Um (atrasado e precário) Feliz dia do Advogado: um chamado para falar, por Eliseu Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Ralph Steadman¹. Cena do Tribunal em “Alice no País das Maravilhas”. 1967.

 

Um (atrasado e precário) Feliz dia do Advogado: um chamado para falar

por Eliseu Raphael Venturi

“Pudemos inclusive fazer pedidos, aos quais o imitador de vozes atendeu com a maior solicitude. Quando, porém, no final, sugerimos que imitasse sua própria voz, ele disse que aquilo não sabia fazer”. (Thomas Bernhard²).

Onze de Agosto: dia do advogado e dia da profusão eterna em 24 horas de votos de “feliz dia do advogado” escrito com caligrafias impessoais e fotos estrangeiras de bancos de fotos, além do panetone da firma (provavelmente cortado em razão da crise universal) e frases de Eduardo Couture.

Segundo Houaiss, online, no verbete “advogado”, a etimologia advém do latim “advocātus,i no sentido de ‘patrono, defensor procurador da causa, o que assiste um acusado com a sua presença, conselho, crédito, testemunho’”, encontrando também “deriva de advocatu- no sentido de ‘chamado para junto (para defender)’”. Advogar é, assim, em alguma medida semântica, ser chamado para falar “por alguém”.

Falar sobre a advocacia, ao seu tempo, é pensar em uma deontologia que precede uma ontologia: é pensar em uma série de normatividades, jurídicas ou consuetudinárias; é falar sobre o Código de Ética Profissional, sobre uma função essencial à justiça e sobre o Direito vivo.

É, pois, falar sobre a belíssima e prazerosa missão de raciocinar e argumentar juridicamente³, de identificar (construir?) o direito aplicável, pesquisar fatos, compor teses, analisar políticas, confrontar morais. Falar sobre advocacia é falar sobre o Direito posto em pleno movimento.

Falar sobre advocacia é, também, por um outro lado menos entusiasmante, pensar em um vasto horizonte de estereótipos [4].

Talvez o mais interessante deles seja o do advogado como “paladino da justiça”, herói destemido da verdade, da lei, da ordem. E esta característica interessante nada tem a ver com uma irônica crítica aos advogados cujo caráter e condutas sejam questionáveis; pelo contrário.

Se relaciona, antes, com a precarização da advocacia ante a qual estes mesmos advogados, que carregam o estereótipo de “paladinos”, mal conseguem fazer frente. Esta impotência só revela que, para além do voluntarismo e protagonismo individual, ou de situações pontuais acidentais, estamos em verdade diante de uma situação estrutural e estruturante.

Dia do Advogado é um dia pertinente para se falar sobre algumas questões esquecidas, encobertas, escamoteadas na linguagem e nas práticas, ocultadas nos discursos que muitas vezes parecem ir na contramão do que adiante se afirmará, embora as práticas é que se dão na contramão dos discursos que lhes mascaram, sendo, por isso mesmo, hipócritas.

Situações, enfim, que poderiam ser melhor debatidas e melhor tuteladas por a quem as compete. Mas, como se disse, estão esquecidas, seja pelas amarras do medo que cooptam alguns profissionais, seja pelo deslocamentos ideológicos da percepção, seja pelo desejo e decisão de tantos outros oprimidos em se tornarem eles mesmos futuros opressores. Ritos de passagem, aprendizado e perpetuação.

Dia do Advogado, portanto, é dia para se falar da gritante diferença salarial a menos das advogadas, com fundamento unicamente pelo fato de serem mulheres, eternizando-se no funcionamento da advocacia uma das mais repugnantes e arbitrárias discriminações.

Isto sem contar todos os óbices que os estigmas do gênero impõem a estas profissionais e a todas as outras figuras dos gêneros e das múltiplas identidades objeto de preconceito e de negação arbitrária de direitos.

Dia, também, para se falar sobre a precariedade jurídica instalada e a precarização cotidiana de direitos da profissão, na linha da precarização do trabalho como um todo no mundo neoliberal contemporâneo.

Embora haja normas, aos profissionais não há, em diversas organizações administrativas, qualquer segurança de planos de progressão, direitos trabalhistas ou previdenciários bem estruturados, cassando-se dos advogados, portanto, um futuro minimamente delineado de modo concreto, o que agride desde os iniciantes até os experientes.

Embora haja toda uma tradicional pudicícia da advocacia em relação ao mercado, a qualquer observador, interno ou externo, deste setor profissional, salta aos olhos as regras de mercado operando por dentro, por fora e por dentre os interstícios do ofício, com suas feições mais predatórias e selvagens, indiferentes, cruéis e desumanas.

Dia, ainda, para se falar sobre a plena desvalorização de advogados que estudam e pesquisam, com vários mecanismos de desincentivo do investimento na vida acadêmica, inclusive sem consideração dos efeitos remuneratórios da titulação enquanto qualificação profissional. Quando não se abre um duelo de vaidade com a gerência menos titulada, fim de qualquer perspectiva de continuidade do trabalho. No final das contas, “E qual a utilidade disso?”; “E como isso dará mais dinheiro?”.

Preconceitos recíprocos da academia ante a advocacia, e da advocacia ante a academia. Afinal, no mundo da cisão de teoria e prática, qualificação pra quê? Ou um novo enfoque, com elementos práticos e pragmáticos, sobre os problemas teóricos, para quê? Intolerância e preconceito linguístico não faltam.

Dia para se falar sobre assédio moral, pelos escritórios e pelos poderes, relembrando-se da complexa atividade intelectual do advogado e a pressão por soluções que, por serem interpretativas e argumentativas, sempre demandam tempo e maturação (os recursos mais escassos de todos) e discussão de pontos de vista, algo nem sempre pacífico e amigável – sem contar a submissão aos argumentos de autoridade, grande marca do mundo jurídico.

Além do moral, o assédio sexual, que perpassa os estigmas de gênero e destrói subjetividades.

Dia para se falar da falta de estrutura dos escritórios e da assunção de sua condução por profissionais sem capacidade de liderança, empreendedora e econômica. Assim como o efeito imediato desta inaptidão: a delegação destes problemas aos funcionários como corresponsáveis de uma obrigação que é do empreendedor, ou do empregador, ainda que sob diferentes nomenclaturas suaves.

Obrigações daquele que estrutura os meios de produção, mas não tem pudor em terceirizar custos do negócio, direta e indiretamente, na remuneração do “colaborador”, palavra idolatrada para surrupiar vínculos empregatícios sob máscaras de sociedade, de associação ou de prestação de serviços. Esperteza que não tem pudor de se aproveitar e de tripudiar sobre a insegurança dos advogados iniciantes, até que estes sucumbam ao estresse e reiniciem o ciclo em outro lugar até aprenderem.

Dia para se falar sobre Burnout, sobre o esgotamento mental e emocional, da pressão por prazos, por respostas rápidas, por atendimentos telefônicos e pessoais intercalados com diversos fatos e teses concorrentes, humores azedos e ácidos, desrespeitosos e de falta de reconhecimento, com pouca ou nenhuma assessoria, com administração de situações complexa, assumindo casos complexos no meio do caminho.

Para além de confraternizações, ternos, carros, saltos e roupas: depressão, imediatismo, descontrole, drogadição, desesperança, aversão à socialização, despersonalização, vazio. Material de bandeja para cooptação por religiões da prosperidade, para o completo furto do indivíduo de si mesmo e de sua vida única. Trabalho e libertação, ou trabalho e alienação?

Dia para se falar sobre o descompromisso democrático por profissionais e entidades, cujos posicionamentos têm contribuído todos os dias, nos mais diversos espaços de atuação, decisivamente para o fortalecimento da cultura elitista, antidemocrática, autoritária e totalizante. Nada de novo sob o sol, não fosse toda a história vivida nos últimos 100 anos.

Contradição, traição intelectual e da ética da profissão, que se manifesta por velados atos de desapreço e de diminuição da importância social dos direitos subjetivos como referenciais primeiros da vida pública. Descompromisso ordeiro com os retrocessos antijurídicos intoleráveis, impetrado, sim, por advogados: aqueles que deveriam falar em defesa do Direito. Feliz dia do advogado para eles também.

Dia para se falar sobre as discriminações diversas que correm soltas (e disfarçadas) nas bancas, nas seleções e nas contratações tanto de advogados quanto do corpo administrativo e de suporte, tudo em nome da cultura formal tradicional jurídica e seus mascaramentos mais diversos de linguagem, modos de vestir, expectativas de formatação da postura, da voz, de disciplinamento do corpo e apagamento das diversidades. Linha de corte para manutenção de uma certa identidade, por um lado, e da exclusão da pluralidade, por outro.

Dia para se falar sobre a pedagogia dos estagiários, muitas vezes perversamente apropriados como mão de obra menos custosa, reduzidos ao suporte administrativo sem o próprio e concentrado desenvolvimento dos fundamentos jurídicos envolvidos na formação, alijados da fala e da escrita, treinados para seduzir conveniências.

Jovens em formação estimulados ao desapreço pelo estudo e ao apego à repetição e à retórica como meios dessubstancializados de dar movimento à atividade econômica da advocacia, quando esta já deixou de ser jurídica, salvo as cascas do estilo da tradição.

Dia para se falar sobre a escancarada violação de prerrogativas do advogado pelo Estado e pela iniciativa privada, e que, muitas vezes, encontra corroboração em instâncias superiores, órgãos de classe, apoio da grande mídia alienadora e da sociedade civil alienada.

Dia para se falar sobre o ensino jurídico, cuja formação humanística e técnica tem sido sacrificada em nome dos mercados do concurso, das bancas de massa, dos delírios do consumismo, da repetição sem criatividade, da linguagem esvaziada, do desapreço pelos fatos e do despregamento da linguagem das relações sociais.

Da formação fria, distante, indiferente à sensibilidade, à arte, às humanidades do universo jurídico, com a repulsa pelas propedêuticas, pelo pensamento e pela crítica jurídicos. Formação que ri dos direitos humanos, que chama normatividade de utopia, e que preza as respostas curtas automatizadas como cânones de uma objetividade ilusória.

Um (atrasado e precário) feliz dia do advogado.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

¹ Ralph Steadman. Courtroom Scene from Alice in Wonderland. 1967. Disponível em: < https://www.tate.org.uk/art/artworks/steadman-courtroom-scene-from-alice-in-wonderland-p06580>. Acesso em: 11 ago. 2018.
 
² BERNHARD, Thomas. O imitador de vozes. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 11-12.
 
³ VANDEVELDE, Kenneth J. Pensando como um advogado. Uma introdução ao raciocínio jurídico. Tradução de Gilson Cesar Cardoso. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
 
O advogado americano Walter Bennett, refletindo sobre elementos críticos no cenário norte-americano (e que podem ser aproveitados a pontos do caso brasileiro), apresenta uma série de problemas e de propostas na motivação da advocacia e seus horizontes éticos. BENNETT, Walter. O mito do advogado: reavivando ideais da profissão de advogado. Tradução de Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. Ética corporativa.

    Um advogado cai em um tanque cheio de cobras super venenosas.

    Sai ileso.

    Os jornalistas perguntam estupefactos:

    – Como pode?

    Ele responde:

    – Ética corporativa.

     

     

  2. ESCRAVOS DE CARTEIRINHA. UM DIA PARA SE LAMENTAR

    Já foram, um dia, Guardiões da Liberdade, Mestres da Justiça, Senhores da Cidadania. Agora são apenas um bando de Alienados SemiAnalfabetos escravos de Entidade de Classe que não comandam, nem controlam. Ditadura Corporativa de uma Pequena Elite que se sustenta sobre os ombros de seus Parceiros, que indiretamente indicam a parte da Casta Superior. À Casta Inferior está cabendo as tarefas como Contínuos ou Office-Boys. Cartório de Notas já faz a vez de Advocacia. Contas da Entidade escondidas entre Feudos e Protetorados. A Grande Massa deve ser vedado o acesso à tal informação. O importante é que de forma obrigatória e arbitraria elejam suas Elites. Não é a face do país que ajudaram a construir? Projeto Fascista qiue ascende juntamente com Ditador Militar Assassino Fascista dando Golpe em Governo Democrático. Sobre o sangue de Estudantes e Advogados, Entidade tão pária é erigida. Senhores do Direito? Que dia a se lamentar?!! 

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