Uma causa em causa própria, por Alexandre Coslei

A origem modesta, que antes causava uma ponta de vergonha, agora é usada como marketing pessoal, justificando a tal meritocracia. Porém, a meritocracia é uma falácia, uma falácia nociva.

Uma causa em causa própria

por Alexandre Coslei

Decidi escrever sobre um tema que sempre me incomodou. Talvez, possam dizer que minhas conclusões venham de uma reflexão equivocada, mas é provável que me ajude e me traga mais clareza desenvolvê-la aqui. Alguns setores da área de humanas são poderosos produtores de representantes de causas sociais e identitárias. Dependendo do carisma e da aceitação da grande mídia, alguns desses representantes se tornam mais visíveis do que as causas que defendem, é por esse aspecto controverso que exerço esta crítica. 

O exemplo é reflexo da pobreza dos argumentos, mesmo assim irei me arriscar. Tive uma colega que morava na Zona Oeste do Rio, numa área humilde, filha de trabalhadores da base, uma doméstica e um pedreiro. Na época, percebi que ela demonstrava um pouco de constrangimento pela sua origem. Inteligente e ambiciosa, conseguiu galgar melhores condições de vida, até alcançar uma posição de destaque numa instituição pública. Não parou por aí, abraçou uma causa usando a própria instituição em que trabalha e hoje aparece faceira e articulada em entrevistas para programas de rádio e TV. A origem modesta, que antes causava uma ponta de vergonha, agora é usada como marketing pessoal, justificando a tal meritocracia. Porém, a meritocracia é uma falácia, uma falácia nociva. São poucos os cidadãos que nasceram em meio à pobreza que conseguem crescer socialmente sem assistência e orientação de outros cidadãos que foram agraciados com privilégios. No entanto, no discurso daqueles que vencem pela suposta meritocracia, raramente são reveladas as mãos generosas que os acolheram na jornada. 

Voltando ao assunto, não é incomum observarmos líderes de causas sociais com histórias de superação, é algo imediatamente exposto pela grande imprensa, pois demonstra que quem se esforça vence obstáculos. Dessa forma, camuflam uma das faces mais perversas do capitalismo, os outros milhões de indigentes que não contaram com a sorte ou com o apoio de terceiros. Os líderes que surgem são, quase invariavelmente, cooptados pelo deslumbre da visibilidade midiática e se transformam na própria face da causa ou das minorias que defendem. A meu ver, é nesse ponto que que qualquer luta social se enfraquece, nenhum indivíduo deve aceitar ser empossado como o rosto que se sobrepõe ao coletivo. Se aceita, está cedendo à vaidade e abusando daqueles que confiaram em sua representação. Uma causa não pode se resumir a um rosto, pois ela reflete os anseios de uma coletividade. Não à toa, muitos desses representantes de grupos sociais, quando alcançam renome, partem para consolidar aspirações políticas. Não que seja errado querer se empoderar com o discurso de fortalecer a luta, o condenável é o desejo implícito de potencializar a personalização de uma demanda coletiva para alcançar objetivos pessoais. A médio prazo, não é uma estratégia eficiente e marca o início da degradação da imagem e das reivindicações do grupo que representa. 

Há pouco tempo, cheguei perto de ser seduzido por essa pretensão política. Por ter adotado a causa dos taxistas contra corporações estrangeiras, alcancei alguma repercussão e logo surgiram convites para disputar cargos públicos. No fim, rejeitei. Pareceu-me desonesto usar uma convicção legítima para conquistar projetos de caráter pessoal. Não vejo que seja necessária uma plataforma eleitoral para alguém se afirmar como ativista. Pelo contrário, um projeto de carreira política pode criar um embaraço à autenticidade de uma luta relevante contra a injustiça experimentada por alguma coletividade. 

Haverá os que me acusarão de postura presunçosa, mas desconfio muito daqueles que tomam uma causa para si como se fosse um feudo, que agem com arrogância na suposta intenção de pautarem pleitos sociais quando, antes do coletivo, estão a mirar uma vereda privada. Enriquecem o currículo com o sofrimento alheio. Às vezes, me parece que é por isso que algumas causas são insolúveis, que pouco evoluem. Não servem para melhorar o mundo, servem para enaltecer um único sujeito.  

Redação

3 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. É esse tipo de reflexão que está em falta. Obrigado. (enquanto lia, me vinham à mente alguns exemplos; Joaquim Barbosa e Marina Silva, entre eles.)

    1. Discordo no que tange a meritocracia, mas concordo quase que completamente com o restante. No entanto, acho bem ingênuo neste início de século continuar acreditando em pessoas que fazem essa espécie de discurso falacioso. Um dos maiores engôdos de todos os tempos é acreditar que pessoas falastronas possam ter a real intenção de lutar pelo coletivo – apesar dos inúmeros exemplos, a humanidade não aprende.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador