Um jovem da periferia dos Brasis, por José Carlos Peliano

 

Artigo do Brasil Debate

Por José Carlos Peliano

Bermuda de boa qualidade, tênis gasto de marca, camiseta regata made in China, braços tatuados, boné de frente para trás, 14 anos de idade. Aluno do ensino fundamental público da periferia de uma das capitais do Brasil. Roupa diferenciada das usadas pelos demais pela qualidade das peças.

O papo finalmente começou a rolar no estacionamento do centro da cidade depois de um tempo, três dias talvez, após me olhar várias vezes de cima a baixo, de um lado a outro, entre silêncios, murmúrios e escapes, desconfiado, retraído. Buscou saber quem eu era, o que queria, logo com ele, por meio de algumas perguntas curtas, diretas, sem rodeios. Rodeou-me ainda assim de suspeitas, mas acabou cedendo aos poucos, respostas telegráficas de início.

A boa roupa viera de rolos efetuados aqui e ali. Rolos de trocas de objetos, produtos, e outras “coisas” mais, muitas, variadas. Que outras coisas? Meio que receptações, surrupio, revendas, origens desconhecidas e “envelopes”.

A diferença, portanto, se amplia, dele para os outros, não estava só na roupa, se estendia às atividades de sobrevivência. Pais separados, vivia com a mãe, faxineira. Precisava se virar para ajudar em casa e a ele mesmo também. Acabou na faixa de acostamento da vida, às escondidas, por um longo trecho da pista, fora das pistas tradicionais e conhecidas de trabalho e emprego.

Os demais, galera de sua idade e residência, a maioria, estavam nas pistas ou correndo atrás delas, fosse em algum bico, fosse nas ruas dando um tempo ou num “rolé”. A escola onde estudava servia de contato com os outros. Onde rolava novos rolos e onde alguns do acostamento surgiam meio que na moita e sondavam. Lá em sua escola a área tinha sido dele por certo período.

Não era mais. Caíra fora. Passou um tempo sumido, longe, protegido. Teria sido perseguido depois de levado duas vezes pelos “ômi”, só para amedrontar, pressionado pelos mandantes, ameaçado pelas casas de correção, apertado mas acalentado em casa. Dava agora, depois de tudo, um tempo. Pensava não voltar mais, um trabalho já estava na mira para não sucumbir de novo às tentações.

Demorou para chegar a contar tudo isso. Bumerangue, ia e voltava. Tipo aproximação com potro selvagem, índio não contatado, bicho acuado. Dava ali uma de flanelinha, a escola o segurava por um período e o estacionamento por outro. A confiança veio porque, de repente, eu era com quem ele pôde desabafar. Assim me pareceu, mais ou menos de igual para igual.

Estava por aceitar uma oferta de entregador, tempo parcial, de uma venda próxima do bairro onde morava, de bicicleta, pela manhã e a tarde, estudo à noite. Teria que trocar de turma, estava na matutina. Lembrei-lhe que o serviço poderia mantê-lo perto das bocas, de onde saíra. Assentiu, mas não via por enquanto outra saída.

Por que não outra saída?, perguntei-lhe. A partir daí soltou mais a língua, sem reticências, mostrou-me como seu mundo entrava no mundo onde eu estava, o resto da sociedade. Dei-lhe linha, como se diz, para que a pipa voasse mais alta, à vontade, seguisse o vento para onde levasse.

A falta de saída vinha do fato de ser pobre. Pais ricos, filhos só para estudar, pais pobres, filhos têm de se virar. Alguns conseguem com sacrifício ficar na escola, a maioria sai antes para arranjar algo para fazer, se defender, se manter e ajudar em casa. As cartas já vinham marcadas no sangue, segundo ele. Transfusão não havia chance.

Quando um pobre conseguia seguir estudo superior, no arrocho e na fome, e se formava como “dotô”, os ricos aplaudiam, como exemplo de estudo e esforço, vitrine aos demais. O grosso dos pobres não, ficavam todos eles fora, no limbo. Aquele que conseguia era um em milhões, os demais queriam, sim, chegar lá como aquele. Sonho curto, porém, pesadelo longo. Uma andorinha só não faz verão nem traz outras da espécie.

Sobrava o quê? Para os pobres as migalhas, a marginalidade, o bico, o emprego sem carteira assinada, o ambulante, poucas chances e sorte de chegada ao ensino “de profissão”. Qual? Trabalhador de obra, estrada ou comércio, auxiliar de qualquer serviço, garçom, carregador de mala em hotel, doméstico, vigia, polícia.

Parava aí, não dava para ir mais alto. Poucos os pobres que conseguiam trabalhar o dia inteiro, estudar à noite, demorar para ir ao trabalho e chegar em casa, dormir pouco, semana inteira, e prosseguir até o final do curso com o diploma na mão. Depois disputar vaga com ricos que só viviam estudando. Não dava, segundo ele. Mundo que parece igual na TV e nos painéis de propaganda, mas desigual, safado, falso no chão, nas ruas, nos andares dos edifícios e empresas.

Sem falar das meninas que se engravidavam, muitas, e tinham de tomar conta dos filhos, ou pagar para alguém fazê-lo, enquanto trabalhavam fora. Sem escape. Lutavam por vagas que também eram poucas, lavadeiras, faxineiras, empregadas domésticas, cuidadoras, auxiliares no comércio, manicures. Indo e voltando de “busão”, caro. A grana da semana ou do mês não dava para tudo. Não sobrava. Conta pendurada na venda ou no “devo” de amigos e parentes, quando tinham.

O governo vem ajudando aos pobres com uma “graninha” para filho ficar nas aulas. Condições para famílias terem casa, para galera ter merenda e dentista na escola, cursos de profissão. Mas, amigos lhe diziam e sua casa sabia, um ou dois salários por mês não dá para a família se manter, ter como comprar uma casa financiada e deixar de ter filho no trabalho para completar a grana do mês, custosa, ano inteiro. Mais filhos, então, aí é que nem pensar.

“Vivo da flanela aqui no estacionamento, não sei ainda se pego a vaga na venda, penso assim: aonde vou e até onde posso? Se tentar me formar bem estudado quem vai ajudar minha mãe em casa e meus dois irmãos menores? Sei não, cara, esse mundo não é igual para todos. Pô, meu!Raiva muita. Queria ter nascido rico. Vim pobre. Sem chance melhor”.

“Também não dá para ficar de flanela muito tempo, tem o cara que manda no pedaço, aqui, divide o trabalho, o tempo do dia, de repente vem outro e toma meu lugar. Tenho de pensar em me virar noutro canto e serviço, sair dessa. E fazer o meu hoje para ter o que comer e ver se sobra algum amanhã”.

(Bem, esse jovem existe, mas é uma composição, ele está em muitos, resultado da montagem feita por mim de outros tantos que conheci, conversei, li depoimentos e ouvi relatos por esses Brasis de salve-se quem puder. O estacionamento é um dos locais urbanos quaisquer onde os jovens circulam. A escola pública da periferia também. Mas não a dureza da situação econômica, social e pessoal de cada um e de todos eles, esta é típica de um menino ou menina periféricos, pobres, dentro mas fora da sociedade feita, arrumada, rica. O mundo dito civilizado conta e leva em conta somente aqueles que conseguiram subir melhor no trabalho e na vida, deixam para trás da contagem e da menção aqueles que ficaram para trás na escada social por não terem tido semelhantes berços, oportunidades, indicações, patrimônios e heranças).

Conheça a página do Brasil Debate, e siga-nos pelo Facebook e pelo Twitter.

Redação

13 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

    1. Concordo, discursos bonitos

      Concordo, discursos bonitos nao fazem nada para aplacar a fome. Da mesma forma, aplicacao do capitalismo selvagem apenas piora as coisas.

      Ha 45 milhoes de Americanos passando por inseguranca alimentar nos EUA, enquanto esse numero cai para 7 milhoes no Brasil apos os governos Lula-DIlma.

      Se gastassem 5% do orcamento militar, os EUA poderiam erradicar a fome no seu pais. Entao porque nao fazem?

      1. ?

        Não fazem, porque  é um Estado que baseou sua economia na produção para a guerra – desde a última, mundial, e que jamais saiu dessa “camisa de força”  (malgrado a lama em que se enfiaram no Oriente Médio). Uma sociedade sem instituiçoes capazes de fazer valer alguma vontade de emancipação, guiada pelo “destino manifesto” centenário, que ainda inspira um patriotismo superado no tempo e que alimenta uma plutocracia egóica e suicida… 

      2. Pelos padrões de renda dos

        Pelos padrões de renda dos  EUA 190 milhões de brasileiros estariam recebendo SNAP.

        Algum tempo atrás Lula afirmava que no Brasil existia 25 menores abandonadose e todos aceitavam esta mentira.

        Quando você afirma que “45 milhões de americanos  passando por inseguranca alimentar nos EUA” , não é verdade.

        Já vi ate afirmação que 45 milhões de americanos passam fome.

        Debarros quando se quer uma informação confiável deve se ir a sfontes primárias.

        Vamos ver o site http://www.fns.usda.gov/ entre outros podemos ver o que se trata.

        Qual é a renda necessária para obter o beneficio do SNAP

        “SNAP é destinado a famílias de baixa renda. Você deve atender aos requisitos do lucro líquido e bruto para se qualificar. A partir de 2010, a exigência de receita bruta para a maioria dos estados é que você não pode fazer mais de 1.174 dólares por mês para uma pessoa, com $ 406 adicionados ao limite para cada membro da família. A exigência de lucro líquido é que uma pessoa não pode fazer mais do que 903 dólares por mês, com $ 312 adicionados por pessoa. Uma vez que os requisitos de renda são baseados, em parte, o nível de pobreza de cada estado, você pode achar que o seu estado tem requisitos de renda maior ou menor do que isso. Regulamento guarda-chuva para a renda, porém, é que o seu rendimento bruto não pode ser superior a 130 por cento do nível de pobreza e que o lucro líquido não pode exceder 100 por cento do nível de pobreza. Deduções estão disponíveis, mas variam em cada estado.”

        Veja 1174 dólares, ou seja 3700 reais mês são apta para receber SNAP.

         

         

        1. Oneide, 
          Onde vc nao entendeu

          Oneide, 

          Onde vc nao entendeu que mais de 45 milhoes de Americanos precisam do bolsa alimentacao SNAP para sobreviver?

          Tera direito ao SNAP familias de 4 pessoas que ganhem menos de u$ 23K/ano (R$ 60 mil/ano). Se a familia for menor o limite tambem o eh. Agora se vc acha que U$ 23K / ano nos EUA eh bom dinheiro, vc vive na Lua ou em Marte. So de aquecimento durante o inverno ha de se pagar mais de U% 200/mes. Isso sem contar agua e eletricidade. O aluguel mais barato para uma familia nao sai por menos de U$ 1000 / mes. Agora faca as continhas direitinho e veja que nao sobra um centavo para alimentacao. 

          E ainda tem que ter carro, pois nao ha onibus para todos os lugares como no Brasil. No final do mes o saldo eh do orcamento domestico eh sempre negativo. Logo, se nao receberem as famosas food stamps, que os Republicanos reacas do seu tipo querem por um fim, morreao de fome.

          E sao o pais mais rico e poderoso do mundo. Dai vc ve o que o capitalismo selvagem nao causa.

          Ainda bem que existem os Democratas, que se opoe aos Republicanos que vc tanto ama, para promoverem alguma assistencia social, senao essa massa de 45 milhoes de pessoas teria que recorrer ao crime para sobreviver.

          Aqui vai um grafico para ajudar a clarear seus pensamentos turvos:

           

           

           

           

          1. Cada estado gerencia o SNAP

            Cada estado gerencia o SNAP que não é o unico programa de assistência.

            Em estados onde o inverno é mais rigoroso tens outros beneficios.

            A questão é essa o que se entende como pobreza nos EUA e classe média(baixa, média) aqui mesmo relativizando os custos de vida.

            Os EUA não é a muito tempo um regime capitalista laissez faire, e muito menos selvagem.

            Você e anti americano e anti capitalista não existe nada que eu possa fazer sobre isso, sectários não aceitam dialética.

             

          2. A superficialidade de seus

            A superficialidade de seus conhecimentos eh de dar pena. Ficou o dia todo de ontem pesquisando no Google como refutar meus argumentos. Acabou me dando razao em todas as suas replicas mediocres. Fica ai colocando etiquetas em quem nao conhece, ouve o galo cantar e nao sabe onde.

            Gente do seu time (Republicanos) querem os EUA de volta ao Sec XIX, revogacao do Civil RIghts, fim da assistencia aos necessitados, fim do social security, e vivem colocando obstaculos para evitar que minorias votem e escolham seus representantes. Nao defenda aquilo que vc eh contra. Vc eh um reaca e eh contra todo todas as conquistas sociais alcancada pelo sistema Americano que so foi possivel com o advento de politicos progressistas.

            A humanizacao do sistema Americano somente foi alcancada atraves da subida ao poder de politicos da esquerda progressista, que acreditam e apoiam o movimento dos trabalhadores como FDR, Kennedy, Lindon Johnson e ate mesmo Barak Obama. A turma do seu time so faz gol contra e quer o fim da Democracia Americana, com a tomada total de poder pela plutocracia e pelas corporacoes. Os cabecas de bagre do seu time (Republicanos), acham que cortar impostos para os ricos eh unica solucao para todos os problemas. Vivem de criar conflitos internacionais para manter os EUA em estado de guerra perene. Assim sustentam aqueles que fazem jorrar dinheiro nas suas campanhas politicas como a industria de armamentos, petroleo e carvao mineral.

            Pobre reaca ignorante!

    2. Sua fala é carregada de ódio,
      Sua fala é carregada de ódio, ódio incrustado em pseudos convicções… Seria melhor colocado se afirmasse que ” se todos os partidos políticos não roubassem 1% de nossas riquezas, não haveria miseráveis…

    3. “10% que o PT roubou da pra

      “10% que o PT roubou da pra fazer muita familia melhorar de vida”

      Você já imaginou se fizesse o mesmo com o PSDB.

      Daria para  fazer pelo menos 20 vezes mais.

      É uma pena, né não ?

  1. Concordo, DeBarros!

    O empobrecimento de significativa parcela da população norte-americana é percebido em cidades como Dearborn (Michigan, USA) onde fica a sede da montadora Ford.

    É notório o crecimento do número de pessoas vagando pelas ruas (exceto durante este rigorosíssimo inverno).

    Em bairros residenciais, notadamente nas periferias, há muitas casas em precário estado de conservação, assim como automóveis abandonados estacionados ao relento.

    Não é pequeno o número de famílias que são obrigadas a diminuir a temperatura de aquecimento de suas casas para economizar na conta de energia.

    Ouvem-se relatos que em Detroit e cercanias a violência crece exponencialmente, inclusive com a ocorrência de saques no comércio.

    Creio que isto não seja nem 1% dos problemas…

     

    1. Anti-americanismo barato.
      O

      Anti-americanismo barato.

      O padrão de renda que defini pobreza no Brasil dava classe média (alta?) no Brasil.

      Se fosse aplicada o padrão de renda dos EUA no Brasil 190 milhões de brasileiros receberiam SNAP, “Programa de cupons de alimentos dos Estados Unidos”.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador