Armando Coelho Neto
Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo.
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Terrorismo, Bozo, Lula e um sentimento de haver perdido nada, por Armando Coelho Neto

Era isso, e agora, em novo momento, a leitura do mundo era outra, já que cenas nebulosas do passado ganharam significado, o suficiente para entender o choro de Marias e Clarices.

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Terrorismo, Bozo, Lula e um sentimento de haver perdido nada

por Armando Rodrigues Coelho Neto

Escrevo a propósito de uma sobrinha de apenas dez anos que me trouxe um trabalho escolar: entrevistar alguém que viveu no tempo da ditadura. Não sei bem a que se presta um trabalho dessa natureza. Seria um professor ousado tentando fazer com que seus alunos diante da lição do passado possam entender o presente e planejar o futuro? Ou seria uma trama da tal “Escola Sem Partido”, absolutamente partidarizada, querendo mapear quem conhece quem, quem tem o pé na esquerda ou semente dela? Sem resposta, aceitei ser entrevistado com perguntas capciosas, verbalizadas em suave inocência.

Ela me perguntou sobre notícias que circulavam à época da ditadura. Disse àquela sobrinha, que o que sei não li, nem ouvi na rádio. Eu tinha apenas treze anos, num bairro de periferia de Recife. Lembro de pessoas queimando livros e folhetos na rua. Lembro que os homens que organizavam a cooperativa que vendia produtos mais baratos aos pobres, passaram a ser perseguidos e mal vistos. Mas, eram eles que iluminavam nossa sede de lúdico – com as festas de Carnaval, São João, Pastoril no Natal, soltavam fogos no Ano Novo.

Tempo!

Um daqueles organizadores passou um tempão escondido dentro de um bueiro, embaixo de uma barraca do irmão que consertava sapatos. Depois, fugiu para uma horta, onde ficara escondido – nem sei como, pois todo o bairro sabia. Finalmente preso, recordo as romarias de vizinhos para visitar o tal “Seu Oswaldo”. Não sei quanto tempo isso durou, nem quando entrou ou saiu da prisão. Mas lembro que dias após sair da prisão, ele faleceu. A esposa na rua em trajes precários, com mãos para o céu, pedia clemência a Deus, enquanto o filho dizia: os militares mataram meu pai. Nada disso ouvi nas rádios e não saiu nos jornais.

Eu vi e assisti… Até atingir a compreensão do que me viria tempos depois.

Tempo!

A expressão “fake news” não existia, mas um padre holandês da paróquia do bairro, onde vivi, encarregou-se de dizer que comunistas iriam cortar a cabeça das pessoas e pendurar nos postes. Não passou muito tempo, um outro padre de outra paróquia, Antônio Henrique, foi assassinado e seu corpo foi abandonado a menos de 300 metros de minha casa. Tinha marcas de tortura, estava queimado com pontas de cigarro, com as quais escreveram nele a sigla CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Hoje, no local onde foi abandonado, não há sequer placa alusiva ao fato. No terreno contíguo, foi edificada uma escola militar.

Pausa!

Tempos depois, estudando na Faculdade de Direito, colegas foram sequestrados na unidade do Exército que ficava ao lado. Presos, só sabiam que estavam ao lado da faculdade, por causa do inconfundível som do carrilhão que anunciava a hora e denunciava o lugar. Não fora isso, não saberiam onde estavam, depois de rodar a cidade com olhos vendados.

Terrorismo!

Era isso, e agora, em novo momento, a leitura do mundo era outra, já que cenas nebulosas do passado ganharam significado, o suficiente para entender o choro de Marias e Clarices. O país trôpego e claudicante viveu o alastramento da chaga da fome, do desemprego e do retrocesso social absoluto.

Tempo!

Entrou em cena um projeto popular liderado pelo ex-Presidente Lula. Milhões de brasileiros saíram da miséria absoluta num país que deixou a 13ª economia para se tornar a 6ª. Dos US$ 38 bilhões de reservas do início de gestão, chegou a ultrapassar a casa dos US$ 276 bilhões, valorizando o salário mínimo, sob invejáveis índices de desemprego na casa dos 4,8% (quase pleno emprego). Ao mesmo tempo, deu início à inclusão social de negros, índios e múltiplas vertentes sociais, melhorou o serviço público com recursos materiais e humanos.

O país conheceu a transparência absoluta na gestão das finanças públicas, até acontecer o pior: pobres passaram a circular em açougues, restaurantes e aeroportos… Imperdoável para as elites!

Reação!

Entrou em cena o ódio, o preconceito, a arrogância, a subversão do ordenamento jurídico e um surto de insanidade, de falso moralismo.  A ideia de Estado como avanço mínimo do processo civilizatório e promotor do bem comum caiu em desuso. É como se um bando de primatas, retidos até então nas trevas dos tempos, tivessem saído ensandecidos para atacar a civilização. O terror que vi e temi na infância passou a ser enaltecido. Ustra, um dos maiores torturadores da história nacional, serviu de senha para derrubar uma Presidenta, para depois acabar com a democracia mediante fraude eleitoral e implantar o marasmo.

Abre parêntesis!

Eis que gentes, partes de nosso acervo sentimental, que por instantes soaram humanizadas, que por algum tempo encantaram nosso imaginário, iluminando nossas almas, revelaram-se pobres de espírito. Gentes que passaram a compor o imaginário da Dor Civil, junto com o barulho de helicópteros agourando do alto a Democracia na Av. Paulista e na praia de Copacabana. Buzinas de caminhões zoando como telefonemas aterrorizantes nos porões do terror salazarista. Tudo isso… Todo o imaginário que lhe cerca cai como sal na ferida da Dor Civil.

Famílias e amizades destruídas, restou ao humanismo a difícil tarefa de abandonar suas bolhas, dar elasticidade ao perdão e tentar entender o sentimento primata dos que apoiam a barbárie.

Fecha parêntesis!

Eis o sentimento que Lula, um dos maiores Líderes da história nacional, tenta disseminar ao de sua saída da prisão de prisioneiro político, após um sequestro político-judicial. É possível que sob a perspectiva política, a postura do Gênio da Raça seja decisão racional e estratégica. Mas, do ponto de vista pessoal, a guerra ao Bozo e tudo o quanto ele representa deixou em muitos a Dor Civil, o amargo sentimento coletivo de haver perdido tudo. Pessoalmente, Nada! Absolutamente Nada! Por serem aquelas pessoas desprovidas de um sentimento que me é essencial: a empatia para com a dor da miséria, o flagelo da injustiça social na Terra.

Mas… Não sei bem como explicar tudo isso à minha sobrinha. Quem sabe, dizer terem sido tempos difíceis, coisa e tal, mergulhar na magia dizendo: “Era uma vez um dragão furioso que tentou destruir uma princesa engajada numa amorosa luta-lúdica e libertária, que enquanto flor, renasceria a cada Primavera…”

Beijo do

Tio Armando.

Armando Rodrigues Coelho Neto – jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-integrante da Interpol em São Paulo.

Armando Coelho Neto

Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo.

8 Comentários

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  1. Em tempos tão duros, a magia faz um bem enorme. Imaginar, sonhar, escapulir. Algo necessario para encarar a realidade.
    Ontem tivemos um encontro sobre o cinema brasileiro que encontra-se em perigo, apesar da otima safra de filmes que temos no momento. O balanço de tudo que estão implementando para enfraquecer o cinema engajado não é nada bom.
    Se formos somar tudo o que estão desmontando e aniquilando, vai ser preciso muitos Lula para reconstruir o Pais.

  2. Eu não consigo aceitar a análise de boa parte da esquerda de que o ódio e o preconceito das classes média e média alta com a ascensão dos mais pobres e ao seu acesso a lugares antes restritos economicamente foi o que mais alimentou o movimento de derrubada do governo de esquerda progressista de Dilma, PT e de Lula, que iniciou o processo de crescimento real do país.
    Se em 2010 Lula tinha 82% de aprovação e hoje mais de 60% da população o chama de ladrão, corrupto, chefe de quadrilha e que, junto com seus parceiros corruptos, levou o Brasil à crise atual de tanto que roubaram, que acabaram com a Petrobras de tanto que roubaram, não é por causa de preconceito que essas classes tem ódio. Os memes e frases de efeito nas redes sociais desde sempre não falam de ascensão social. Falam justamente do contrário. Falam da crise, da queda da renda, do emprego, do pequeno empresario fechando as portas por causa de um Lula e amigos que quebraram o país para se beneficiar dele roubando. Primeiro fazem algo de bom, depois roubam, traem a todos, deixam o povo sofrendo e vão curtir o produto de seus assaltos, produto esse que até hoje não encontramos. A campanha do bozo foi baseada nisso, no roubo, na desilusão por um país quebrado, corrupção sem limites, combate a essa esquerda que levou todos a falência enquanto os ladrões tem vida boa com o produto do roubo, se beneficiando do STF.
    A esquerda ainda parece se recusar a aceitar o trabalho bem sucedido, no final, da imprensa corporativa que ao longo de mais de 10 anos atuou em conjunto, até ferindo as regras de concorrência entre elas, dando furos umas para as outras, propagando a mesma mensagem, a mesma análise, o mesmo ataque e a mesma, mesmíssima omissão em relação a todos os demais.
    Esse, na minha humilde opinião, é o motivo real de tanto ódio. Boa parte da população aceitou e consolidou em suas mentes praticamente toda a narrativa da imprensa, sem questionar, até porque todas as 7 grandes corporações de imprensa brasileira falam a mesma coisa nos últimos 10 ou 15 anos. Como questionar isso?
    Para mim tudo isso foi uma grande farsa, mas eu simplesmente não consigo convencer amigos de mais de 20 anos ou pessoas da família de que tudo isso é uma grande farsa. Simplesmente é impossível. Eu não sei quando as pessoas vão perceber tudo isso. Se depender da imprensa corporativa brasileira, nunca mais. Por isso eu acho que a esquerda brasileira, está mais do que atrasada em fortalecer uma rede de comunicações honesta, transparente e coesa via internet para mudar isso. A imprensa tradicional está acabando, lentamente, mas está. É hora de trabalhar.
    E para aqueles da esquerda que ainda cobram autocrítica, uma dica: o processo de derrubada do PT do poder foi bem sucedido, porém começou em 2005 com o mensalão e só foi concluído, com sucesso, em 2016 com a queda de Dilma e 2018 com a prisão de Lula. Foram 13 anos de ataques para conseguir derrubar um grupo de governo que, também, por 13 anos teve tanto sucesso que mesmo com os ataques se reelegeu 3 vezes e foi para o segundo turno em 2018 tendo mais de 30 milhões de votos. Isso não é pouca coisa.
    A comunicação é tudo. Chega de lamúria, chega de lamentos, chega de autocríticas. A esquerda e os partidos não são Jesus Cristo para ficarem se penitenciando e se criticando. Se a esquerda levar um tapa e der a outra face, levará mais dois tapas. Se se curvar levará mais dois chutes no traseiro. E já levou.
    Será que ninguém vai aprender nada? Jesus Cristo está em outro plano. Vamos lá.

    1. Meu caro. Citei o ódio. Vc explicou, abriu o leque como esse ódio se espandiu. Nenhum dos exemplos se esgotam em si. O ódio tem participação objetiva e tem muitas origens. A ascensão do pobre, por exemplo, gerou sentimento de empobrecimento na classe média. O pobre encostou nela, mas ela não encostou no rico. Eis um dos ódios.

  3. Antes da derrubada da Dilma, fazíamos um acompanhamento das notícias nos jornalões e na Globonews. Os fatos que observamos foram:
    Desde o início do Lula 1, a mídia fez oposição sistemática ao PT e ao Lula (depois à Dilma);
    Porém, passou de oposição para guerra, no exato momento em que o governo mandou os bancos públicos baixarem os juros, o que acabou obrigando os demais bancos a fazer o mesmo.
    Que cada um tire as conclusões que quiser, mas eu não endossaria a afirmação de que o golpe ocorreu por coisas do tipo “pobres passaram a circular em açougues, restaurantes e aeroportos… “.

    1. Eu acredito que para cada classe social há uma explicação diversa. Para a alta classe média foi determinante a ascensão das classes inferiores e a percepção da redução da diferenciação entre as classes, aproximando os novos agregados aos escravos de outrora. Para as classes médias e para as classes baixas o que marcou a guinada “conservadora” foi a campanha midiática diária e uniforme contrária ao Lula e ao PT. Para as elites, por fim, a tentativa de alterar o jogo do rentistas, forma moderna adotada para a espoliação do Estado, determinou a quebra do grande acordo nacional.

  4. Eu nao tenho dúvida que a pseudo classe media brasileira, assim como atualmente a boliviana, se ressentiu da melhoria de vida daqueles que, na sua opinião, jamais deveria ter saído dos rincões. Ou FHC, representante desta “classe média”, ao destilar seu ódio contra mais uma eleição vitoriosa do PT não vomitou seu preconceito ao atribuir a vitoria do PT aos “rincoes” do Brasil?
    Pesquisas não atingem “rincoes” e talvez por isso se propague que metade da população acredita ser Lula um “ladrão”, apesar de que sempre que objetivamente questionados sobre o que Lula teria “roubado” , integrantes desta parcela apenas balbuciam respostas ininteligíveis ou se fazem de idiotas.
    Sim, Haddad recebeu 47 milhões de votos no 2o turno, mas porque calaram Lula que foi proibido até de dar entrevistas antes do termino do pleito. Não houvesse o conluio, e outras ações em processo de esclarecimento, daria Haddad.

  5. Texto excelente!
    Nada dar mais crédito do que falarmos sobre uma situação da qual vivenciamos e/ou presenciamos , no caso um pouco dos horrores da época da Ditadura Militar, mesmo sem uma compreensão completa por sermos uma ou um pré-adolescente (Armando).

    Mas para os Bolsopatas não existiu Ditadura…

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