Uma pequena denúncia da estrutural canalhice da elite brasileira, por Eduardo Borges

Uma pequena denúncia da estrutural canalhice da elite brasileira

por Eduardo Borges

Uma parcela da elite brasileira, seja ela na sua vertente econômica ou social, tem aproveitado o momento de pandemia para revelar toda sua canalhice e pusilanimidade. A velha tradição da “carteirada”, que remonta aos tempos do imperador, tem se tornado regra de conduta diante dos chamados protocolos de proteção contra a Covid-19. A última foi a do reincidente Desembargador Siqueira (parece nome de personagem de Machado de Assis ou de Jô Soares) que não teve nenhum escrúpulo em chamar de analfabeto o guarda que ao cumprir seu dever profissional, multara o “intocável” Desembargador.

Basta passar algumas horas diante dos canais de notícias que veremos inúmeros exemplos de cidadãos, ou melhor, “engenheiros civis” impondo sua superioridade sobre servidores públicos que não fazem outra coisa que não seja servir ao interesse público. Bastou liberar os bares e restaurantes para que a elite do Leblon fosse em massa demonstrar publicamente sua arrogância de classe. Dane-se a pandemia, dane-se o espaço público como espaço de respeito ao outro, para essa elite brasileira covarde e patrimonialista o público sempre foi um simples quintal do seu privado.

Mas eles não se constrangem em nenhuma circunstância. Seguem renitentes vomitando mesquinhez e indignidade, como foi o caso do “servidor público” Elcio Franco Filho secretário executivo do Ministério da Saúde. Em uma live para todo o Brasil, Elcio não se furtou em demonstrar sua completa falta de empatia quando repreendeu publicamente com extrema empáfia e arrogância um garçom que passara (cumprindo sua tarefa de servidor) na visão da câmera que mostrava o secretário em ação.

Poderíamos lembrar também do episódio de repercussão nacional, exemplo de suprema negligência, em que a esposa de um prefeito do interior deixou sozinho em um elevador uma criança, filho de sua empregada. O garoto faleceu ao cair do prédio.  A patroa fazia coisa muito importante, cuidava das unhas, enquanto a empregada, mãe do garoto, se dava ao “luxo frívolo” de caminhar com os cachorros da madame. Já imaginou se fosse o contrário? Se a empregada cometesse tal “descuido” com o filho da patroa.

E quem não se lembra do fugitivo ex-ministro da deseducação Abraham Weintraub que se referindo ao Enem, em entrevista à CNN Brasil, afirmou que o Enem não é feito para atender injustiças sociais e, sim, para selecionar os melhores candidatos.” Ele estava bem em sintonia com seu ex-chefe que de maneira subserviente à elite empresarial, sempre que pode, acusa os trabalhadores de serem responsáveis pela crise de desemprego no país. Ou do super-ministro e ultra-liberal Paulo Guedes (tudo nele é hiperbólico) que somente enxerga números no lugar de seres humanos.

Mas a grande lacração da semana foi a fala de Henrique Bredda, gestor da Alaska, uma das maiores administradoras de investimento do país, que em entrevista à Folha de São Paulo, afirmou a seguinte pérola: “Eu fico com um pé atrás quando escuto a palavra desigualdade. Eu não me importo se a camada mais sofrida do Brasil melhorar quatro vezes de qualidade de vida e a família Moreira Salles subir dez vezes de qualidade de vida. A desigualdade aumenta, mas você melhora a qualidade de vida da base. A discussão não deveria ser desigualdade, deveria ser criação de riqueza”.

O leitor não entendeu errado, ele realmente afirmou que fica “com o pé atrás quando escuta a palavra desigualdade” no Brasil. Em que planeta este rapaz vive? Até onde sei a expressão “ficar com o pé atrás” significar duvidar do fato. Ou seja, ele simplesmente está desdenhado do fato de termos desigualdade no Brasil. Lembra muito outro exemplo de quando afirmaram que a nossa ditadura estava mais para ditabranda. Sei que o negacionismo está em moda no Brasil atual, mas isso já é ultrapassar todos os limites do bom senso.

Isso não só é frieza classista e completa falta de sensibilidade social, como é uma deliberada alienação (consciente certamente) do debate econômico contemporâneo. Talvez ele esteja se referindo ao tempo do famoso “crescer o bolo para depois dividir”. A classe formada por trabalhadores e vulneráveis sociais espera até hoje seu pedaço. A mais básica informação de manual sobre o capitalismo demonstra que neste sistema a tendência é que a concentração de renda no andar de cima seja diretamente proporcional à queda da renda do andar de baixo.

A mesma Folha de São Paulo que ouviu essa sandice do senhor Henrique Bredda, entrevistou o renomado economista francês Thomas Piketty, autor do best-seller “O capital no século XXI” e estampou em manchete a seguinte frase do francês: “a crise empurra o mundo para o lado dos que se preocupam com a desigualdade”. A cretinice da elite econômica brasileira, representada pela frase infame de Henrique Bredda, foi exposta ao ridículo de sua pequenez. Ainda segundo Piketty, a atual desigualdade brasileira é muito maior do que a europeia do século XIX e do início do século XX. Isso é o retrato fiel da elite mesquinha que governa o Brasil desde sempre. Piketty se mostrou otimista ao dizer que a atual pandemia poderia nos “ajudar a compreender que precisamos de um  sistema econômico mais equilibrado, justo e sustentável”. Contudo, no caso do Brasil, é preciso combinar antes com “os russos”, ou seja, com nossa usurária e avarenta elite econômica.

Em seu livro “O capital no século XXI”, Piketty mostrou números alarmantes sobre a desigualdade econômica em países que consideramos os mais desenvolvidos neste aspecto. Segundo ele, em países como França, Grã-Bretanha, Alemanha e Itália, os 10% mais ricos detêm aproximadamente 60% da riqueza nacional enquanto os 50% mais pobres possuem menos de 10% dessa riqueza.

Uma reportagem do insuspeito site G1, do grupo Globo, produziu a seguinte manchete: “Brasil tem 2ª maior concentração de renda do mundo, diz relatório da ONU”. Em seguida apresentou as seguintes informações: “No Brasil, o 1% mais rico concentra 28,3% da renda total do país (no Catar essa proporção é de 29%). Ou seja, quase um terço da renda está nas mãos dos mais ricos. Já os 10% mais ricos no Brasil concentram 41,9% da renda total”. Estes números expõem ainda mais ao ridículo a frase de Henrique Bredda que certamente deve representar o pensamento de uma parcela considerável de nossa elite econômica.

Um dos principais ensinamentos da obra de Thomas Piketty é o de que a questão da distribuição de riqueza tem muito mais a ver com decisões políticas do que econômicas. Esta é também a mensagem deste meu artigo. Teremos eleições presidenciais em 2022, e o tema da desigualdade tem que ser a base de qualquer campanha política cujo objetivo seja interferir radicalmente nas históricas estruturas econômicas que sustentam desde a colônia os privilégios de uma ínfima parcela da sociedade em detrimento da desgraça social da grande maioria do povo brasileiro.

Eduardo Borges – Doutor em História e professor adjunto na UNEB/Campus XIV.

Redação

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  • Desigualdade é condição sine qua non ao capitalismo, especialmente (mas não só) quando o capital privado alcança poder político institucional. Por isso sabotamo-nos uns aos outros e à toda iniciativa de combatê-la.

    - "Ah, não, esse cara tá se achando... vai que ele apaga meu brilho, né? Quer ver como corto as asinhas dele agora mesmo?"

    Não que não haja esse impulso em nenhuma pessoas crescida em lugares com regulação do capitalismo. Da mesma forma, há pessoas que aprenderam a viver em lugares em que o capitalismo é permitido e que têm impulsos de colaboração. O problema é a orientação, a cultura que tende para um lado ou para o outro, favorece um lado e não o outro. É que colaboração e egoísmo são opostos por suas naturezas.

  • Eu seria mais modesto. Em razão da depressão econômica o Brasil está sendo novamente dividido entre os que fazem refeições e os que passam fome.

    Os ministros do Supremo comem lagostas, os desembargadores do TJSP degustam queijos holandeses e os militares fodem putas e devoram petiscos no puteiro. E todos eles enfiam no cu o princípio constitucional da moralidade administrativa fazendo os contribuintes pagar as contas.

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