Para os participantes do estudo, um dos pilares de uma relação é a confiança. Mas, contraditoriamente, eles acreditam que o controle das redes sociais não é uma violência e sim uma prova de amor – Foto: siraf72 via VisualHunt – CC
do Jornal da USP
Tecnologia dá novos contornos à violência nas relações afetivas
Segundo estudo, muitos adolescentes impedem parceiros de ter amizade com sexo oposto e querem acesso ao conteúdo do celular
por Joice Soares
As novas tecnologias têm sido aliadas na propagação de violência nos relacionamentos dos jovens, sejam em relações longas ou momentâneas. É o que mostra uma pesquisa de mestrado desenvolvida na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da USP pela socióloga Ana Beatriz Campeiz. O estudo analisou as formas de violência presentes nas relações afetivas entre os jovens.
“Na pesquisa ficou bem evidente que as redes sociais como o Instagram, Facebook e WhatsApp facilitam o controle e a manipulação da vida do companheiro, pois os adolescentes insistem em ter acesso a todo conteúdo dos celulares, além de impedir que o parceiro tenha amizades com pessoas do sexo oposto”, afirma Ana Beatriz.
Participaram do estudo 39 jovens, com idade entre 15 e 18 anos, de duas escolas estaduais do interior paulista. A pesquisadora diz que existem poucos estudos nessa área e seu objetivo foi coletar informações para novas propostas de políticas públicas que incentivem relações mais saudáveis.
De acordo com a socióloga, para os participantes do estudo, um dos pilares de uma relação é a confiança. “Contraditoriamente, eles acreditam que o controle das redes sociais não é uma violência e sim uma prova de amor. Quando negam esse acesso, isso é interpretado como uma forma de traição”, diz.
Para evitar discussões por conta das redes, os jovens buscaram outra alternativa que possibilita um controle mútuo das ações do companheiro: o perfil comum. Segundo a pesquisadora, esse comportamento expõe a fragilidade das relações e reforça a violência, entendida como forma de amor.
Para M.A., uma adolescente participante do estudo, “você não dá a senha se não amar ele, porque ele vai saber da minha vida toda ali e, se ele me ama, também tem que dar”.
Ana Beatriz afirma que as crenças de violência como forma de amor e o mito do amor ideal são fatores determinantes para a violência na intimidade, considerada também como violência de gênero. “Os jovens justificam atitudes como ciúme excessivo e o controle da vida do outro como aceitável e equiparam atos violentos ao cuidado.”
A pesquisadora conta que esses jovens acreditam em um amor romantizado, que deve suportar e superar tudo. Com isso, auxiliam a propagação de preconceitos como o machismo e a misoginia. “Nesta pesquisa, os adolescentes desqualificam a mulher o tempo todo”, lamenta a pesquisadora.
Os resultados apontados pela pesquisa mostram também a mulher como agressora. O ato violento é aceito, pois os jovens consideram essas agressões menos graves (tapas, beliscões, arranhões). Já quando são vítimas, diz Ana Beatriz, as mulheres recebem rótulos e são penalizadas, diferente de quando o homem é o agressor, que é considerado natural e aceitável. Entretanto, quando o homem era vítima, eles tinham dificuldade em compreender, pois era fora do que estavam habituados e do que é naturalizado. “Há presença de tabu e reprodução de estigmas de que a mulher sempre é a vítima e culpada, sempre a dominada e o homem, sempre o dominante.”
A violência e suas faces
Quando o assunto é violência, diz a pesquisadora, muitos associam diretamente com a agressão física, mas existem outras faces dessa tragédia. “Essa ideia é ainda mais recorrente quando é reproduzida pelos veículos de comunicação”, diz. A afirmação da pesquisadora se confirma quando analisado o caso da advogada Tatiane Spitzner, morta recentemente, no qual o principal suspeito é o marido. Não bastasse a violência física sofrida pela advogada, mostrada pelas câmeras de segurança do prédio onde morava, testemunhas relataram que a violência psicológica era recorrente na relação entre ela e o marido.
No estudo de Ana Beatriz, esse tipo de violência, psicológica e emocional, é encontrada principalmente nos novos modelos de relação entre os jovens, como os “ficantes” e crushs (pessoa na qual temos uma “queda”, um interesse).
“Tem até violência quando é só crush também. Tipo, ele é meu crush e não pode ‘ficar’ com mais ninguém, só comigo, senão eu largo“, diz M.R, adolescente entrevistado na pesquisa.
Segundo Ana Beatriz, violências psicológicas e emocionais atingem a autoestima e autoconfiança das vítimas e causam marcas que permanecem ao longo da vida. “Quando se trata da agressão emocional, a vítima não consegue enxergar o que está acontecendo para colocar um fim na relação.”
O não reconhecimento de determinados atos como coação sexual foi outro fator que chamou a atenção da pesquisadora. “Os jovens associam o estupro ou o forçar o parceiro a praticar o ato sexual como coação apenas quando o parceiro é virgem.” Entretanto, afirma Ana Beatriz, a violência sexual pode acontecer em casais mais íntimos. “Durante a pesquisa foram vários os relatos de adolescentes que se sentiram forçados a beijar o/a parceiro/a, além de trocar carícias quando não queriam. Eles não reconheceram esses atos como violência por achar que, por serem namorados, é algo normal.”
“Eu vejo as conversas do celular dela todo dia, não tem essa de ter senha. Eu não confio em amigos, em amigas.” Assim se expressa H.F., adolescente que participou da pesquisa.
Ciclo vicioso
Vários estudos já relataram o círculo vicioso da violência e, na pesquisa da EERP, esse fato se confirma. Alguns adolescentes entrevistados relataram e justificaram ações de violência devido à presença dessa realidade em suas famílias. Segundo Ana Beatriz, antes de relatar algo vivenciado por eles, os jovens citaram as ações dos pais, tios, avós.
“Meu padrasto também. Ele bate na minha mãe porque ele cresceu vendo o pai bater na mãe dele. A mãe dele que falou pra minha mãe. Então, depois de um tempo, aí ele bateu na minha mãe”, conta M.E., jovem que participou do estudo.
Para a pesquisadora, o fato de vivenciar a violência intrafamiliar leva ao aumento dos rótulos para os jovens, que acabam sendo julgados como possíveis novos autores de violência, mas, segundo Ana Beatriz, “é uma espécie de ciclo hereditário, mas esta afirmação não pode ser generalizada. Cada ser humano é único e deve ser olhado de maneira singular.”
O estudo faz parte do mestrado A violência nas relações de intimidade entre os adolescentes sob a perspectiva do Paradigma de Complexidade, defendido no início do mês de junho e orientado pela professora Maria das Graças Bomfim de Carvalho, da EERP.
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Enviesado demais!
Não sei se o Jornal da USP quis afagar um dos campi secundários da universidade ou se só quis dar corda para um discurso que parece “politicamente correto”.
O que é evidente (para quem tem mais experiência com pesquisa sociológica) é que proposições e conclusões como as que são apresentadas aqui (ao menos da forma como são apresentadas) são muito frágeis, enviesadas e, ao que tudo indica, apenas condicionadas por wishful thinking (“pensamento desejante”: “algo é assim porque eu gosto de pensar que assim deva ser”).
Primeiro, que não se produz ciência para “novas propostas de políticas públicas que incentivem relações mais saudáveis”. Ciência se produz para alargar o horizonte do conhecimento. Se se descuida disso, em nome de imperativos “aplicados”, perde-se o horizonte crítico e questionador, em nome da submissão a uma agenda ideológica prescritiva. Isso foi a norma na Europa medieval católica sob a hierarquia absolutista da Igreja e na China pós-Revolução Cultural. O resultado foi a regressão do conhecimento à jaula do meramente autorizado.
E depois, sobre o que seja “saudável” no mundo sociocultural pesarão sempre infinitas desconfianças. Nem o fantasma durkheimiano de um “estado de anomia” conseguiu dar conta do que possa ser socialmente “saudável”, por oposição a algo presumivemente “patológico”. Em termos de sociedade e cultura, ou as coisas são inteligíveis ou ininteligíveis; ou legítimas ou ilegítimas.
De outra parte, sobre a relação entre os termos “controle” e “violência”, a autora não faz qualquer questionamento hermenêutico ou simbólico (semiótico), simplesmente lhe antepõe um discurso moral autoritativo (da ordem da mística romântica liberal) do tipo “todo controle será sempre uma violência”. O universo cultural é sempre muito mais complexo que essa classe de reducionismo.
Equiparar imeditamente “violência na intimidade” com “violência de gênero” é apenas querer reverberar um discurso pré-fabricado, de forma mecânica e simplista, sem qualquer consideração por qualquer coisa que não se enquadre nos clichês triviais de um discurso que se quer “na moda”. Isso, sim, poderia, por sua vez, ser chamado de “violência discursiva”.
A ideia de que acreditar no “amor romantizado” (uma construção cultural que tem início por volta do século XI no Ocidente) significa auxiliar na “propagação de preconceitos como o machismo e a misoginia” corresponde, na verdade, a fazer das construções culturais uma tábula rasa passível de ser varrida pelo voluntarismo de uma nova “verdade única” (bem no estilo, aliás, da Revolução Cultural Chinesa).
Isso tudo não quer dizer que não haja (ou não possa haver) uma forte carga de violência veiculada no universo das novas tecnologias de comunicação. Só que essa violência não responde, necessária, rasteira e simplificadamente, a uma “dominação de gênero”.
E se ela corresponder, por exemplo, à maximização do narcisismo predatório, em uma sociedade movida pela lógica da absolutização do consumo, uma sociedade na qual o Outro e o afeto passam a ser apenas “bens” apropriáveis para o deleite de um indivíduo maximamente egoísta?…
Um artigo publicado no ano passado, na revista científica Aggression and Violent Behavior, por uma equipe de pesquisadores da Universidade da Califórnia (https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1359178916301446?via%3Dihub), revela, a partir de dados oficiais das agências de saúde norte-americanas entre 2008 e 2013, que lá as agressões sexuais femininas não ocorrem de forma meramente “residual”, pelo contrário, são de incidência frequente e praticamente comparável às agressões sexuais masculinas.
O problema está no “machismo”? ou o problema está numa forma de sociabilidade determinada, atinente a um certo contexto sociocultural?
Há um problema muito sério de análise causal em todas as proposições da autora desse trabalho.
Ao reduzir a ciência ao mero comentário escolástico, segregado por uma ideologia messiância (essa do “politicamente correto”), que se quer a “verdade única”, trabalhos como o dessa mocinha da USP de Ribeirão, ao invés de produzirem ciência, não produzem mais que uma forma de obscurantismo. Ao invés de buscar a complexidade e alargar o conhecimento (e, com isso, oferecer novos subsídios para o debate social), tudo o que simplificações desse tipo fazem é tentar domesticar o conhecimento às ordens de uma doutrina inquestionável.