Tenentismo e PMismo, por Ivan Colangelo Salomão

Se os tenentes tinham ideias pelas quais lutar e, eventualmente, morrer, o PMismo não passa de motim travestido de insubordinação moralizante.

Divulgação Governo do Estado de São Paulo

Tenentismo e PMismo

por Ivan Colangelo Salomão

Trata-se, naturalmente, de fenômenos essencialmente diferentes. Tanto em relação às respectivas origens quanto aos demais condicionantes políticos, sociais, ideológicos e econômicos a eles subjacentes. Inobstante as diversas e expressivas especificidades que, à primeira vista, desautorizam qualquer esforço de cotejamento histórico, observam-se determinadas correspondências que não devem ser descartadas por quem se propõe a entender os meandros da política brasileira. Ainda que fortuitas, as similitudes não podem ser menosprezadas.

Apartados por um século, ambos os movimentos refletem uma faceta inconclusa da evolução civilizacional brasileira: a incapacidade de se republicanizar a atividade política. Se a história do país esteve marcada pela ingerência militar em assuntos civis desde pelo menos a Guerra do Paraguai (1864-1870), os fenômenos em tela ostentam agravantes ainda mais temerários. Se o advento republicano de 1889 e o golpe de 1964 foram encabeçados pela alta cúpula das Forças Armadas, a Revolução de 1930 e o motim de 2022 foram gestados, por sua vez, na baixa oficialidade das Armas. Não por acaso, apenas os primeiros desenrolaram-se sem o recurso à violência física.

O tenentismo, gradualmente fomentado no decorrer das primeiras décadas do século XX, fez-se nacionalmente conhecido a partir de 1922, quando eclodiu a primeira bernarda em protesto à eleição de Artur Bernardes – o mais reacionário dos presidentes civis da República Velha. Um ano antes, a imprensa publicara cartas atribuídas a Bernardes nas quais o então candidato direcionava críticas contundentes ao Exército, centradas na figura do ex-presidente Hermes da Fonseca. Sua relação com as Forças Armadas deteriorou-se sobremaneira quando o ainda presidente em exercício Epitácio Pessoa ordenou, no início de julho, o fechamento do Clube Militar e o encarceramento do marechal gaúcho.

Tratou-se de um caso clássico de fake news, pois o documento divulgado não saíra da pena de Bernardes. Mas foi o suficiente para inquietar os grupos armados que já se indispunham com o establishment do Café com Leite. Na madrugada de 5 de julho, 300 militares sublevaram-se no Forte de Copacabana, a mais conhecida revolta tenentista. A rebelião paulista de 1924 e a lendária Coluna Prestes deram seguimento à aura de insurreição contra o poder constituído.

Se se puder considerá-lo como um projeto político, o tenentismo repousava, em primeiro lugar, numa sanha moralizadora. Reputavam-se salvacionistas na medida em que alegavam agir em defesa das instituições republicanas. Críticos ao sistema de poder e às oligarquias cafeicultoras, advogavam um governo forte e centralizado – o já clássico eufemismo a acobertar autoritarismos e arbitrariedades. Rechaçavam a democracia liberal ao estigmatizá-la como um modelo importado, alheio, pois, à realidade brasileira. Para tanto, baseavam-se em ideólogos (residentes e sem incursão pela astrologia) alinhados ao antiliberalismo hegemônico daquele momento, como Alberto Torres, Oliveira Viana e Azevedo Amaral.

Representantes de camadas da crescente classe média e dos trabalhadores urbanos – grupo no qual se recrutava a maioria de seus membros –, os tenentes incorporavam os anseios de setores sociais numérica, política e economicamente relevantes, mas marginalizados pela política oligárquica. Do ponto de vista econômico, defendiam o nacionalismo, a regulamentação de garantias trabalhistas e a intervenção do estado com vistas à industrialização. Tema caro ao universo militar, a tarefa última de defesa nacional exigia o estabelecimento de um parque industrial, sobretudo nos setores de base.

Conquanto difusa, controversa e pouco enraizada, não se pode acusar o tenentismo de rebeldia sem causa.

Guardadas todas as proporções possíveis, assiste-se, hoje, a novos assanhamentos inaceitáveis de forças legitimamente armadas do Estado brasileiro. Se os tenentes tinham ideias pelas quais lutar e, eventualmente, morrer, o PMismo não passa de motim travestido de insubordinação moralizante. Amorfo e a-ideológico, trata-se da expressão do que há de mais abjeto em setores minoritários das forças policiais brasileiras: corporativismo com pitadas de fascismo em defesa de um estado, literalmente, policialesco.

A ampla, geral e irrestrita destruição institucional a que se assiste nos últimos anos já é irreparável. Nada mais grave, porém, do que a anarquia meticulosamente instalada na área da segurança. Trata-se de quem lidará, nada menos, com a sacra distância entre a vida e a morte.

A politização de instituições e agentes públicos armados corrói o pilar fundante do sistema militar: o rígido senso de comando e hierarquia. Oficiais superiores usam terno e gravata. São meninos de vinte e poucos anos, teoricamente mais vulneráveis a arroubos subversivos, os que empunham fuzis de assalto.

Espero depositar (mais) este texto na gaveta das previsões que não deveriam ter saído da minha cabeça. Mas se há uma lição ensinada pela história é a da localização temporal das sedições autoritárias: elas moram no ínterim entre a derrota eleitoral do incumbente golpista e a posse do candidato vitorioso.

Que o acaso tenha misericórdia do povo brasileiro entre o pleito de 2022 e a posse de Luiz Inácio Lula da Silva.

Ivan Colangelo Salomão, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

1 Comentário

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  1. O Tenentismo nada tem a ver com PMismo. E não se repetirá nunca. O primeiro foi a Tempestade Perfeita que jogou esta Nação num século de Terceiro Mundismo, Anão Diplomático, ViraLatismo como pária mundiala partir de 1930. Um momento de crise e hesitação das Forças Armadas que permitiram que Amotinados produzissem um Quartelada de baixa patente que resultou na pior e mais longínqua Ditadura vivida neste país. O mais grave: transformou uma Nação Vanguarda, Cabeça e Porto Seguro da Humanidade. Uma das raras Democracias existentes metamorfoseada em rabo, Terceiro Mundo. Três Pensamentos Totalitários reunidos na mesma Quartelada Luiz Carlos Prestes, Getulio Vargas e Gaspar Dutra. Nazismo, Stalismo e Fascismo que se encontram no Golpe Ditatorial de 1930. O resultado é esta tragédia vivida até a aurora da chegada de um Presidente que realmente representa o Povo Brasileiro e tenta de todas as formas acabar com este século de Arbítrio, Fascismo, Esquerdopatia comandada por Elites arraigadas como cancros dentro do Estado Brasileiro. Elites que se mantém em Estatais, Ministérios, Autarquias, Universidades Públicas, ONG’s,… O “AntiCapitalismo Socialista” abastecido por nababescos Salários e Verbas Públicas, Indicações, Cargos Comissionados, Burocracia, Nepotismos, …ou seja este Brasil destes 91 anos que finalmente vai sendo retomado pelo Povo Brasileiro. O Cidadão Brasileiro representado por seu Povo dentro das PM’s entre Soldados rasos é a síntese desta evolução que se faz surgir a partir da última Eleição Presidencial. Do Povo, pelo Povo, para o Povo. Demorou, mas a Cleptocracia desmorona após quase 1 século.

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