Sobre vazamentos, por Rita Almeida

O mais importante é saber que o que está em jogo depois dos vazamentos do Intercept não é apenas uma disputa jurídica, mas, sobretudo, uma disputa de narrativas.

Sobre vazamentos

por Rita Almeida

Certa vez, os azulejos do meu banheiro começaram a estufar. Chamei o pedreiro, ele retirou as peças estufadas e encontrou tudo podre por dentro. Um minúsculo vazamento – que, segundo o profissional, devia estar ali há muitos meses – havia feito um estrago enorme por dentro, antes de ficar visível. Se o cano tivesse estourado não tinha causado tanto dano – me disse o pedreiro. Porque eu seria obrigada a tomar providência imediata, evitando que afetasse a estrutura interna da parede. Já um vazamento pequeno, contínuo, e aparentemente inofensivo como aquele, provocou danos muito piores; de maior extensão e profundidade.

Sobre a Vaza Jato, muita gente tem cobrado do Intercept rapidez na divulgação das notícias, ou algum material que seja bombástico, tal como o “estouro de um cano”. A esperança é a de exista algo absurdamente escandaloso, a ponto de fazer com que ninguém mais duvide dos abusos de Moro e Dallagnol. Algo que faça com que todos concordem que Lula não teve um julgamento justo e que a Operação Lava Jato, há muito, passou a ser uma operação com viés político muito claro, decisiva, inclusive, no resultado das últimas eleições.

Primeiramente é necessário dizer que apenas o fato de que Moro esteve todo esse tempo trocando mensagens com a promotoria do caso que levou a prisão de Lula, já é gravíssimo (e isso nenhum dos “vazados” negou). Quem não acha que isso já é um problema em si, suficiente para colocar em suspeição a condenação do ex-presidente e as nobres motivações da Lava Jato, está guiado por outra coisa que não a legalidade, a justiça e a democracia. Existe ainda os que, por ignorância, não compreenderam a gravidade do que está acontecendo, ou ainda, os que investiram esperança e libido demasiadas nessa promessa salvadora de Moro, da Lava Jato e do governo Bolsonaro, sendo difícil abrir mão delas. Para essas pessoas, o tempo de duração da Vaza Jato será fundamental. Aprender e mudar de opinião é algo que leva tempo e investimento.

O mais importante é saber que o que está em jogo depois dos vazamentos do Intercept não é apenas uma disputa jurídica, mas, sobretudo, uma disputa de narrativas. Como as fontes utilizadas pelo jornal podem ter sido obtidas de maneira ilegal (e isso não desqualifica o material, mas pode impedir que ele seja utilizado no processo) pode ser que não se alcance as consequências legais que gostaríamos. Entretanto, os vazamentos colocam na ordem do dia a narrativa que já era uma desconfiança para muitos de nós, mas que agora toma corpo, forma e enredo. E sendo ela a mostração de uma verdade que estava velada, não haverá força que possa detê-la. Mas tal desvelamento também vai precisar de tempo, tempo para recuperar o lugar da importância da verdade na política nacional. Não podemos esquecer que esta é a época que construiu um líder e o elegeu, sustentada nas chamadas fake news (que deveríamos, desde o início, ter nomeado no português claro: notícias mentirosas). Revelar a verdade em meio a tanta mentira e dissimulação, não é algo que possa ser feito em grandes doses, as doses homeopáticas são mais eficazes. Nós, psicanalistas, sabemos o quanto desvelar uma verdade pode ser doloroso e insuportável, por isso, o caminho para essas descobertas deve ser lento e gradativo, caso contrário o sujeito não volta pra uma próxima sessão, ou irá encontrar outra mentira confortável para substituir a primeira.

A sociedade brasileira está adoecida pela mentira e a Vaza Jato está nos ofertando fragmentos de verdade importantes para tratá-la. Independente das consequências jurídicas que isso poderá implicar, uma narrativa mais próxima da verdade está ganhando força e o papel de quem defende tal narrativa é reforçá-la e multiplicá-la, sobretudo de forma responsável e ética. Acrescentar mentiras e versões distorcidas a essa verdade que está tentando vir à tona, não a torna mais potente para mudar a visão de quem ainda não a enxergou, ao contrário. Qualquer mentira colada a essa verdade, coloca toda a narrativa em risco. Glenn parece saber disso quando fala do cuidado e da responsabilidade que está tendo em analisar o material antes de divulgá-lo.

Por ora, nos cabe aguardar pacientemente os vazamentos da rede criada pela Intercept (agora já são vários pequenos pontos de vazamento) e compreender que eles vão precisar ser lentos e persistentes e por longo tempo, a fim de fazerem o estrago necessário na estrutura da máscara que cobre a Operação Lava Jato, e com ela, toda a política nacional dos últimos tempos. Importante também, manter aquele frisson pré-vazamento, aguçar a curiosidade dos outros pela verdade anunciada e aumentar o número de fãs dessa série. Antes de convencer as pessoas de uma nova verdade, é preciso colocar em dúvida uma verdade anterior, e a Vaza Jato já está produzindo tal efeito. As manifestações do último domingo demonstram isso.

E vale dizer ainda que, depois de tudo, teremos aqueles que jamais verão a verdade, não necessariamente por incapacidade mas por decisão, profissão de fé. O movimento de “furar as bolhas”, que também já está acontecendo, é fundamental para que esse último grupo se torne insignificante, em quantidade e em força narrativa, a ponto de falar apenas para si mesmo.

Então vaza, Glenn! Vaza do verbo, mostra do que é feita nossa justiça e nossa política. Tomara que a maioria de nós consiga enxergar.

Rita Almeida

Redação

3 Comentários

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  1. Rita Almeida – Estou satisfeitissíssimo em conhecer sua capacidade concisa de jornalismo e enaltecer o ocorrido com seu banheiro e ainda o diagnóstico do pedreiro contratado . A partir desta leitura edificante para a matéria , de importância Nacional , declaro que milhares de leitores como eu tornaram seu Fã . Abraço !!!

  2. Belo texto, Rita.

    Só estou em dúvida se até mesmo a tática da ‘água mole em pedra dura…’ irá surtir efeito em uma sociedade já claramente cínica e fascista. Mas é o que nos resta.

  3. Ante a confirmação pelos próprios Jatoeiros das mensagens trocadas por eles, com protestos apenas quanto à supostos descontextualização e sensacionalismo, não cabe ao The Intercept provar a autenticidade das mensagens, cabe aos Jatoeiros provar que elas são inautênticas, principalmente depois que um Jatoeiro comprovou parte das mensagens

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