Um Foucault “fenomenólogo” e neoliberal? A resposta dos Mestres da Verdade, por Rogério Mattos

Um Foucault “fenomenólogo” e neoliberal? A resposta dos Mestres da Verdade

por Rogério Mattos

Segundo texto da série contra a visão de um Foucault “fenomenólogo” e neoliberal. A antropologia histórica francesa dá uma resposta a altura às abordagens essencialistas de Heiddeger, com Marcel Detienne relendo seu clássico Os Mestres da Verdade na Grécia Antiga. Os mestres da verdade, os regimes de veridicção, a aleturgia: todos esses conceitos foucaultianos são tributários dos estudos que fez, para além da influência perene de Dumézil, com a chamada “terceira geração” da Escola dos Annales.

Vale lembrar que a mesma chave em que se coloca o Foucault como neoliberal, o aproxima perigosamente da fenomenologia. A crítica costumeiramente foca muito no termo “neoliberal” e esquece que a fenomenologia é seu contraposto necessário. Na gênese traçada por Foucault, é quase impensável o surgimento do liberalismo do pós-guerra na revista Ordo sem os debates sobre a filosofia de Husserl, que lhe deu aspectos de “ciência maior”. Essa é a chave que ele quis se afastar com suas pesquisas expostas no curso Nascimento da Biopolítca, e essa é a chave que não se deve usar para ler Foucault, de acordo com as leituras do próprio Deleuze.

A antropologia histórica francesa, da qual podemos destacar basicamente três nomes, Jean-Pierre Vernant, Marcel Detienne e Pierre Vidal-Naquet, se destacou pela análise minuciosa de diversos temas da Grécia clássica que antes se demoravam nas mãos de filósofos. Renovação é uma palavra que não define em toda sua amplitude os desdobramentos da abertura deste novo campo do saber, pois desloca da Alemanha determinado monopólio sobre o dizer verdadeiro, sobre a cultura clássica, e desloca esse saber num momento crítico, no pós-guerra, ou seja, após a derrota do nazismo na Alemanha. Por exemplo, Nietzsche se tornou definitivamente nazista com as leituras de Heiddeger. As análises mais renovadoras e que recolocaram o filósofo no circuito cultural, porém com propostas de leitura completamente inovadoras, são sem dúvida a abordagem “genealógica” de Michel Foucault e a “gargalhada de Nietzsche”, como nas análises nem um pouco ortodoxas feitas por Gilles Deleuze. No que concerne a historiografia, um retorno aos Mestres da Verdade é feito em livro publicado originalmente em 2005 por Marcel Detienne. No artigo, podemos ver pelas palavras do historiador a vitalidade conservada ainda hoje por seu pequeno livro, assim como a fuga de determinada metafísica alienadora. Sobre o tema da verdade e sobre o conceito de político, se exprime assim Detienne sobre o “filósofo-religioso” conhecido pelo conceito de Dasein:

Na verdade, olhando mais de perto, desde O ser e o tempo, o político, no sentido que se tornou vulgar, e mesmo muito vulgar, cobriu-se de desprezo. É um obstáculo ao processo do Dasein, do Existente determinado pelo cuidado de si e que só pode apropria-se de si distanciando-se do cotidiano, do social, e da cidade com seus lugares públicos inutilmente ruidosos. Nessa via, um filósofo, lúcido e mais corajoso que os outros, buscou compreender como o pensamento de Heidegger se arriscou “àquilo que lhe aconteceu”. Sim, em 1933, memória de um passado recente: adesão do filósofo do Dasein ao nacional-socialismo de Adolf Hitler; silêncio hermenêutico sobre o genocídio dos judeus; impotência do filósofo, tarde demais para fazer a crítica de sua adesão “circunstancial” ao partido nazista. Não estamos aí junto à Verdade, tão grega, mas não estamos tão longe do mesmo desprezo sobre quanto ao que Heidegger chama a “antropologia” e que engloba para seus discípulos e devotos as pesquisas realizadas pelos historiadores da Grécia arcaica sobre os meios filosófico-religiosos e sobre as formas do pensamento descobertas por caminhos que não conduzem, de fato, nem aos recintos conhecidos nem ao coração das “grandes obras[1].

Heidegger aparece na seção “Os gregos e nós: com ou sem contexto?” parece que na intenção de ressaltar a necessidade de, através da contextualização entre dois métodos diferentes de pesquisa, diferenciar as análises alienantes das mais fecundas. Pelo menos desta maneira é como lemos o livro de Detienne. Mas tal posicionamento não é exclusivo da historiografia, e pode ser corroborada pelas palavras de alguém que ainda hoje tem uma das melhores leituras de Foucault, sem ser prejudicada pela admiração pessoal nutrida pelo escritor:

Sempre houve em Foucault um heraclitismo mais profundo do que em Heidegger, pois, afinal, a fenomenologia é pacificadora demais, ela abençoou coisas demais.

Foucault descobre então o elemento que vem de fora, a força. Foucault, como Blanchot, falará menos do Aberto que do lado de Fora. É que a força se relaciona com a força, mas de fora, de tal forma que é o lado de fora que “explica” a exterioridade das formas, tanto para cada uma quanto para sua relação mútua. Daí a importância de Foucault afirmar que Heidegger sempre o fascinou, mas que ele só o podia compreender através de Nietzsche, com Nietzsche (e não o inverso). Heidegger é a possibilidade de Nietzsche, mas não o inverso, e Nietzsche não esperou a sua própria possibilidade. Seria preciso reencontrar a força, no sentido nietzscheano, o poder, no sentido específico de “vontade de potência”, para descobrir esse lado de fora como limite, horizonte último a partir do qual o ser se dobra. Heidegger se precipitou, dobrou rápido demais, e isso não era desejável: daí o equívoco profundo de sua ontologia técnica e política, técnica do saber e política do poder. A dobra do ser só se podia fazer a nível da terceira figura: será a que a força pode se dobrar, de modo a ser afecção de si sobre si, afeto de si por si, de tal forma que o fora constitua por si mesmo um dentro coextensivo? O que os gregos fizeram não foi um milagre. Há em Heidegger um legado de Renan, a ideia da luz grega, do milagre grego. Foucault diz: os gregos fizeram muito menos ou muito mais, como quiserem[2].

 

Numa ponta o posicionamento historiográfico a respeito de diferentes abordagens sobre uma mesma disciplina; na outra ponta, uma abordagem de cunho pessoal a respeito do trabalho de um filósofo. Em ambas as pontas as questões se entrelaçam: Detienne realça o saber alienado dos antropólogos ou filósofos que se comprazem em comparar os gregos com os gregos. Quer dizer que gostam de comparar supostos “originais” gregos com seus herdeiros, ou seja, aqueles que se acham portadores dos ideais de um modelo de civilização que supostamente tem a Grécia como matriz. Voltando a Deleuze, é a mesma questão do “legado de Renan”, da luz grega, do milagre grego. Mas tais padrões civilizacionais abençoaram coisas demais, erros em demasia, como o próprio nacional-socialismo. A antropologia surge como uma espécie de refugo das ciências humanas, não captando determinada profundidade “filosófico-religiosa”. Ou surge como legitimadora de ideais de superioridade que teimam em constranger a pluralidade de formações sociais, de constituições diversas dos povos no mundo. Por isso Foucault está mais situado no Fora do que no Aberto (e assim também entendemos a terceira geração dos Annales, especificamente a antropologia histórica). Por este se entende o refúgio procurado pelos sábios heideggerianos. Pelo Fora compreendemos as conexões com a sociedade, com as relações de poder, de captar as diferenças (talvez seu “inventário”). Por isso Heidegger é uma possibilidade de Nietzsche, enquanto este não esperou por sua possibilidade: consumiu-se em seu próprio tempo, em sua atualidade, e não na busca de possíveis, como nas investigações do filósofo do Daisen.

Continua…

Para ler o primeiro texto, A risível história de um Foucault “fenomenólogo” e neoliberal: as garras de François Ewald, clique aqui.

Para ler o texto acima em PDF no Academia.edu clique aqui.

Referências

[1] DETIENNE, Marcel. Os gregos e nós: uma antropologia comparada da Grécia antiga. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 90-1.

[2] DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2013, p. 120-1.

Rogério Mattos: Professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História (UERJ) e doutorando em Literatura Comparada (UFF). Mantém o site http://www.oabertinho.com.br, onde publica alguns de seus escritos.

 

Redação

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