Um exercício de escuta, por Ana Beatriz Prudente

Um exercício de escuta, por Ana Beatriz Prudente

No mundo contemporâneo é cada vez mais difícil encontrarmos pessoas capazes de escutar os outros. Com uma vida corrida, hiperativa, repleta de conflitos e polarizações, o ato da escuta se tornou raro. Há uma ausência de experiências de escuta, que tem relação com a nossa educação e se reflete nela também.  É comum ouvirmos o outro a partir do nosso próprio campo de visão e perspectivas. No entanto, este é um exercício infrutífero porque não considera o outro igual, mas sim inferior ou superior.  Para escutar o seu amigo, seu colega de escola, de trabalho, seus familiares e todos que o cercam é necessário que você se coloque no lugar dele e entenda que você não sabe de tudo, que ainda tem muito a entender. Precisamos compreender que o processo de escuta parte da incerteza, da descoberta e da renúncia a relações desiguais.

Ler é um exercício de escuta, alguns livros nos mostram como o processo de escuta é tão importante para as relações humanas. É o caso de Voragem, de Junichiro Tanizaki, muito interessante na sua forma pois apresenta a escuta como um compartilhar de histórias e trajetórias. É um livro escrito em primeira pessoa, no qual, a personagem principal conta para o seu sensei episódios que aconteceram em sua vida. Assim, o leitor tem a impressão de que a narradora está contando os seus segredos mais íntimos, um verdadeiro confessionário.

Naturalmente, o leitor começa a desenvolver uma relação de cumplicidade com a personagem narradora, como se o leitor fosse o sensei, a pessoa a quem ela está recorrendo para obter conselhos. Então, em alguns momentos, ao longo do texto, é comum que se interrompa a leitura, com o desejo de chamar a atenção da personagem, um desejo por intervenção na história que já se passou. Nós desenvolvemos uma relação de amizade com quem está contando a história.

As diversas facetas do feminino também tornam esta obra tão especial. Apesar de ser escrita por um homem, ela pode ser vista como literatura feminina, que contém muitas nuances feministas. O autor não faz julgamento dos fatos, das personagens, não julga ninguém. Esse papel de julgamento do bom ou do mau cabe somente ao leitor.  Muitas pessoas que leem este livro têm, inclusive, pontos de vistas diferentes em relação às personagens. Porque a obra transfere para o leitor toda essa possibilidade.  Voragem é repleto de relatos de situações, de histórias, de relações que são construídas pela protagonista, assim, o leitor toma a posição da escuta e se vê como uma espécie de “terapeuta”, ouvindo um paciente em um divã. Ele dá esse poder ao leitor, mas não um poder colonial, pois ele mostra os personagens muito humanizados, ninguém é apresentado como totalmente bom ou ruim. Trata-se, portanto, de uma obra provocadora e voraz.

Logo de início, essa personagem narradora conta que quase traiu o marido, mas não concretizou essa traição. Em seguida, afirma que estudou em uma escola de arte, atividade comum para mulheres ricas do Japão, na época. Nessa escola, fica sabendo da existência de uma outra aluna muito bonita e alguns boatos começam a surgir, insinuando que a protagonista estava apaixonada por essa bela aluna, mesmo que ambas nunca tenham se falado.  São boatos infundados. Mas, isso faz com que acabem se atraindo e se conhecendo. Nesse processo de conhecimento elas realmente se apaixonam.

Estamos falando aqui de uma obra literária do século XX, mais especificamente, da década de 1930, num momento em que falar abertamente sobre homossexualidade era muito difícil. Um tema que ainda no século XXI sofre resistência e preconceitos. Contudo, a obra também traz questões como matrimônio por conveniência, machismo, educação de mulheres, entre outros pontos sociais que tomam nosso dia a dia. Há uma riqueza muito grande de temas considerados tabus, como “uma grande cebola com muitas camadas”, a cada camada retirada, o leitor é engolido com voracidade para dentro da obra.

Eu indico este livro porque precisamos refletir muito em um momento que a sociedade brasileira está em retrocesso: em diversos costumes, nas conquistas de direitos civis, no reconhecimento dos direitos fundamentais.  Mais do que nunca é hora de estimular a leitura de obras libertadoras, que respeitem suas personagens, busquem mostrar todas a facetas sem censura. Para mim, é exatamente o que faz Voragem. As personagens são apresentadas sem edição, ou seja, como humanos, com seus sentimentos, sua sexualidade, seus desejos. Um livro que desnuda as personagens, que reconhece os seres humanos como eles são, sem julgá-los por suas escolhas ou por ser quem são.

Ana Beatriz Prudente é estreante como crítica literária, gestora de Economia Criativa, Educadora de Mulheres Empreendedoras, Ativista pelo Empreendedorismo Social com Design Thinking,  Membro da Comissão Permanente de Combate à Covid-19 da Faculdade de Educação da USP e Membro da Comissão de Cooperação Internacional da FEUSP.

Redação

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