. O jogo da ciência, como a maioria dos demais, costuma premiar a determinação e o arrojo. Ao encontrar uma lâmpada enxameada por insetos*, constate que quase todos se dirigem diretamente ao alvo. Em seguida, regozije-se ao constatar possuir um conhecimento ainda desconhecido pelos biólogos.

Penso que a constatação acerca desse desconhecimento corresponda a uma verdadeira bofetada na comunidade científica incapaz de reconhecimento tão banal. Atitudes como essa explicam como foi permitido que umas sandice do calibre do criacionismo ganhasse corpo. Também sugere que a indignação para com os propositores de sandices irracionais, como o criacionismo, não passe de luta pelo poder.

(* Sinto-me obrigado a ressaltar que, lamentavelmente, essas pobres criaturas, os insetos, estão sofrendo um cataclismo brutal, tendo suas populações dizimadas, provavelmente em decorrência do excesso de venenos utilizado em plantações. Esse desequilíbrio trará consequências catastróficas a todos os seres, inclusive a nós. A situação atual dos insetos amplifica a importância ecológica decorrente do extermínio das criaturas pela iluminação artificial exatamente antes de sua reprodução).

Tornemos a uma questão um pouco menos prosaica.

Crença e compreensão

A admissão da mecânica quântica, essa formulação paradoxal, nos sugere as seguintes questões: o que significa acreditar em algo que não entendemos? Posso acreditar em algo que não entendo? No que, exatamente, acredito, quando digo que acredito em algo que não entendo?

Para ilustrar as questões acima, tome uma demonstração matemática que você ainda não compreende, atente para as proposições em pauta. Se você ainda não compreende o objeto proposto, ele te parece confuso, como peças de um quebra-cabeças em um saco. Quando efetuar e compreender a demonstração, no entanto, as peças se encaixarão, e a compreensão advirá tão clara e nítida quanto aquela da figura do quebra-cabeças já armado. A compreensão adquirida através de uma demonstração pode ser comparada à noção que se tem da imagem do quebra-cabeças ainda não armado (sem que tenhamos olhado o modelo na caixa), e a noção final, tendo visto o quadro montado, o que ilustra bem a diferença entre nossas crenças, antes, e depois da compreensão de uma teoria.

Neste vídeo apresento uma breve demonstração que ilustra o que foi dito acima:

Pessoas comuns

Agora tornemos às pessoas e às crenças comuns. Por que as pessoas comuns acreditam na evolução das espécies? Creio que se tentarmos arrancar delas as justificativas para tal crença, chegaremos a situações bastante constrangedoras. Será que as pessoas comuns aceitam as ideias científicas de maneira tão dogmática quanto os que admitem sua versão tola, o criacionismo?

Enquanto a sandice inerente à concepção de terra plana pode ser exposta por qualquer pessoa com um mínimo de imaginação e conhecimentos – fotografias e relatos de astronautas, existência de satélites orbitando o planeta –, a defesa da evolução das espécies exige uma articulação mais complexa de raciocínios, um encadeamento mais rico.

De fato, a versão mais comum da evolução das espécies adequa-se mais a uma ideia pré-evolutiva, a Cadeia do Ser, uma ideia antiga e extraordinariamente influente, que à evolução de Darwin. A grande cadeia do ser pressupunha uma espécie de gradação evolutiva entre os seres, na qual uns seriam mais evoluídos que outros. Os seres vivos, por exemplo, seriam mais evoluídos que as pedras. Entre esses, uma gradação definiria uma escala na qual os vermes, por exemplo, seriam inferiores e menos evoluídos que os sapos, esses menos evoluídos que os ratos, menos evoluídos que os macacos, menos evoluídos que o homem. Essa ideia pode ser representada por uma única coluna na qual os seres inferiores, menos evoluídos, situam-se abaixo dos seres superiores, mais evoluídos. Conceitos como “seres inferiores”, ou “menos evoluídos”, coadunam-se perfeitamente com essa ideia, e provavelmente decorrem dela. Na visão de Darwin, a transmutação das espécies gera ramificações que acabam por constituir, ao longo do tempo, uma árvore evolutiva bastante ramificada. Até o final do século XX, a representação cartesiana da árvore evolutiva costumava incorporar erros recorrentes decorrentes dessa má interpretação. Por essa razão, a representação do tempo, em tais gráficos, aparece frequentemente equivocada.

Na figura acima, típica das representações do século XX, a sugestão de que monotremados (ex. ornitorrinco), marsupiais (ex. canguru), edentados (ex. tatu) e proboscídeos (ex. Elefante) sejam menos evoluídos que carnívoros e primatas, acima deles na árvore evolutiva, é tão óbvia quanto equivocada. Boas representações contemporâneas alongam os galhos vindos de baixo, apresentando todos os seres hoje existentes na mesma linha temporal no topo da figura, eliminando a sugestões de aperfeiçoamento, ou superioridade de umas espécies sobre outras.

Lamentavelmente, penso eu, Darwin utilizou algumas vezes (poucas) a palavra “evolução” (evolution) em sua obra máxima, “Sobre a origem das espécies”, uma lástima. Melhor teria sido evitá-la, usando exclusivamente o termo mais apropriado “transmutação”, de fato, preferido por ele. A transmutação das espécies, o modo como as espécies se transmutam em outras, é o tema de Darwin, não sua evolução. Com isso estou sublinhando que, enquanto “evolução” pressupõe a ideia de aperfeiçoamento, “transmutação” é neutra quanto a isso.

Desse modo, estou afirmando, categoricamente, que a expressão “transmutação” é mais apropriada à compreensão da teoria de Darwin que “evolução” – embora ela seja referida normalmente como “teoria da evolução”. Por outro lado, a palavra “evolução” é bastante apropriada para descrever a cadeia do ser, que não trata da transmutação das espécies, mas apenas de sua hierarquização.

Se a afirmação acima lhe pareceu chocante, leitor, e se a ideia de aperfeiçoamento encontra-se embutida em sua concepção da teoria da evolução, isso se deve ao fato de que a noção hoje dominante ainda assemelha-se mais à cadeia do ser que à evolução darwiniana.

PAUSA CRUCIAL: REFLITAMOS.

A maioria das pessoas, hoje, acredita erroneamente que a teoria da evolução assevera o aprimoramento das espécies, e a existência simultânea de espécies mais evoluídas, superiores, e espécies inferiores, menos evoluídas. Tais expressões, comuns em livros de biologia, decorrem de uma confusão entre complexidade e evolução. Podemos asseverar a existência de espécies contemporâneas mais complexas que outras, não de espécies que sejam mais aprimoradas.

Exponho-me, aqui, em uma posição bastante delicada. Estou afirmando claramente que uma grande parcela dos livros de biologia do século XX defendia – implicitamente, sem ousar explicitá-lo –, uma concepção pré-darwiniana. (Os autodenominados “criacionistas” exploraram, exatamente, esse tipo de ignorância, comum entre especialistas e negligenciada por eles).

Se, como imagino ser o caso, estou afirmando que a concepção do leitor coaduna-se mais à grande cadeia do ser que ao darwinismo, devo ter-lhe atiçado ira considerável – especialmente se se tratar de um biólogo! (A ira adviria da tensão gerada ao expor os 2 dogmas excludentes admitidos por ele). Tendo sido eu mesmo, no entanto, o autor de tal provocação, não me caberá pedir clemência, sujeitando-me, em consequência, a retaliações diversas e iradas. Assim sendo, não pedirei clemência, mas rogarei para que, antes de qualquer retaliação, o leitor confira minhas palavras, lendo “Sobre a origem das espécies” e buscando ali as referências a aperfeiçoamentos inerentes à transmutação das espécies, negadas por mim. O livro é muito bom, grande leitura, recomendo-o entusiasticamente.

Mas, tratávamos de crenças, quando sugeri que a maioria de nós acredita em algo mais próximo da cadeia do ser que das ideias de Darwin, embora supondo acreditar na evolução darwiniana.

Se assim for, caso a compreensão que as pessoas comuns têm da teoria da evolução seja tão precária que mais se assemelhe a uma outra ideia, a cadeia do ser, poderia tal concepção ser justificada racionalmente? Ou ela é defendida por quase todos dogmaticamente, assim como o criacionismo?

Antes, no entanto, de crucificar o homem comum e denunciar sua ignorância, devo examinar minhas próprias crenças e perguntar – tendo confessado não compreender a física contemporânea –, por que, ou em que medida, acredito nela? (Também suspeito que os cosmólogos costumem chutar do meio do campo, afirmando categoricamente umas conclusões constrangedoramente frágeis).

Dado que não compreendo essas teorias, posso afirmar que acredito na relatividade e na mecânica quântica? Mas, o que estarei dizendo, caso afirme que acredito em teorias que não compreendo?

Penso que o que fazemos, nesses casos, seja transferir a responsabilidade pela justificativa de nossa crença; penso que o que dizemos quando afirmamos acreditar em uma teoria que não compreendemos, é que confiamos no juízo daqueles que se dedicam ao assunto, e concluíram pela aceitação daquela ideia – a constatação se abate sobre mim como uma grave decepção, portanto.

Será essa uma forma disfarçada de dogmatismo? Não estaremos, todos, então, de um modo ou outro, compelidos a aceitar ideias igualmente dogmáticas?

Dogmatismo de segunda mão, ou de segunda ordem

A conclusão esboçada acima causa-me enorme decepção para comigo mesmo; gostaria de acreditar que minhas crenças fossem de fato minhas; constato que não são, e que algumas delas se baseiam na autoridade. Uma vez que não compreendo nem a mecânica quântica, nem a relatividade, resigno-me a confiar na palavra de sábios, mais ilustrados que eu, que me asseveram ser impossível duvidar de tais complexos, ainda que as confissões de muitos desses sábios, de que eles mesmos não compreendem a mecânica quântica me deixem com a pulga atrás da orelha, fortemente incomodado com a admissão de tal conhecimento. (Embora incompreendida, a mecânica quântica possui um enorme valor instrumental; sua formulação matemática permite que a teoria seja usada para efetuar deduções, mesmo que não se compreenda exatamente o que se está fazendo. O resultado equivale a um bolo feito do seguinte modo: “despeje o conteúdo das caixas 1 e 2 na tigela, misture-os; acrescente-lhes o líquido da garrafa A e bata por 5 minutos. Deite o conteúdo em uma forma e coloque-a no forno”. Trata-se de uma receita de bolo não interpretada. A mecânica quântica costuma ser tratada de modo análogo).

Devo, então, me resignar aos dogmatismos? Assumir um relativismo que nivele todas as crenças e considerá-las todas igualmente aceitáveis? Trata-se então de mera opção pessoal aceitar a evolução ou o criacionismo, ambas decorrentes de aceitação dogmática?

Bem, a teoria da evolução é muito mais facilmente compreensível que a mecânica quântica, qualquer um pode compreendê-la. O encaixe das peças compelirá aquele que a compreendeu a aceitá-la, assim como o encaixe das peças do quebra-cabeças nos revela ser aquela sua conformação correta.

Mesmo assim, vejo-me obrigado a confrontar meu próprio dogmatismo, minha alegada aceitação de teorias que não compreendo.

Penso haver uma diferença fundamental entre o dogmatismo de segunda ordem que me leva a aceitar a relatividade, e o verdadeiro dogmatismo: enquanto o dogmático de segunda ordem, chamemo-lhe crédulo, aceita o juízo de alguém que assevera suas conclusões com base em interpretações do mundo, o dogmático tradicional busca a autoridade de um texto. Nesse caso, enquanto o crédulo aceita a autoridade de alguém cujas conclusões se justificam através de considerações sobre os fatos, a fonte última do conhecimento dogmático é a palavra, não o mundo. É em um livro, ou na palavra de alguém, e não no mundo, que o dogmático busca suas certezas, como se fossem todas elas, oriundas de convenções. Embora ambos, crédulo e dogmático, baseiem suas convicções em autoridades externas – dada a incapacidade de baseá-las na própria razão, no próprio raciocínio –, o verdadeiro dogmático escolhe um texto sagrado como fonte última de seu conhecimento, enquanto o dogmático de segunda ordem busca uma autoridade que tenha conseguido compreender – ela mesmo, fazendo uso da razão –, a questão em pauta. Assim, o dogmático de segunda ordem, o crédulo, confia na palavra de alguém mais sábio que ele próprio, que afirma ter compreendido, verdadeiramente, a questão, ter encaixado as peças, enquanto o verdadeiro dogmático busca a iluminação irracional, advinda da fé; uma verdade revelada através de palavras, como se a verdade do caso decorresse de uma convenção.

Creio que tal equívoco tenha a seguinte origem histórica. Embora a escrita tenha sido inventada há milênios, sua difusão foi muito lenta. Até uns mil anos atrás, poucas pessoas em todo o mundo sabiam ler, e os livros eram objetos caríssimos e inacessíveis, exceto a uns poucos.

Por todo esse tempo, as raras pessoas que sabiam ler eram tidas como sábias, e sua sabedoria julgada na medida da raridade desse conhecimento. Nesse tempo, a leitura assemelhava-se à magia: misteriosamente – para a massa de analfabetos –, magos/sábios eram capazes de decifrar mensagens rabiscadas em um papiro por algum outro daqueles seres iluminados!

Aprecie, leitor, a magia encerrada em objetos como esse, passíveis de interpretação:

Na Europa, o livro mais popular, o mais comum e mais lido, era a bíblia onde, supostamente, estaria escrita a palavra de Deus!

Quão maravilhosas seriam as especulações nas mentes das assombradas criaturas ao lhes ser permitida a contemplação de tal relíquia: o livro sagrado contendo a palavra de Deus, envolto em superstição e mistério, como se grafado pela própria mão dO Criador.

Enleados, imersos na aura convincente da piedade religiosa, os analfabetos discutiam entre si hipóteses acerca da assombrosa magia concernente na interpretação da palavra escrita.

Nesses tempos, qualquer dúvida relevante que assaltasse insistentemente a multidão de analfabetos, tornando-se digna o suficiente para que os brutos se atrevessem a incomodar os sábios com elas, poderia ser dirimida através da palavra de Deus. Sem compreender o que estava escrito, ou mesmo o significado da escrita, cabia aos analfabetos apenas rogar aos sábios que intermediassem suas perguntas, buscando as soluções de suas dúvidas no livro sagrado. (E que poder imenso, a leitura, nas mãos de um pilantra).

Objeto de adoração, fonte da palavra de Deus e consequentemente de toda a verdadeira sabedoria, encontrava-se no livro sagrado tudo o que precisava estar escrito, estando ali grafado tudo o que fosse digno de ser respondido; todas as respostas.

Nada mais natural, em consequência, que todas as perguntas significativas fossem dirigidas a tal livro, buscadas lá suas respostas. Caberia, naturalmente, aos sábios procurá-las, lê-las e interpretá-las, sendo essa a maneira através da qual seriam encontradas todas as respostas.

Note ser esse exatamente o procedimento utilizado para se resolver dúvidas acerca de convenções: a busca, em um livro, pela resposta nele previamente escrita.

Continua sendo essa a estratégia única de solução de dúvidas dos dogmáticos, a busca de respostas escritas algures, mais comumente no livro sagrado. Creio ter sido essa a origem dos dogmas e se me entristece reconhecer em mim mesmo a necessidade de recorrer ao apelo à autoridade, na forma daquilo que chamei acima “dogmatismo de segunda ordem”, apelo a uma autoridade racional; a uma que se justifica racionalmente. Talvez em decorrência do fato de saber escrever, não me basta que uma palavra esteja escrita para que se transforme em um dogma. Qualquer um que saiba ler e escrever deveria reconhecer, hoje, que o fato de estar escrita não torna uma palavra impositiva, indubitável.

Concluo, então, pela existência de 3 tipos de crenças: as racionais, obtidas por mim mesmo através de meus próprios argumentos e interpretações. As convencionais, aquelas sobre os acordos estabelecidos entre as pessoas, como o significado das palavras e as leis. E uma terceira classe de crenças, as de segunda mão, ou segunda ordem, que me chegam através do compartilhamento das crenças de outras pessoas. Naturalmente, escolho compartilhar as crenças com aqueles que alegam conseguir justificá-las racionalmente, negando-me a acreditar na veracidade atestada apenas pela escritura de qualquer palavra. Gostaria também de advertir o leitor quanto a uma arapuca em voga. Os donos do poder controlam os meios de comunicação tradicionais, utilizando-os descaradamente para conformar as crenças das pessoas às suas. Acreditamos, hoje, basicamente, naquilo que tem sido dito para acreditarmos. A internet possibilitou a amplificação da voz de indivíduos comuns. E, em consequência, a divulgação de outras ideias, que não as patrocinadas pelos poderosos, fato que os incomodou. Em vista disso, têm lançado campanhas contra a divulgação de notícias falsas. (O propósito alegado parece maravilhoso, o que os incomoda, no entanto, não é a falsidade de tais informações, mas a discrepância entre elas e as patrocinadas por eles.). Apesar de tal reconhecimento, me alegra a preocupação com a verdade, e com a retificação das informações.

O outro lado da moeda, as fake news e os grandes meios de comunicação

Se atentarem às recomendações dos poderosos perceberão que eles enfatizam sempre a busca de fontes confiáveis de informação. Embora pareça perfeita, essa sugestão é inútil exatamente pela dificuldade em discernir fontes externas confiáveis; embutida na sugestão dos poderosos está a mensagem conservadora: confie apenas nos grandes meios de comunicação, únicas fontes confiáveis de informação – duvide disso.

Contrariamente a isso, leitor, exorto-o a confiar no próprio taco, a analisar, você mesmo, as informações que lhe chegam, buscando nelas eventuais contradições, e conferindo-lhes a coerência. Baseie suas crenças em suas próprias conclusões. Evite os dogmas e construa suas próprias crenças e seja você mesmo.

Redação

6 Comentários

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  1. Sobre narrativas e fake news

    Alguns críticos apontam para uma apropriação do status quo das teorias pos-estruturalistas, na russia os oligarcas contam com assessores de comunicação que abertamente dizem não acreditam na “nova roma de putin” ou na democracia burguesa ocidental, eles sabem que todas as narrativas são mentiras usadas pela classe dominante para mover a ralé e por isso são tão assertivos na hora de manipular as massas.

    https://www.theatlantic.com/international/archive/2014/11/hidden-author-putinism-russia-vladislav-surkov/382489/?single_page=true

    1. Em outras palavras, eu gostaria muitissimo de avisar a Putin que o avanco contra a governabilidade da Russia vai comecar beeeeeeeemmm de baixo. Do judiciario.
      Fake news em si eh FAKE NEWS. Ponto final. Tudo comeca e termina COM O JUDICIARIO FALHANDO com os “fake news” de mentira, plantados por outros paises na Russia.

      Nao foi o que aconteceu no Brasil?

    2. Em outras palavras, eu gostaria muitissimo de avisar a Putin que o avanco contra a governabilidade da Russia vai comecar beeeeeeeemmm de baixo. Do judiciario.
      Fake news em si eh FAKE NEWS. Ponto final. Tudo comeca e termina COM O JUDICIARIO FALHANDO com os “fake news” de mentira, plantados por outros paises na Russia.

      Nao foi o que aconteceu no Brasil? Italia? Venezuela? Oriente Medio? Irlanda?

    3. Por sinal, “mathaus”…
      Voce nao me engana nem por uma fracao de segundo. Quem sao os “oligarcas” que estao dizendo isso?
      Congratulacoes. Voce acaba de ser usado pra espalhar fake news.

  2. Errata:

    Em breve postarei novo artigo negando a aceitação do que chamei aqui de “dogmatismo de segunda ordem”.

    Já não concordo com o que escrevi acima.

    1. Ja nao aparece caixa de comentario para comentar o segundo item. Mas esse ta uma bagunca gigantesca. Ao confundir significado de palavras com “crencas”, por exemplo, voce esta confundindo “comportamento emergente” com “crenca”. Se a caixa voltar, continuo a comentar no segundo item.

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