Trilussa, números e milícias¹
por Lúcio Verçoza
Às 5 horas da tarde. Eram 5 horas em ponto, quando Trilussa redigiu os últimos versos do seu Livro Mudo. Lá fora, um carnaval em máscaras, gôndolas e avenidas. Nos batalhões e porões, milícias e mais milícias, armadas. Trilussa não sabia dirigir retroescavadeira, então guiava suas palavras como um vagalume que ilumina a noite:
[Números]
Eu valho muito pouco, sou sincero,
dizia o Um ao Zero,
no entanto, quanto vales tu? Na prática
és tão vazio e inconcludente
quanto na matemática.
Ao passo que eu, se me coloco à frente
de cinco zeros bem iguais
a ti, sabes quanto fico?
Cem mil, meu caro, nem um tico
a menos nem um tico a mais.
Questão de números. Aliás é aquilo
que sucede com todo ditador
que cresce em importância e em valor
quanto mais são os zeros a segui-lo.
O Duce chegou ao poder pelo voto. Quando era deputado, afirmava abertamente que as mulheres eram inferiores aos homens. Muitos riam de suas declarações excêntricas e grosseiramente caricatas, outros o seguiam trajando camisas negras e gritando: “Duce! Duce! Duce!”. Após a grande marcha sobre a capital, foi eleito para o posto mais alto do país. A constituição não foi desmantelada no primeiro momento do seu governo, o estado policial foi ganhando corpo aos poucos, ano a ano, até o poder de polícia se converter inteiramente em poder da milícia.
No dia em que Trilussa redigiu os últimos versos do seu Livro Mudo, vários amigos seus estavam no cárcere, alguns sendo torturados, outros assassinados – simplesmente por fazer oposição ao Duce. As eleições para o parlamento italiano foram suspensas, livros eram censurados e Trilussa escrevia sobre números e animais para falar de gente:
[A justiça ajustada]
Júpiter disse à Ovelha: – São injustos
e odiosos, além disso, contra a lei,
os sucessivos sustos
com que os lobos te afligem, eu bem sei!…
É melhor, entretanto, que suportes
com paciência os agravos: a questão
é que os lobos são fortes
demais, para não ter razão…
O Livro Mudo foi publicado em 1935, os censores só entenderam a linguagem de sinais de Trilussa depois que o livro já havia falado. A tiragem esgotou rapidamente.
No ano seguinte, o poeta espanhol García Lorca seria assassinado em Granada, cidade do país vizinho. Não se sabe se foi às cinco horas da tarde, mas para todos que o leram é como se fosse às 5 horas em ponto. O sangue vermelho sobre a grama verde, “por sob a lua gitana, as coisas estavam mirando-o e ele não podia mais mirá-las”. Mataram Lorca, mas não mataram a sua poesia.
Trilussa sobreviveu, morreu apenas em 1950. Não foi de susto, de bala ou vício, por sorte, sua morte foi de morte morrida. Cinco anos antes de seu coração parar de bater, viu o Duce perder o poder, deixando um rastro de mais de 400 mil mortes, cidades destruídas e famílias arrasadas pela fome e pelo horror da guerra. Após a derrota, os zeros que o seguiam passaram a fingir que nunca o seguiram, a fingir que nunca gritaram “Duce! Duce! Duce!”. O Duce, sem os zeros em quantidade a sua direita, não tinha força de nada, era apenas um número ordinário. Mesmo assim, o poeta italiano sabia que seria um erro subestimar números como 01, 02 e 03 – por mais ordinários que sejam.
Nos momentos de longa noite, Trilussa é como um vagalume. Nos anos em que a palavra malícia se confunde com milícia, Trilussa precisa ser republicado e Lorca reamanhecido. Antes que seja tarde, antes que seja arde.
¹Os poemas que inspiraram este texto foram traduzidos por Paulo Duarte, no livro Versos de Trilussa (São Paulo, 1973).
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Texto maravilhoso de Lúcio Verçoza quando cultura e realidade representam o pensamento social na produção do encantamento e retórica das palavras.