STF, antipolítica e os riscos da onda antidemocrático-reacionária: para onde caminha a Corte Suprema?

No governo da antipolítica, seus protagonistas preferirão – como vêm preferindo – a via da imposição do poder, da falta de transparência e da ausência do devido processo legal.

do Jornal da USP

STF, antipolítica e os riscos da onda antidemocrático-reacionária: para onde caminha a Corte Suprema?

por Gustavo Justino de Oliveira

A autonomia e a independência do Poder Judiciário são conquistas civilizatórias recentes, sobretudo quando comparadas à vida pregressa dos Poderes Legislativo e Executivo (sécs. 18 e 19). Historicamente, os sistemas de Justiça no mundo vão ganhando força à medida que o Estado de Direito Democrático, o constitucionalismo e uma Carta de Direitos Fundamentais vão se (auto)fortalecendo na ordem jurídica de um país.

Este círculo virtuoso se intensifica quando se é almejada a plena efetivação do direito de acesso à Justiça – este, em si, um direito fundamental previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição de 1988. É um Poder Judiciário autônomo e independente que confere concretude e materialidade a um sistema de justiça encorpado o suficiente para jamais deixar de apreciar ameaça a qualquer direito.

Ocorre que a função jurisdicional exercida pelo Poder Judiciário não esgota as funções desempenhadas pelos tribunais. O Judiciário do século XXI exerce inúmeras outras funções tão relevantes quanto à de solução de conflitos, aí incluídas (a) função de política judiciária – a qual atribui norte e sustentação ao sistema de justiça como um todo, e que no Brasil é liderada sobretudo pelo STF e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – e (b) outra função obrigatória, mas dotada de essencial simbologia: sempre fazer valer as garantias materiais e processuais a todos que recorrem ao Judiciário. Simbólica, pois como bem sustenta Boaventura de Sousa Santos, a inacessibilidade, a morosidade, o custo ou a impunidade, no limite, afetam a própria credibilidade simbólica da tutela judicial.

Existem também fenômenos contemporâneos como o ativismo judiciário e a judicialização da política, que acabam por conferir ao Judiciário perfis que lhes aproximam dos perfis funcionais mais característicos do Executivo e do Legislativo. Tudo isso é novo, e no dia a dia das Cortes esses processos vão sendo afinados e calibrados à luz das demandas sociais, as quais acabam por determinar a atuação do Judiciário em terrenos que ainda não lhe são totalmente conhecidos, ensejando por vezes uma hiperexposição e altas expectativas nem sempre muito salutares junto à sociedade. De outro lado, o próprio Judiciário por vezes se politiza demasiadamente.

Em tempos difíceis e de quase anomia em que vivemos – com acentuadas polarizações políticas perpetradas por um presidencialismo de confronto, predomínio de extremismos antidemocráticos, ditadura das redes sociais e fake news, entre tantas outras atrocidades – não seria de se espantar que é exatamente a credibilidade do Judiciário que acabaria por se tornar alvo preferencial de fortes ataques de atores políticos que acabam por exercer a “antipolítica” (AVRITZER, Leonardo. Política e antipolítica: a crise do governo Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020).

No governo da antipolítica, seus protagonistas preferirão – como vêm preferindo – a via da imposição do poder, da falta de transparência e da ausência do devido processo legal.

Essas ações formam artilharia pesada contra o regime democrático, as liberdades públicas e as garantias fundamentais, desdemocratizando o exercício legítimo do poder, em provável rumo a uma autocracia.
Não se enganem os incautos: este plexo de condutas e atrocidades antidemocráticas nada tem de conservador. Trata-se de uma Agenda Reacionária que vai espraiando seus tentáculos, tentando erodir e corroer a muralha institucional que, ao final, é a única que pode conter arrombos arbitrários desta natureza: o STF.

Não por outro motivo, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt identificam cooptação, ocupação e enfraquecimento das Supremas Cortes como um receituário para a implantação de regimes totalitários e ditatoriais no mundo contemporâneo (2018: 77-87).

Portanto, eis as perguntas que merecem ser formuladas nesse cenário: o STF encontra-se suficientemente blindado pela ordem constitucional para não sucumbir aos ataques que lhe são desferidos pela antipolítica? Como a Corte pode se prevenir dos riscos gerados por essa onda antidemocrática que tomou de assalto o Brasil? O Supremo corre o risco de se tornar em si instituição mais conservadora e reacionária?

Instada a decidir sobre vários temas que formam a face antidemocrática e reacionária da agenda governamental, nos últimos dois anos, a Corte tomou medidas de defesa da ordem constitucional, formando incipiente, e ainda precária, Jurisprudência de Democracia Defensiva, compreendida como aquela que visa a salvaguardar e impedir que ações violentas ou baseadas em discursos de ódio – perpetrados por grupos extremistas de quaisquer matizes ideológicos – possam ameaçar ou vulnerabilizar a ordem constitucional e democrática de um país.

A meu ver, encaixa-se perfeitamente neste conceito o inquérito instaurado pelo STF para apuração de fake news e ataques frontais à instituição e seus ministros, tendo sido sua constitucionalidade devidamente reconhecida em decisão do Plenário da Corte, em 18 de junho de 2020.

Porém, as investidas contra a credibilidade institucional do STF não têm origem unicamente do lado externo. Partem, por vezes, do seu âmbito interno. Exemplificando: obrigada a decidir originariamente sobre processos que envolvem corrupção praticada por autoridades, agentes públicos e empresários de todos os partidos e matizes políticos –intensificada a partir do Mensalão e da Lava Jato – a Suprema Corte acabou por se desnudar demasiadamente perante a sociedade. Muitas vezes, com decisões erráticas ou altamente casuísticas, sobretudo porque vários ministros entendem que podem decidir de modo monocrático e isolado. Afrontaram decisões tomadas pelo Plenário e Turmas, dando origem a uma jurisprudência destoante de seus próprios precedentes e julgados colegiados. Tais posturas enfraquecem e desautorizam a instituição, chamuscando a sua credibilidade.

Portanto, soa mandatório ao STF desenvolver táticas de legítima defesa democrática da ordem constitucional, evitando posturas internas autofágicas, que podem servir de estopim e de munição para ações autocráticas desestabilizadoras, as quais podem desencadear tentativas de rupturas da sua institucionalidade, que nenhum bem fará ao Estado de Direito Democrático e à sociedade brasileira.

Gustavo Justino de Oliveira, professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP

Redação

1 Comentário

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  1. Interessante, bem escrito. Mas falha ao dar nome aos bois.
    Primeiro, temos ministros que decidem pela literatura e outros porque assim o podem. Alguns se arvoram ao papel de civilizadores, agindo sob a égide de seus próprios pontos de vista que vão além da lei, presas do wishful thinking transfigurados em cruzados de um ideário delirante e em legisladores ad hoc, logo, em boçais usurpadores.
    Outros, ainda, não cabem dentro do próprio ego e parecem decidir pelo apupo do populacho exacerbado pela caixa de ressonância fornecida pela média. E, por fim há aqueles que decidem por viés político, sem nos esquecermos dos que decidem em contrário ao que preconizaram e defenderam no passado, isto é, contra sua própria hermenêutica, seja na dimensão ontológica, seja na epistemológica.
    Somam onze, noves fora, sobram quantos?

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