Um contribuinte responde às ofensas ao STF: Afinal, militares ou militantes?, por Roberto Bueno

Lamentável que àqueles a quem a Nação confia as armas e impõe silêncio político em troca rompam o seu compromisso de forma virulenta, fato agravado pelo momento escolhido.

Um contribuinte responde às ofensas ao STF: Afinal, militares ou militantes?

por Roberto Bueno

Quem escreve estas linhas é cidadão, mais um dentre os milhões de contribuintes brasileiros que observa o cenário político atual em que setores minoritários do país, mas armados, pretendem impor à massa da população brasileira a sua vontade à força, utilizando precisamente as armas que lhes foram entregues em confiança para proteger a cada um de nós, os contribuintes, de possíveis ameaças externas à segurança nacional, mas sob a condição de absoluto silêncio quanto às questões e tensões políticas internas, e dado o desequilíbrio que implica alguém com armas e influência nas Forças Armadas (FFAA) dedicar-se a intervir na política a legislação proíbe expressamente que isto ocorra. É extremamente ofensivo a cada um dos contribuintes brasileiros que setores ligados às armas deem sucessivas mostras de ambições de intervir no rumo dos debates políticos e, sobretudo, da organização da vida política nacional.

Temos assistido a publicação de uma sucessão de manifestos políticos concebidos por setores das FFAA, muitas delas de reservistas, algumas contando com pessoal da ativa, dando azo a que perguntemos se se trata de militares ou de militantes políticos. Vem sendo constituída uma verdadeira “república” de manifestos, todas elas em maior ou menor grau ofensivas às instituições, endereçadas a coagir os seus componentes para que tomem decisões que favoreçam os interesses dos signatários ou os que apoiam, invalidando não aceitar qualquer outra como válida. Inaceitável para o jogo democrático.

Estes manifestos gestados e publicados por setores militares apresentam evidente ataque à democracia e à Constituição prestando-se a potencializar as condições de turbação sob as quais já vivemos em tempos de radicais desafios, nos quais sobressai o gravíssimo problema sanitário que consome a vida de dezenas de milhares de brasileiros(as) e com horizonte ainda recheado de gente que perderá as suas vidas. Enquanto isto, militares que deveriam continuar a priorizar as suas escolhas profissionais e a sua fidelidade ao Estado elegem como preocupação primeira o golpismo.

O último dos manifestos destinados a atacar as estruturas do Estado, a democracia e, em síntese, a Constituição brasileira foi publicada neste sábado, dia 14.06.2020, endereçada nominalmente ao “Sr. José Celso de Mello Filho”, Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) que ali desempenha já reconhecido como decano. Informações da imprensa indicam que o manifesto foi concebido por quadros militares da reserva da Aeronáutica, e a partir de então articularam para obter a adesão de 52 membros da Aeronáutica, 16 da Marinha e outros dez do Exército, ademais de outros civis e Policial Militar que complementam a lista de signatários.

Lamentável que àqueles a quem a Nação confia as armas e impõe silêncio político em troca rompam o seu compromisso de forma virulenta, fato agravado pelo momento escolhido, em tempos de pandemia que consome a vida de dezenas de milhares de cidadãos, mas também investir contra Ministro da mais alta corte jurídica nacional orientado a provocar desestabilização e tentativa de coagir à tomada de decisões. Assusta a falta de sentido de oportunidade, e não menos a de responsabilidade.

Poderia concordar com o tom adotado pela abertura do manifesto dos militares também firmado por alguns civis ao afirmar que ninguém ingressa nas FFAA por apadrinhamento, algo que também ocorre em outros setores da administração, e cito a título de mero exemplo, o caso do Poder Judiciário, cujo acesso se dá por concurso público, aliás, altamente concorrido, e no caso da ascensão ao ápice da carreira militar, isto sim, me assombram certas dúvidas quanto aos procedimentos apresentadas em seu momento por ninguém menos do que um “militar orgânico” como o General Newton Cruz, real força da antinatureza tal como a sua biografia informa e as testemunhas não permitem esquecer, a propósito, lembrarão do caso Baumgarten, caso Riocentro…

As eventuais críticas dos militares, portanto, não residem na forma de acesso ao Poder Judiciário, ao qual nem sequer o mais desinformado atacaria, enquanto no caso militar, particularmente, sou assaltado por dúvidas no que concerne aos critérios de ascensão aos mais altos postos de mando. Este desassossego foi maximizado recentemente quando veio a público o real calado dos conhecimentos de geografia e ciência política de segmentos do generalato brasileiro. Transitando com lepidez faceira entre a debilidade e a comicidade, a opinião pública nacional, e internacional, tornou-se ciente da desinformação preocupante de altas patentes militares sobre temas pueris que abrangem tanto as condições climáticas do território nacional e também apontam para a persistência do terraplanismo, além de manter na ordem do dia a negação de fatos que descosem a história, além de insistência de altos mandos nacionais em suscitar a existência de perigosa ameaça comunista entre nós. Que tremendo, que falso.

Verdadeiramente notável é que militares remunerados com recursos recolhidos aos cofres do Tesouro junto aos contribuintes sintam-se à vontade para, sem nenhum constrangimento ou rubor, desembainhar o mal verbo, juntá-los a péssimos adjetivos e trançá-los ao ódio temperado com resquícios de má formação e ressentimento profundo para trazê-lo e servir ao conhecimento público vilipendiando já não a honra de um só homem a quem o manifesto é endereçado, mas corroendo uma importante instituição através de sua mais alta corte, e ao fazê-lo, desferem direta ofensa ao povo brasileiro que com ela conta para a melhor estruturação do Estado e das relações políticas. Ruborizo pela falta de rubor dos signatários e, logo, advém honesta preocupação pela falta de formulação e, até mesmo, de compreensão do papel institucional que o pertencimento às FFAA impõe aos seus membros e, eventualmente, de disposição anímica para cumprir a sua maior missão funcional: submissão absoluta ao poder civil.

Estamos lidando com um texto de doze acanhadas linhas nas quais foram forçadas ao convívio conceitos, categorias e expressões, cujo sentido é de duvidosa pertinência em documentos públicos mas, quiçá, justos para botequins de sofisticação e reputação questionáveis, desenhando genuíno cárcere privado do vernáculo imposto por perfis sádicos dispostos a qualquer nível de tortura e, agora vê-se, é com desenvoltura que incluem o campo semântico. Os signatários da missiva podem não estar, mas da disposição e emprego do vernáculo depreende-se o estado de perplexidade que atingiria mesmo o mais modesto dentre os mais modestos escribas recém iniciados na arte. Talvez esta condição seja devida ao seu adestramento profissional na nobre arte equina e nas coisas bovinas, cujos odores, aliás, são muito familiares e já apreciados por um certo Figueiredo, que em seu momento declarou publicamente a preferência pelo cheiro dos cavalos ao do povo, cujo suor lhe causava repelência, mas que era o mesmo que servia em sua mesa o alimento e na conta bancária os recursos para a sua vida acomodada. A dar por verdadeiras as informações prestadas pelo manifesto publicado neste dia 14.06.2020 de que “Nenhum Militar […] atinge o generalato e, nele, o posto mais elevado, se não merecer o reconhecimento dos seus chefes, o respeito dos seus pares e a admiração dos seus subordinados”, somos levados a conclusão de que tal é o perfil e preferência compartilhada e digna de louvores. Sua repulsa pelo verbo designa as profundezas em que transita uma cultura não letrada, mas orgânica. Todos sempre soubemos que o desrespeito sempre foi uma gentileza que a falta de educação presta aos grosseiros por inclinação a quem a intempérie e às circunstâncias transformam em bárbaros dispostos a tudo.

O tom geral da agressiva missiva de singular modéstia em seus termos possui insofismável carga de ressentimento de almas atormentadas que por necessidade coabitam o baixio e por imposição de suas naturezas obtusas permanecem sob a obscuridade pré-renascentista mesmo quando o farol do Iluminismo lhes tenha sido apontado no horizonte, dada a formação intelectual apresentada pelos signatários. Triste sina a dos que optam pelo caminho do obscurantismo e da ignorância, mas deprimente é a sina daqueles a quem a natureza, por mistérios de raízes ignotas, parece não ter concedido o favor da escolha ao aprisioná-los nos porões em que a luz não alcança, o real bolor consome enquanto a ratazana se esbalda.

Os signatários de missivas minúsculas pretendem dispor instrumentalizar a baixa racionalidade destituída de fundamentação histórica para persuadir que ali estão indivíduos que “fazem de seu corpo uma trincheira em defesa da pátria e da bandeira”. Ora, vejamos, e mui respeitosamente, é difícil crer na inexistência de sério equívoco, posto que se não instrumentalizam o verbo para servir a ética para que esta preste reverência ao povo encarnado na Constituição. Inabordável tarefa mesmo para a intrépida Pollyana a de crer que o mundo da farda entregaria seus corpos para proteger o povo encarnado na pátria e sua bandeira.

O conjunto de signatários da modesta missiva assesta golpes ao ar com o fígado transformado em prosa golpista. Inaceitável. Os signatários adentram no pantanoso território da contradição substantiva ao verbalizar raivosamente que “Nenhum militar é comissionado para cumprir missão importante”. Prima facie, advém a dúvida: os cerca de 3.000 mil cargos ocupados por militares na administração pública sob o atual Governo Bolsonaro não têm ônus para os cofres da União? Trabalham gratuitamente? E a recente consulta dos militares à Procuradoria-Geral da União para acumular proventos recebidos das FFAA a que pertencem e a remuneração que obtém do Governo Federal quando o acúmulo de cargos na administração pública é proibido com exceções que não incluem os militares?

A questão é bastante clara, mas a contradição adquire ainda mais densa e intensa substância quando os signatários das doze linhas afirmam com a veemência e certeza inarredável que apenas o território que margeia a sapiência possui, vale dizer, que a nenhum militar é atribuída missão se não estiver devidamente preparado para levá-la a bom termo. Em tempos históricos como este em que vivemos são produzidos textos em que há notável colisão da prudência com a realidade que resulta no atropelo do bom-senso, e disto é evidente comprovação o teor das linhas da malfazejo manifesto, cujos signatários não evitam informar, alto e profundo silêncio, o perfil do General formado na Academia Militar das Agulhas Negras, Comandante do 20° Batalhão Logístico Paraquedista, além de Diretor do Depósito Central de Munição. Estes são os pontos altos da trajetória do militar que, designado, dispôs-se a assumir o Ministério da Saúde em meio a uma pandemia global que trucida vidas no Brasil com projeções de fazê-lo como em nenhum outro lugar do mundo. Será esta opção compatível com o teor do manifesto ao afirmar peremptoriamente que “Nenhum Militar é comissionado para cumprir missão importante, se não estiver preparado para levá-la a bom termo”? Em momento de gravidade singular é mobilizado um quadro para quem o objeto de que deve ocupar-se encontra em seu currículo tanta afinidade técnica quanto ao gênio matemático das simpáticas tartarugas ninjas. Realmente, o Brasil não está sendo levado a sério senão enquanto objeto de destruição.

O manifesto invulgarmente informa assertivamente à sociedade que a nobre carreira militar é infensa a que postos sejam galgados através do uso de “um palavreado enfadonho, supérfluo, verboso, ardiloso, como um bolodório de doutor de faculdade”. Quão intensa é a dose de ressentimento que pode assombrar um ser humano, e até mesmo vários deles em reunião de propósitos. Vejamos se bem pude compreender: nenhuma das referências apresentadas no trecho acima é admitido para a ascensão na carreira militar, nenhum destes adjetivos e as circunstâncias que se relacionem com o verbo, mas, interrogo a mim mesmo: E quanto a planejar mortes? O que decorreria no caso de sua efetiva execução? E quanto a perpetração de torturas? E o que dizer de sevícias? E quanto a ocultação de cadáveres e forjar mortes? E quanto a falsificação de atestados de óbitos para ocultar pistas sobre as reais causas da morte dos cidadãos? E quanto a planejar a explosão de bombas em recintos civis contendo aproximadamente várias dezenas de milhares de indivíduos? E quanto a colocar bombas em locais públicos como bancas de jornais? E quanto a sabotagens que redundam em mortes? E quanto ao planejamento de explosão de quartéis inteiros para, como resposta institucional, o seu mentor receber ascensão na carreira militar? O que se pode depreender disto a afirmação de outro trecho do manifesto, a saber, que “Nenhum Militar tergiversa, nem se omite, nem atinge o generalato e, nele, o posto mais elevado, se não merecer o reconhecimento dos seus chefes, o respeito dos seus pares e a admiração dos seus subordinados” é que os militares graduados que planejem ações deste gênero são “admirados” por seus pares, tanto superiores como subordinados, assim como desfrutam de expresso “reconhecimento de seus chefes”, sendo assim admitido, portanto, tratar-se de uma cultura vertical e horizontal expandida, compartilhada por todos.

Sob tal modelação de ações que transitam do mundo da ficção para a impactante realidade, parece realmente claro que nas FFAA “ninguém ascende na carreira em face de “um palavreado enfadonho, supérfluo, verboso, ardiloso, como um bolodório de doutor de faculdade”, não mesmo. Os métodos são bem outros, muito, a julgar pela história e por decisões dos tribunais, realmente muito diferentes, mas, temo, não permitiria a ninguém, agora sim, taxativamente, em sã consciência, preferir-lhes aos recursos verbais que a vida civilizada supõe, tal como, eventualmente, valer-se de “palavreado enfadonho” ou, quem sabe, até mesmo “supérfluo, verboso, ardiloso”, mas nunca homicida, em nenhum caso torturador ou violador, ou é que algumas almas terão irretorquivelmente cruzado o rubicão e, empapadas do precioso líquido vermelho que garante a existência, já não logram regressar ao território romano?

Altas patentes das FFAA brasileiras recorreram a juízos analíticos sobre um específico membro da mais alta corte nacional e que finalmente atinge a toda ela, e isto configura uma excrescência, mas que recorram à gramática do excremento para adjetivar apenas revela as latitudes em que o seu pensamento transita e de onde realmente extrai o seu alimento. Para tal fim intelectual, este sim, ou a matéria não é orgânica ou o será. Neste espaço não há compreensão do que significa a expressão jurídica ordinária da condução sob vara, quiçá, tão fixada esteja a memória coletiva de determinados atores em outro tipo de varas de uso tão diverso. Há documentos em que tudo ali são palavras ao vento, retórica fácil, texto tão rude quanto cru, descompromisso cívico evidente, e transgressão do dever funcional como marca-mor inaceitável.

O tom agressivo do manifesto da turma do quimono impinge à virtude militar, calçada em espírito indômito, da supostamente dispor de alta capacidade de decisão, e isto seria o divisor de águas, e nada mais, para que lhes qualificassem como generais de merda, como se o caráter excremental do objeto dependesse do reconhecimento do olhar alheio e não da condição da coisa em si. Muito mais é o que a pátria poderia esperar de altas patentes como a dos doze brigadeiros, cinco almirantes e três generais que apõe a sua assinatura em tal tipo de documento que aponta para a desconstrução das instituições de Estado e ataque à Constituição cujo dever funcional é de respeitar.

Como recordava ao início, a condição deste missivista é a dos muitos contribuintes brasileiros ofendidos pelo fato de indivíduos armados tomar a liberdade para além das previsões legais de imiscuir-se na vida civil e na organização da política. Afinal, militares ou militantes? Nesta condição os contribuintes e cidadãos brasileiros podem exigir que militares respeitem as instituições, que respeitem a aplicação dos tributos que são recolhidos para honrar o pagamento de seu soldo, que não ofendam a Constituição, pacto fundacional da sociedade, que honrem a farda e a pátria, que respeitem o Brasil e, sobretudo, a sua brava gente e sofrida gente.

Roberto Bueno – Professor Associado da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC). Mestre em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM). Especialista em Direito Constitucional e Ciência Política (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales / Madrid). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito (UnB) (2016-2019). Pós-Doutor em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM).

Redação

4 Comentários

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  1. Parabéns, Doutor e Professor Roberto Bueno!
    Sendo parte da brava e sofrida gente brasileira, me sinto honradamente representado em sua bela, provifencial e corajosa resposta aos militares e/ou militantes.

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