Uma bela entrevista com Pepe Mujica, por Tereza Cruvinel

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Tereza Cruvinel

No Brasil 247

Neste final de ano, talvez haja uma pausa na usina de absurdos e espantos com que todos os dias somos golpeados no Brasil. Talvez haja tempo para todos pensarem mais, recordando o galope deste ano louco, em que tanto se perdeu mas também tanto se aprendeu. Para pensar  no futuro, no de cada um, no de nosso país, do nosso continente e do mundo. No que temos feito e no que deve ser feito para que o mundo fique melhor.

Como contribuição às possibilidades reflexivas nesta pausa, tomo emprestada uma bela entrevista com o ex-presidente Pepe Mujica para compartilhar com os leitores do blog e do 247. Foi feita recentemente por Carmem Feijó, Hélvio Rech, Roberto Saturnino Braga e Rosa Freire D’Aguiar, que a publicaram nos Cadernos do Desenvolvimento, revista acadêmica do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. Enviou-me o link a historiadora Isabel Lustosa, colaboradora e divulgadora de meus escritos aqui.

Com a simplicidade e a franqueza que o caracterizam, Mujica confirma na entrevista as razões que fazem dele hoje o líder de esquerda mais admirado da América Latina. Conhecido pelo hábito de dirigir o próprio velho carro, e de não ter acumulado qualquer patrimônio, defende que a esquerda não se deixe fisgar pelas tentações da sociedade de consumo e que a vida não seja apenas trabalho e luta, permitindo a reserva de espaço e tempo para os afetos e o prazer.  Lamenta a interrupção dos avanços obtidos na integração sul-americana e faz uma defesa vigorosa do ex-presidente Lula e de sua candidatura. “ Lula, para mim, é um homem muito importante. É um capital do povo brasileiro. Aliás, de toda a América Latina.  Se Lula não puder ser candidato, é preciso tomar a decisão de apoiar quem for indicado por ele.”

Mujica fala também de seus anos na prisão, de seu governo inovador no Uruguai, do estágio atual do capitalismo e do que a esquerda pode fazer para mitigar suas imposições.  Ex-guerrilheiro, ele acha hoje que o mundo só mudará com a emergência de uma nova cultura, de valores que se oponham ao consumismo e ao estresse exigido pela acumulação,  pela troca do verbo Ser pelo Ter.  E esta nova cultura virá dos jovens que já não se rendem ao modo de vida capitalista e ao consumismo. Confira a entrevista e a introdução de Carmem Feijó.

Entrevista: Pepe Mujica

POR CARMEM FEIJÓ, HÉLVIO RECH, ROBERTO SATURNINO BRAGA E ROSA FREIRE D’AGUIAR

Foi numa manhã nublada de setembro que o ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica (2010- 2015), atual senador mais votado da República, nos recebeu em sua casa térrea de Rincón del Cerro, na zona rural de Montevidéu. À chegada fomos recepcionados por ele e por sua esposa, a senadora Lucía Topolansky, atual vice-presidente do Uruguai. As duas horas de conversa se passaram na pequena sala do rancho acolhedor onde eles vivem desde o fim da ditadura militar, quando recuperaram a liberdade depois de mais de uma década de prisão. Pepe Mujica é uma lenda viva por seu passado e seu reconhecimento internacional como influente líder de esquerda. Ao longo de sua vida política, destacou-se por suas posições firmes no combate à pobreza e em prol da paz mundial em suas participações em fóruns internacionais. Ficou também conhecido como “o presidente mais pobre do mundo”, que dirigia seu velho Fusca azul e doava grande parte de seu salário. Nesta entrevista, ele mostra como a prática política, atualmente tão desvalorizada com escândalos de corrupção e malfeitos em nosso país, é fundamental para a solução de conflitos inerentes ao convívio humano. Os jovens têm papel destacado no seu discurso, pois a eles atribui a capacidade transformadora para a construção de um padrão de vida mais pacífico, com avanços civilizatórios. A lucidez de suas ideias e seu carisma tornaram nosso encontro inesquecível. Carmem Feijó,  Editora.

A ENTREVISTA

ROBERTO SATURNINO BRAGA: Presidente Mujica, a sua liderança transcende a América Latina. O sr. é um líder mundial na luta pela paz. Um dos problemas com que nos deparamos é a força do capital financeiro, que pretende acabar com a política. Como o sr. se posiciona neste momento tão difícil? O que fazer? Mais política?

PRESIDENTE PEPE MUJICA: Eu acredito que os problemas difíceis não podem ter uma explicação única ou simples. Creio que nossa geração é sobrevivente do nacionalismo. Nosso avô Robespierre colocava o deus-razão como o centro de tudo. Nosso pensamento muito contribuiu para buscar razões e nos afastou bastante de outras questões. Não que as razões não tenham fundamento, mas os seres humanos são algo mais que razões, são muito mais complexos, são animais emocionais que se comportam em função dessa complexidade. Acreditamos que as grandes massas tomam suas decisões a partir dos programas que apresentamos, mas, muitas vezes, essas decisões são influenciadas pela emoção, pelo sentimento, mais que por razões, ou as razões surgem depois para justificar o que as emoções decidiram. Por que digo isso? Porque foi nesse quadro que nós caímos na apoteose do capitalismo, cujo objetivo é o desenvolvimento econômico. Ai da sociedade que fique estagnada, ai daquela cuja economia não cresça! Isso é uma tragédia. E pouco nos preocupamos se as pessoas são mais ou menos felizes. Não introduzimos na análise a questão de saber se, além do crescimento, as pessoas se sentem mais ou menos sozinhas, mais ou menos realizadas. Não, não estou fazendo apologia da pobreza. O que quero dizer é que nos esquecemos que a vida é uma só, o que nos dá o direito de lutar pela felicidade neste mundo e não no mundo que vier depois, ou em uma utopia que construiremos dentro de cinquenta, cem anos. O momento de pensar na felicidade é agora. E esta é uma pergunta que não nos fazemos. Parece-nos que o bem-estar econômico vai resolver tudo e então, no máximo, nos preocupamos em distribuir a riqueza. Está certo. E há, de verdade, uma luta para distribuir a riqueza. Mas não nos preocupamos se as pessoas são mais ou menos felizes. Acho que essa é uma questão fundamental. Está no íntimo de cada um de nós. Por que digo isto? Porque esta etapa do capitalismo trata de promover a apropriação do tempo de vida útil das pessoas para transformá-lo num valor econômico, que é acompanhado de uma cultura funcional e do consumismo. Assim, alienamos  todo o tempo de nossa existência trabalhando para pagar contas, confundindo a felicidade com a compra de novos bens. Parece que progresso significa comprar mais coisas e possuir cada vez mais. Substituímos o Ser pelo Ter. Aí se produzem situações terríveis. Como os casais, as pessoas que saem para passear, e vão a um shopping olhar vitrines!

SATURNINO: É a cultura de hoje.

MUJICA:  É a cultura funcional da acumulação capitalista. Mas, além do mais, esse processo atual do capitalismo — e isso é o que nos agride muito na América Latina — se dá ao redor de organizações multinacionais. O surgimento das empresas multinacionais, cada vez mais poderosas, estimula o crescimento da economia, porém incentiva mais e mais a concentração da riqueza. E isso produz uma concentração de frustração em vastíssimos setores da classe média. Porque a riqueza cresce, mas cresce, também, cada vez mais, a distância entre as pessoas. Mesmo em países centrais como a Alemanha, onde a economia vem crescendo, logo florescem focos de um nacionalismo que parece crônico, um chauvinismo. Porque as explicações simples levam as pessoas a entender que a culpa é dos imigrantes, a culpa é de Bruxelas, a culpa é do México, no caso dos Estados Unidos, o trabalho dos mexicanos é menos remunerado etc. E não se vê o verdadeiro fenômeno, que é a brutal tendência à concentração de riqueza, consequência da economia contemporânea. Então isso nos desarticula. E nós que somos de esquerda também acreditamos — e minha geração acreditou — que, mudando a estrutura econômica e as relações de propriedade e distribuição, teríamos uma sociedade melhor, um homem melhor.  Substituímos o Ser pelo Ter e nos esquecemos do formidável papel da cultura. Não a cultura definida como uma macrocultura que comove: a obra de arte, o romance que se escreve… Mas a cultura que representa um conjunto de valores da vida diária, que determina as relações em cada casa, em cada família, em cada pessoa.

SATURNINO: No cotidiano…

MUJICA:  No cotidiano.  A cultura cotidiana que provoca as nossas reações é muito mais forte do que qualquer exército. A verdade é que capitalistas somos todos nesta sociedade. Estamos incluídos neste processo. Então, é como se uma gigantesca teia de aranha nos aprisionasse por todos os lados. Isto é o que existe e faz com que a luta seja mais complexa.

CARMEM FEIJÓ: E como foi sua experiência no governo, para mudar a cultura do consumismo?

MUJICA: Eu não mudei nada… (risos). A única coisa que fiz e faço é semear ideias, ali onde vejo uma pequena luz no horizonte. É que a própria economia contemporânea precisa incrementar cada vez mais a formação das grandes massas, o que é facilitado pelo desenvolvimento tecnológico. Mas muita gente começa a entender que a cultura do consumismo pode ser distinta. Vejo manifestações nesse sentido no Japão, na Turquia, na Alemanha, no Brasil, no México… Eu diria que é justamente nas massas universitárias contemporâneas que se encontra a semente do que pode ser um mundo diferente.

ROSA FREIRE D’AGUIAR: Em que sentido?

MUJICA –  No sentido de que essas massas têm preocupações com a maneira de viver, não se deixam arrastar pelos outros, querem saber para onde vamos. Têm um sentido mais independente. Parece que a consciência decisória não é própria de um mundo de gente submetida a esse turbilhão da economia multinacional. Parece que se algum dia houver uma humanidade um pouco melhor, será a partir de gente que tenha uma formação muito superior àquela que hoje tem o homem comum contemporâneo. Mas isso é apenas uma hipótese. Vejo, porém, um fermento mais claro desse novo mundo no seio de qualquer grande universidade, nos estudantes, mais do que numa fábrica onde trabalha a classe operária contemporânea.  Sou de uma época em que existia o mito da classe operária. Atenção! Eu pertenço a ela, e dela sou tributário. Mas tenho que reconhecer…. Por isso acredito que se deve dar muita importância a esse mundo universitário, que vem sofrendo um grande dilema, pois termina sendo funcional para esse grande turbilhão multinacional. Certamente esse mundo vai surgir, com o correr do tempo. Será um tema de futura preocupação política, até porque não acredito em geração espontânea. Creio que não há nada espontâneo. Tudo vai depender da organização da vontade humana. Porque outra coisa seria milagre.

ROSA: E aí entra a política…

MUJICA: A política desempenha um papel fundamental. Porque o homem é, por natureza, um animal político, e não pode deixar de ser porque é um animal social. A maior herança que recebemos ao nascer é a civilização; a civilização que oferecemos a nossos filhos. A civilização e a solidariedade são transmitidas por nossa espécie de geração a geração; é algo intergeracional, desde aquelas que descobriram o fogo e os metais até as desta nossa época da biologia molecular e do que virá futuramente. É esta a acumulação construída pela humanidade. É este o maior capital que podemos receber. Trata-se do produto da sociedade, e não do resultado da criação de um homem, de dois ou três gênios. Mas se nos referimos à sociedade, que é a soma dos indivíduos, partimos do princípio de que ela vai estar sempre em conflito, porque os indivíduos são específicos. Cada indivíduo é único, portanto, é natural que além da diferença de classe, de riqueza, existam diferenças somáticas. Por isso, na sociedade vai existir sempre o conflito. E o papel da política é amortecer e viabilizar a vida em sociedade. O papel da política é que exista a pólis, a sociedade. Então, acredito que renunciar à política é quase renunciar à condição humana.

CARMEM: Mas a política hoje, pelo menos no Brasil, está muito contaminada com a agenda da corrupção, e isso acaba denegrindo a prática política. E isso é muito ruim.

MUJICA: Acredito que a corrupção tende sempre a existir. É a expressão da lei do menor esforço, que está muito presente no homem. Mas a corrupção se acentuou em nossa época porque, como fator cultural, atualmente, plantou-se a tácita ideia de que para triunfar na vida é preciso ter dinheiro. Muito dinheiro. E quem não tem muito dinheiro não venceu. E se vencer na vida é ter dinheiro, estamos desprotegidos, porque a questão não é ser feliz, é ter dinheiro. E se diz que quem tem dinheiro é mais feliz. Isso gera uma confusão entre possuir e ser. É um problema de nossa época. Não temos por que nos surpreender com a proliferação da corrupção. Porque a própria engrenagem empresarial a provoca e a favorece. Além do mais, as nações mais ricas são injustas com a América Latina. Parece que os pecadores somos nós, os latino-americanos. Só que no mundo rico as coisas são mais dissimuladas. A Volkswagen deu um golpe em nível mundial. Ninguém foi preso. Diz a empresa que vai pagar 7 bilhões. Ao Banco Morgan foi aplicada uma multa de mais ou menos 3 bilhões, mas ninguém foi preso. Não tem problema, tudo se acerta com dinheiro. Na América Latina se arma um escândalo, prende-se alguém e pronto, está resolvido. Mas não parece que o capitalismo seja mais correto lá do que cá. Provavelmente aqui é mais descarado. Toma-se menos cuidado.

SATURNINO: O capitalismo, em seus começos, era diferente…

MUJICA: Sim, sim, era o contrário do que é hoje. O capitalismo tinha uma ética puritana, da mística do trabalho, da poupança e do esforço.

SATURNINO: E diminuiu a jornada de trabalho, que era de doze horas por dia, a seguir dez, depois oito, e parou aí. Hoje, com a produtividade multiplicada não sei por quanto, seria possível trabalhar seis horas por dia e aumentar a dedicação à política, à cultura, à família, às amizades, a ser feliz. Isso aconteceu em alguns países, na França, por exemplo. No meu país os trabalhadores da Saúde trabalham seis horas. Mas como estamos sujeitos à cultura consumista, o que fazem? Conseguem outro emprego, e, em vez de trabalhar oito horas, trabalham doze. Então a gente percebe que o problema é cultural também.

CARMEM: Vejo um conflito entre o papel do Estado e o mercado.

MUJICA:  Se o Estado fornecesse bens públicos para a grande massa da população, seria uma forma de se liberar mais horas para outros ofícios. Nesse embate mercado versus Estado, o mercado vem ganhando espaço, privatizando os serviços. Naturalmente. O Estado tem uma tendência a burocratizar-se. E isso é vantajoso para o capitalismo. O capitalismo busca a apropriação de todos os circuitos de serviços, de distribuição, de todo o resto. Nisso existe uma contradição porque, sobretudo na América Latina, creio que cometemos um erro ao vermos o Estado, permanentemente, do ponto de vista dos direitos trabalhistas do servidor público. E deixamos de ver o papel que deve cumprir o Estado como protetor de toda a sociedade vulnerável. Não nos preocupamos com a formação e a qualidade dos integrantes do Estado, nem em estabelecer maneiras de medi-las e avaliá-las. Temos sido pouco exigentes. Damos pouco valor à ferramenta Estado. Não é possível que uma pessoa comece a trabalhar no Estado e que não lhe sejam exigidos dois ou três anos de formação básica mínima para ser admitida. Por que essa exigência? Porque o trabalhador do Estado em tudo o que faz gera uma repercussão de caráter social. O Estado deveria ser integrado pelos melhores profissionais do país, e não pelos piores. Erramos feio. E temos errado. Fomos enganados no que se refere aos direitos trabalhistas. No meu país, por exemplo, até os anos 1950, os funcionários públicos não podiam fazer greve. E começamos a ceder, a conceder. E para demitir alguém do Estado o funcionário tem que ter matado a mãe, pelo menos. É horrível… Então temos dois cidadãos: o que trabalha na atividade privada, que tem que suportar qualquer coisa, e o que trabalha no Estado. Intocável. É difícil!

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Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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