Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Um compromisso das forças vivas da Nação que guie a política, por Ion de Andrade

Por Ion de Andrade

Estou entre os que não acreditavam no golpe e sofri pesada ressaca com esse desfecho. Subestimei a correlação de forças e a tradição golpista das nossas elites. E cá estamos nós, lançados num cenário imprevisível, no qual o golpe e o “golpe no golpe” é que estão na ordem do dia.

Do nosso lado nos debatemos entre os que acham que os problemas se deveram a uma condução errada por parte do governo Dilma no varejo da política, e os que acham que há muito o que ser aprendido num contexto que teria sido devido, em grande medida, a uma insuficiência da esquerda para o enfrentamento de uma crise de hegemonia bem mais profunda.

O divórcio é imenso, pois enquanto uns se remetem às iniciativas de “agitação propaganda” os outros, entre os quais me incluo, apontam para a necessidade de uma elaboração profunda e multidirecional, num contexto de correlação de forças desfavorável a nós. Conforme Gramsci estamos no lusco-fusco onde emergem os monstros.

Há portanto, na ótica pela qual enxergo, longo caminho a ser trilhado para que novos consensos tenham sido sedimentados, como o foram na ditadura, originando a frente democrática que veio a ter nas eleições diretas e na constituinte as bases para edificação do que hoje se esvai.

Agora nada há como tática ou estratégia a coesionar os protagonistas ou a, minimamente, asfaltar os caminhos a serem trilhados. O problema da visão que secundariza a solução desses impasses é a ilusão de que as linhas gerais de ação  dos governos petistas de Lula e Dilma seriam suficientes para reaglutinar os progressistas, sem retoques, em torno das políticas sociais já traçadas.

De fato, esse é o primeiro debate a ser vencido para uma recomposição mínima da esquerda em torno de bandeiras consensuais. Autocrítica tática ou estratégica? Basta “botar o povo na rua” ou há algo mais que pode tornar infrutífera a ação das multidões? Decifra-me ou te devoro…

É nesse contexto que muito tem se falado de Frente de esquerdas ou de Frente com o “Centro”… que aliás nem se materializam, nem tem projetos claros, exceto o de espasmodicamente contrapor-se  ao “governo Temer”. Mas o desafio gigantesco posto a nós é o de recuperar o protagonismo e não apenas o de criticar o governo.

Apesar de muitos pensadores apontarem para a atual crise de hegemonia e para as suas temíveis consequências há poucas propostas concretas que toquem a elementos coesionadores de uma iniciativa politica capaz de exprimir os elementos estratégicos para o nosso campo, que nos permitam, ao menos para com o povo, ter o que dizer de propositivo e não somente de reativo.

Na ditadura falávamos de liberdade de expressão, de eleições diretas, de constituinte livre e soberana… e agora?

O cenário mudou, parte dessas conquistas pós ditadura continua de pé e temos que ter uma agenda para seguir viagem, bandeiras capazes de aprofundar o processo democrático que construímos e capazes de unir amplos segmentos da sociedade brasileira em torno delas.

Quais são as propostas que devem consubstanciar esse Compromisso das forças progressistas e democráticas e que sejam fundadoras desse campo plural onde estão as forças vivas do Brasil?

Vou elencar alguns elementos que não podem estar ausentes desse pacto de união da resistência democrática e que, ao mesmo, tempo apontam para avanços efetivos para a sociedade brasileira quando o sol tiver nascido de novo.

São eles:

  1. Estado social: as forças signatárias do Compromisso devem estar alinhadas com a ideia de que o Estado tem papel compensador das assimetrias sociais e da promoção da emancipação dos seus cidadãos e do bem estar social;
  2. Democracia participativa: Em contraposição ás forças conservadoras, os signatários do Compromisso convergem para ocompromisso com um processo de tomada de decisões que envolva o diálogo com a sociedade e as suas entidades e conselhos;
  3. Compromisso com o fortalecimento da renda e do mercado interno e com o apoio às empresas brasileiras atuando no exterior;
  4. Taxação das grandes fortunas para financiar o Estado Social;
  5. Não reconhecimento dos contratos e iniciativas do governo Temer que toquem ao pré-sal, à Petrobrás, e a tudo o que diga respeito aos interesses estratégicos do Brasil, advertindo as multinacionais do risco potencial de não reconhecimento dos acordos firmados nesse período de exceção;
  6. Uso dos royalties do pré-sal para a saúde e educação;
  7. Revolução nas periferias das grandes cidades e áreas drurais com políticas e equipamentos sociais capazes de introduzir os contingentes marginalizados na contemporaneidade, como propõe a Carta de Natal dos movimentos sociais;
  8. Humanização da Polícia e sua conversão numa força solidária aos mais pobres, que são a principal vítima da violência;
  9. Aumento da renda do Salário Mínimo com um horizonte de suficiência de 10 anos (O DIEESE tem registro mensal do salário mínimo real e do Salário Mínimo necessário). As formas signatárias do Compromisso estão alinhadas à ideia de viabilizar a convergência do Salário Mínimo Real ao Salário Mínimo Necessário.
  10. Democratização da mídia
  11. Poderosa política de defesa com tecnologia própria e conteúdo nacional.
  12. Soberania nacional.

Todas as forças políticas progressistas interessadas em assinar o Compromisso deveriam ser encorajadas a fazê-lo. Isso criaria um campo capaz de tornar claras as alianças eleitorais e administrativas.

Outras ideias podem ser incorporadas a esse ideário. O mais importante é apressarmos a formulação do consenso que nos guiará, cedo ou tarde, a um novo ciclo de avanços.

Certo, estão convertendo o Brasil num prostíbulo do capitalismo internacional, isso nos frustra, nos entristece e nos abate. Mas somos um grande país. Vamos sair dessa, mas, a exemplo do que fizemos na ditadura, temos que sair melhor do que entramos.

Precisamos de um mapa de saída, uma Carta Compromisso das forças mudancistas. É o que nos guiará.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

12 Comentários

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  1. Independente de frente ampla o item 5
    Independente de qualquer ação política, JÁ PASSOU DA HORA das forças de esquerda e/ou nacionalistas assinarem um pacto em que fique bem claro que QUALQUER VENDA DE ATIVO PUBLICO POR ESTE GOVERNO ESTARA SUJEITO A SER ANULADO.

    E que não venham com esse papo de respeito a contratos, etc. O principal contrato foi rompido , o voto, e quem embarca nos atos de um governo golpista deve ter plena ciência disso.

    Uma coisa foi o governo FHC com suas privatizações pois se tratava de um governo eleito.

    Outra coisa bem diferente é um governo não eleito vender o patrimônio público.

  2. Não seria o caso de aglutinar

    Não seria o caso de aglutinar essas forças também para uma nova constituinte? Fazendo com que o judiciário seja democratizado e o PMDB perca o controle político do país.

  3. Não foi só você Ion. Todos

    Não foi só você Ion. Todos nós subestimamos a correlação de forças e a tradição golpista das nossas elites, mesmo porque quando o golpe se materializou pouco pudemos fazer para evitar esse desfecho. E quando digo todos são todos, radicais e moderados, utópicos e realistas, reformistas e revolucionários, os que viram os perigos e os que os ignoraram, enfim, ninguém pode evitar ou reagir a ele. Fomos derrotados e ponto.

    Também comparto contigo essa idéia de “bola para frente” e da necessidade de ampliar e manter o apoio social naqueles amplos setores da população negativamente privilegiada. Não acredito também que agora seja a melhor hora para balanços e autocríticas, penitências e auto-acusações.

    Penso que o golpe ainda não alcançou todos os seus objetivos nem sua batalha final e definitiva, do Golpe Tucano. A melhor propaganda contra o Golpe ainda são os próprios golpistas. Por isso importa visualizar os próximos campos de batalha ainda em condições muito desfavoráveis e de recuo, entre elas: 

    1. ainda a luta em defesa do mandato de Dilma, denunciando aqui e fora a farsa em torno do processo de impeachment e seu caráter golpista e antidemocrático, não podemos legitimar esses governos (temer ou outra solução contingencial) em nenhuma circunstância,

    2. a luta em defesa dos direitos políticos de Lula, do PT e das esquerdas no Brasil

    3. e a luta por obter garantias democráticas mínimas para a realização da eleição e a campanha presidencial de 2018.

    Uma agenda mínima pode e deve ser formulada como sugerida por Ion, mas temos que ter noção clara que ainda estamos sob fogo cerrado e agora sem uma fortaleza. O golpe de estado nasceu acima de tudo da necessidade, e como ensina Maquiavel das necessidades a mais forte, aquela te obriga a vencer ou a morrer. A luta contra o golpe nos obriga agora a também vencer. 

     

  4. Isso mesmo. O item 5 tem que

    Isso mesmo. O item 5 tem que ser “avisado” logo aos GOLPISTAS e seus “mandantes” , ou seja: TUDO QUE ESTÃO VENDENDO(OU DOANDO) na Privataria atual, que seja PATRIMÔNIO PÚBLICO (que garante o futuro do Povo Brasileiro), será completamente INVALIDADO, maiscedo ou mais tarde. lugar de ladrão é na cadeia.

  5. E agora?

    Muito boa, a lista. E na prática creio que todo esforço no sentido de incluir a população no debate nacional está valendo. E agora estamos falando de educação. Claro que é importantíssimo fomentar a educação pública, como expresso no item 6. Mas dar dinheiro à educação hoje, com as instituições sob golpe de estado, seria apenas enriquecer atravessadores privados, investidores que são colocados pelos golpistas no meio do caminho do dinheiro entre o estado e quem deve se beneficiar, a saber, a população mais vulnerável. Aliás todo “alimento” que for dado hoje aos golpistas só vai tornar o golpe mais forte.

    O item 5, aviso aos possíveis investidores internacionais que, retomada a ordem democrática, os contratos podem ser cancelados por falta de legitimidade, é bem complicado. Consta que um juiz de 1a. instância de Nova Iorque processou a Argentina. Os investidores privados dos EUA costumam manobrar muito facilmente a máquina estatal de seu país, recursos jurídicos e bélicos.

    O item 8, humanização das polícias, é questão estadual. E sobre isso convido o articulista e quem mais se interessar a levar em conta o artigo “Ninguém manda na polícia” (https://www.fenapef.org.br/32623/), do professor da UERJ e coronel da reserva da PMRJ Jorge da Silva. Talvez nesse caso, o problema seja bem mais complexo.

    Agora, excetuando-se esse dois ítens, todos os demais eram (são) pauta dos governos do PT e, em grande medida, estavam sendo providenciadas. Mas digo PT só porque esse foi o partido minimamente progressita que chegou ao executivo federal. Fosse outro partido a trabalhar pela descentralização dos poderes político e econômico, pelo aprofundamente da Democracia, creio que o golpe teria sido dado da mesma forma. Assim creio que seria imprescindível a inclusão de um 13o. item, a saber, que indicasse um caminho tanto para derrubar o golpe atual quanto para, na medida do possível, prevenir nosso país contra futuras tentativas de golpe. Claro que não dá para “combinar com os russos” mas qualquer perspectiva que não contemple o combate e a prevenção de golpes, que se limite a políticas públicas, a meu ver, estará incompleta.

    13. Não se dará dinheiro nem poder a representante da iniciativa privada agigantada rentista e nem à estrangeira. No entanto todo fomento à iniciativa privada local e pequena será pouca.

    Humm… ficou estranho. E isso mais ou menos já consta dos itens 3, 10, 11 e 12… Complicado.

  6. Aplausos!

    Parabenizo o autor do texto pela clareza e foco no que é realmente essencial neste momento em que a população se sente num mato sem cachorro, em meio ao caos e ao silêncio aturdido de muitas lideranças da classe trabalhadora.

    Antes de se preocupar com nomes ou candidatos, tem se que estabelecer propostas, prioridades, bandeiras, compromissos e AÇÕES fundamentais para a construção que se pretende.

  7. Eu concordo com o post, só

    Eu concordo com o post, só faço uma ressalva: se reunirmos dez esquerdistas em uma sala, teremos dez propostas diferentes.

    Por um lado, isto é bom. Há diversidade de pensamento. Por outro, são pequenas as possibilidades de chegarmos a este consenso e sempre estaremos brigando entre nós.

    Isto poderá ser visto já aqui nos comentários.

  8. Parabéns Ion

    Mas será que alguém aqui pode comparar as doze propostas de Ion, com as dez propostas  do nosso MP?

    Será que alguém pode apontar qual das duas  pensa no Brasil e qual  pensa em garantir poder?  Pois então pensem bem o que é colocar um país a reboque de uma pseudo luta contra a corrupção.

    Abraço Ion

  9. Frentes? Programas? Volta Dilma!!!

    Vamos tentar resumir. Poderiamos trocar esses esforços semânticos de criar Frentes, copia e cola de pautas, o rebolado quadrado do Dino, Ciro e Boulos, e, para sermos honestos com nós mesmos e com a Dilma, lutarmos para que ela retorne ao posto que lhe foi roubado – graças tbem a nossa letargia e covardia – assim como implantar o Programa de Governo eleito e restituir os direitos que estáo sendo roubados, destruídos . Dilma nao foi derrubada por ser Dilma, mas pelo Programa de Governo que vem sendo criado, desenvolvido e implantado desde 2003. Nesse progrma é que reside a alma do povo. O que mudou o pais foi essse Programa. O alvo deles  é esse!! Quem nao cumpriu a sua parte e nao elegeu um Congresso para dar continuidade ao Programa é quem precisa tomar coragem e deixar de ficar inventando roda.

    Na situaçao pre golpe, todos tinham todo espaço do mundo pra lutar pelo que lhes viesse as ventas e agora pelo andar da carruagem, até se lutar pra sobreviver – emprego, alimento, moradia, transporte -está com espaço reduzido.e ficando menor. A luta nao é por novas eleições presidenciais , mas pela volta da Dilma. Eleiçoes novas? Apenas para Câmara e Senado que se elegeram em 2014 e que derrubaram Dilma roubando nossos votos.

  10. Alguns pontos históricos e

    Alguns pontos históricos e polêmicos foram enfraquecidos ou deixados de lado. A revisão da dívida pública e a reforma agrária. O Lula foi aceito pelas forças mais organizadas da sociedade (Rotary, Maçonaria, e similares) porque deixou de lado algumas questões muito fortes que o Ion menciona (taxação das fortunas).

    Uma diferença cultural muito forte entre Temer e Dilma é que um faz o sinal da cruz, menciona Deus em seus discursos (isso, per si, agrada muita gente), sendo o golpista um crente praticante. Isso faz muita diferença nas famílias. Lula também menciona Deus em suas falas aos populares (e isso lhe rendeu um pouco mais de sustentação no tempo). Essa é uma das forças milenares que une e dá sustento aos poderes na maior parte do mundo. Deus é um código explicito de relações comerciais mais fortes, organizadas e duradouras. Excomungações aos que não seguem isso são explicitas, ainda que discretamente.

    Hoje, não se trata mais de volta de Dilma, aliás, pode até ser a Dilma, Hadadd, Patrus, Chico Alencar, Freixo, Dino, Wagner, o que mais importa é ter um programa claro e que se sustente no tempo, seja ele quanto for. Conheço um índio de mais de 100 anos que foi incorporado na sociedade católica, ele viveu bem de perto a época do Getúlio Vargas. Uma das coisas mais claras que ele menciona foi o reconhecimento e a valorização do trabalho que Vargas implementou. A valorização da educação também é central diferença entre os projetos atuais. Um dos projetos é centrado na valorização do ensino técnico (com educação superior e ciência de alta qualidade para poucos) e o ourto permite o ensino crítico, a ciênca e a pesquisa amplamente aberta a todos, além dos muitos campos do ensino técnico. O PSDB e o SKAF são os defensores desse modelo restritivo, e faz sucesso entre os empresários com perfil mais escravocrata de ações mais humilhantes. Eles são defensores de estado mínimo para maioria e máximo para a minoria. No lugar disso temos que divulgar a ideia de que é preciso a participação da maioria nas decisões essenciais e de direção.

    O PMDB começou a manifestar o golpe defendendo os juros altos. Aí o Requião começou a retrucar bem claramente contra esses disparates da carta do PMDB. Mas, manteve-se no PMDB para criticar por dentro, mas abertamente.

    Mas o Requião é uma das poucas palavras do centro direita que aceita falar na importância da distribuição de renda e na educação pública. E o Paraná foi um dos principais focos de resistência dos estudantes! Pode ter sido os pinguins chilenos, mas tem uma forte educação pública o Paraná.

    Se essa lista do Ion chega aos estudantes, nas assembléias das escolas pode ser que em menos de 20 anos as forças humanistas, que valorizam o trabalho, o conhecimento, a crítica (incuindo a auto-crítica) vai sim, com certeza conscientizar inclusive muitos trabalhadores de mídia, criar outras mídias e usar amplamente para divulgar os pontos fundamentais de acertividade de uma nação soberana, consciente e de valores e ações claras e coletivamente decididos e implementados.

    Assim, vai se acabar a nação dos que mandam pelas sombras, que decidem pelas sombras e colhem os frutos com vergonha ou sem vergonha de explorar.

    Assim vai surgir uma nação consciente da preservação da vida com qualidade, educação, saúde e ciência até o mais alto nível acessível a todos!

    Hay que conscientizar-se e perder a ternura com os que fazem dos fracos riqueza e aumentam o poder sobre a pobreza!

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