Sobrevivendo às tentativas de memoricídio: a Constituição faz 33 anos, por Cristiano Paixão

Memoricídio, na definição proposta por Grmek, é a “intenção deliberada de destruir todos os traços da existência histórica e cultural de uma nação em um determinado território”.

do Coletivo Transforma MP

Sobrevivendo às tentativas de memoricídio: a Constituição faz 33 anos

por Cristiano Paixão

No último dia 5 de outubro, a Constituição da República completou 33 anos. Esse dia sempre foi celebrado como uma data importante, como símbolo de uma nova época, como marco no longo e difícil processo de redemocratização vivido pelo Brasil após o fim do regime militar. Neste conturbado ano de 2021, não chega a ser surpreendente que a data não tenha sido mencionada de modo significativo na imprensa, com raras exceções.

Na verdade, a ordem constitucional democrática nunca esteve tão ameaçada. E percebemos que não é só o seu futuro que vem marcado por um cenário de incerteza. O passado da Constituição também enfrenta um risco inédito: o da extinção da memória.

Um historiador da ciência franco-croata, Mirko Grmek, cunhou uma expressão que se tornou de uso comum a partir da década de 1990: memoricídio. Ele se referia ao contexto das guerras balcânicas daquela década, marcadas por violência, apagamento de arquivos, limpeza étnica e outras graves violações a direitos humanos. O termo se aplica a diversos processos históricos, e parece particularmente apropriado para a distopia contemporânea experimentada no Brasil.

Memoricídio, na definição proposta por Grmek, é a “intenção deliberada de destruir todos os traços da existência histórica e cultural de uma nação em um determinado território”. A expressão vem sendo usada por professores que têm uma presença pública nas discussões sobre as heranças autoritárias do Brasil, como Giselle Beiguelman e Marcio Seligmann-Silva. O incêndio do Museu Nacional, ocorrido em setembro de 2018, foi uma das manifestações mais brutais desse cancelamento da memória, e o termo foi lembrado para classificar aquele incêndio catastrófico (Cf. Giselle Beiguelman, Memórias da amnésia – políticas do esquecimento, São Paulo, SESC, 2020, p. 214-218).

Em alguns textos publicados ao longo dos anos de 2020 e 2021, tenho observado que a crise política e social vivida no Brasil contemporâneo é, antes de tudo, uma crise impulsionada por práticas desconstituintes. Em artigo subscrito com Ricardo Lourenço Filho, mencionamos a destruição dos direitos sociais. Em outros textos, fiz referência ao uso oportunista da pandemia da Covid-19, ao desmonte da estrutura governamental de proteção à igualdade racial, cultura, patrimônio histórico e meio ambiente e ao processo de desconstrução “por dentro” da Constituição, em especial os direitos fundamentais, por meio de leis ordinárias e políticas do Executivo.

Analisadas numa perspectiva histórica, essas práticas desconstituintes podem ser compreendidas como tentativas de memoricídio contra a Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988. Não por acaso, todos esses movimentos de ataque atingem o texto constitucional naquilo que ele tem de mais democrático e inovador: a tutela do meio ambiente, a expansão da educação (em especial a educação pública), o combate ao racismo, a universalização dos direitos sociais, o acesso à cultura.

E essas atitudes memoricidas se refletem num campo específico da dinâmica constitucional brasileira: as políticas de memória e reparação.

O texto promulgado em 1988 foi produzido por uma Assembleia Nacional Constituinte. Ninguém poderia afirmar, em fevereiro de 1987, no início dos trabalhos constituintes, que a futura constituição conteria alguma previsão referente à reparação às vítimas do regime militar que perdurou de 1964 a 1985. Como documentado em várias pesquisas sobre o tema, prevalecia, naquelas semanas iniciais de 1987, o discurso voltado à conciliação e à transição “sem traumas” para a democracia. Grande parte dos atores políticos envolvidos com a Constituinte tinha essa percepção.

A Constituinte, contudo, criou uma dinâmica própria, que permitiu uma interlocução maior com a sociedade civil e que possibilitou um processo de escrita do texto sem a adoção de um anteprojeto. A Assembleia foi dividida em oito comissões temáticas, cada uma delas com três subcomissões. No primeiro semestre de 1987, havia 24 subcomissões na Constituinte realizando audiências públicas, com a escuta de setores ligados ao campo temático de cada subcomissão. Houve ampla e extensiva cobertura da imprensa e, como não poderia deixar de ser, foram surgindo tensões entre a Assembleia e o Governo Sarney, que tinha grande apreço pelo discurso da transição e que contava com muitos militares em seus quadros.

Essa libertação da Assembleia em relação aos estreitos limites da transição “suave” conduziu, num processo bastante acidentado e com muitos percalços, à aprovação de um texto inovador e com intensa vocação democrática. E com a previsão de um artigo específico para a reparação de vítimas do passado autoritário brasileiro. O art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabelece o direito à reparação a todos que sofreram atos de exceção no período compreendido entre os dias 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Com base nesse dispositivo foram inauguradas políticas de memória e reparação, com a criação de dois importantes organismos de Estado, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (Lei    nº 9.140/95) e a Comissão de Anistia (Lei nº 10.559/2002). Essas duas comissões apreciaram milhares de requerimentos formulados por vítimas e familiares. O resultado dessas análises permitiu que fosse trazida a público a pesadíssima herança da ditadura: desaparecimentos, execuções, torturas, perseguições de todo o gênero.

Todo esse trabalho está agora ameaçado. Recente matéria publicada no jornal O Globo traça o quadro atual das políticas de reparação. Comissões ocupadas por defensores da ditadura, requerimentos sendo indeferidos em sua grande maioria, resistentes e opositores da ditadura sendo qualificados como “terroristas”. A negação pura e simples do texto constitucional. Trata-se de mais uma prática desconstituinte – e das mais perversas, porque envolve uma inversão do sentido da Constituição e atinge vidas concretas, projetos de superação do passado traumático, sonhos de uma reparação no tempo presente.

Vivemos hoje uma luta pela afirmação da Constituição que compreende a manutenção de uma memória democrática e inclusiva. E aqui se apresenta, mais uma vez, a dimensão temporal do fenômeno constitucional. Para desqualificar os avanços e conquistas desses 33 anos de Constituição, opositores do regime democrático precisam construir narrativas artificiais que denotam uma nostalgia restauradora de um passado idílico, feliz. Como observei em recente artigo, essa é uma tentativa fadada ao fracasso – não é possível converter um torturador em herói nacional, não é possível lançar no esquecimento as graves violações a direitos humanos praticados no período da ditadura.   

A história constitucional é construída por diversos processos, atores, práticas sociais que não podem simplesmente ser apagadas. 33 anos de experiência constitucional democrática não podem ser desconsiderados. Por isso é possível falar em tentativa de memoricídio, já que as constituições, como se sabe, são frutos de processos de lutas que ocorrem na esfera pública, que exigem apresentação de razões universalizáveis. E é muito difícil defender, de modo explícito, a destruição do meio ambiente, a diminuição do acesso à educação e à cultura, a prática do racismo, a diminuição de direitos sociais. Além disso, é indefensável que comissões de Estado voltadas ao reconhecimento e reparação de violação praticadas contra os direitos humanos atuem de modo contrário à Constituição. Nos seus 33 anos, o texto constitucional enfrenta um enorme desafio. E é no presente, nas lutas contemporâneas e na reiteração de seu conteúdo democrático e inclusivo que residem as perspectivas de futuro da atual Constituição. Contra o memoricídio, contra as práticas desconstituintes.

Cristiano Paixão – Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Professor Associado da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Eixos, planos,ficções: grupo brasiliense de direito e arte” (CNPq/UnB).

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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