Uma questão de princípios, por Maria Cristina Fernandes

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Valor

Uma questão de princípios

Maria Cristina Fernandes

“Princípios devem nortear direitos humanos e civis, mas não sou favorável a princípios para relações entre empresas”. A discussão já se encaminhava para o fim quando o gerente jurídico da Ambev, num inglês impecável, resumiu sua oposição ao tema em debate, um novo Código Comercial. Flávio Gonçalves Pontes Sodré também se mostrou contrário à intervenção legislativa no tema: “O Congresso é mais habilitado que as empresas para saber do que precisamos?”.

Na véspera, a 3G Capital, fundo de investimentos cujos sócios brasileiros foram responsáveis pela internacionalização da Ambev, haviam fechado a compra da Kraft consolidando um dos maiores conglomerados de alimentos do mundo.

David Kesmodel e Annie Gaparroa, do ‘The Wall Street Journal’ definiram a compra como a consagração, para o mercado americano de um modelo de gestão baseado em cortes radicais de despesas.

O lugar da ideologia na relação entre empresas

O representante da empresa de custos minimalistas não estava isolado na mesa do debate promovido pela Fundação Getulio Vargas. Contou com a adesão do ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários e professor da FGV, Otávio Yazbek, que se queixou dos custos a serem gerados pelo código: “As incertezas do ambiente de negócios no Brasil estão mais relacionados à instabilidade econômica do que à ausência de um código”.

Como o atual Código Comercial, que data de 1850, caducou, as relações entre empresas no Brasil hoje estão pulverizadas em diversas leis, como a de falências e de defesa do consumidor. A tentativa de unificá-las num código foi iniciada na década passada pelo professor titular de Direito Comercial da PUC-SP, Fábio Ulhôa Coelho, que atua nos projetos em tramitação no Congresso desde sua origem.

Presente ao debate da FGV, Coelho sustentou os princípios contra os quais se insurgiram ambos os advogados da mesa, como a função social da empresa, já anunciada na Constituição, e a proteção da parte mais fraca de contratos comerciais. Citou a mudança no Supremo Tribunal Federal em torno do casamento gay como base para seu argumento de que a ideologia importa nas cortes. “No passado, a Constituição era considerada proibitiva ao casamento gay. Em 2012 os juízes decidiram que era compatível. O que mudou não foi a Constituição, mas a ideologia. Precisamos mostrar que as relações entre empresas estão baseadas em valores”.

A opinião prevalecente ali era de que o mercado é desprovido de ideologia. No comando dos trabalhos da mesa, a professora da FGV, Mariana Pargendler argumentou que o exemplo do casamento gay desqualifica a mudança: “Por que acrescentar à legislação entre empresas princípios associados ao direito do trabalho e dos consumidores”? Yazbek também se insurgiu: “Abrir espaço para a ideologia não vai favorecer o livre mercado”.

O advogado da Ambev foi o mais detalhista na análise dos pontos em discussão no código. A prática de negócios da Ambev, monopolista do mercado de bebidas no Brasil, ganhou o mundo. Não há, portanto, desconhecimento sobre o legislação em outros países mas ficou clara a indisposição da empresa de encarar, no Brasil, os percalços de litígios já enfrentados no resto do mundo. E o principal argumento é o de que a legislação em pauta vai aumentar os custos das empresas com advogados.

O código incorpora preceitos de mais igualdade de condições entre os litigantes. Pelo texto em tramitação, advogados e não apenas juízes também passam a poder inquirir diretamente funcionários da empresa contra a qual peleja. E ainda prevê que se uma empresa entender que precisa ter acesso aos documentos da outra pode bater à porta do Judiciário.

Num outro artigo inspirado na legislação americana, o código prevê que qualquer sócio pode mover uma ação de responsabilidade contra o administrador da empresa. “É igual nos Estados Unidos, mas lá é um problema. É disso que precisamos no Brasil? A CVM já não protege os interesses dos minoritários? O custo dos seguros vai subir e será difícil encontrar CEOs para as empresas”, argumentou o advogado da Ambev.

Todos rejeitaram a condição de inimigos do código, mas Coelho não poderia ter sido mais claro na definição de seus oponentes: “Empresários monopolistas não querem dividir o mercado que conquistaram com novos competidores”. No debate, foi além: “Gostaria de viver num país sem inimigos, apenas com homens de negócios competitivos. A economia estaria bem melhor”.

O código ainda pode vir a enfrentar a oposição de setores como o de construção pesada que buscam acordos de leniência de maneira a preservar suas operações da devassa da Lava-Jato. O argumento, abraçado pelo governo, é que essas empresas não podem ser condenadas a pagar multas condizentes com os crimes de que são acusadas sob o risco de falências em cadeia que, no limite, levariam à paralisação da economia.

“É um argumento muito parecido com o que se ouvia na crise do subprime, ‘too big to fail'”, disse Coelho. “O Brasil não vai parar se abrir sua economia para empresas estrangeiras. Proteger essas empresas acusadas é apenas uma maneira de preservar sua reserva de mercado e não a economia brasileira”.

Há dois projetos de Código Comercial em tramitação no Congresso, um na Câmara, outro no Senado. O da Câmara (670 artigos) avançou mais que o do Senado (1.103 artigos). Começou a tramitar em 2011 e já acumula 194 emendas. É de autoria do deputado Vicente Cândido (PT-SP) e tem a relatoria do deputado Paes Landim (PMDB-PI). No texto em tramitação, já caiu, por exemplo, o artigo que previa a legitimidade do Ministério Público para propor ações contra empresas que não estivessem cumprindo sua função social.

Numa conjuntura em que o ativismo judicial tem emparedado grandes empresas e o Congresso conta com composição – e comando – amplamente abertos a negociações com os interesses que se opõem ao código, é arriscado fazer previsões sobre o que pode resultar de sua tramitação, mas não parece haver dúvidas de que se retrata ali o estágio em que se encontram as relações de mercado no país.

Maria Cristina Fernandes é jornalista do Valor. Escreve às quintas-feiras

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

3 Comentários

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  1. Tá bom que o mercado é

    Tá bom que o mercado é desprovido de ideologia… Que bando de fdp. E a universidade, de joelhos, vai junto com a Ambev que “conseguiu que o Cade aprovasse milagrosamente o seu monopólio da cerveja”.

    E o Coelho, mais pascoalino do que nunca, opera para quem?

    O país, bem, o país…

     

  2. Lei de Talião

    Se empresarios ( e seus consorcios) não são favoraveis a principios (leis) para regular relações entre empresas, volta-se a que? A lei de talião ? Vale-tudo ? Quando têm problemas vão ao governo,  é um “acuda-nos, senão vamos desempregar em massa!” Mas quando estão bem, querem o estado bem longe…

  3. A questão é, a substituição é

    A questão é, a substituição é automática?
    Quanto tempo duraria essa inserção das empresas estrangeiras?
    Daria tempo de diminuir  os impactos na economia do Brasil?
    E as pessoas que seriam desempregadas, seriam todas absorvidas por essas novas empresas?
     

    Ela fala de negócios, o governo de uma nação, os níveis de responsabilidades são outros, se não olharmos as pessoas, o certo a fazer seria punir essas empresas a tal ponto que fechassem, e ainda salgar o chão onde estão instaladas para que não pudessem mais crescer no Brasil. Mas, vivemos no mundo real, há milhões de pessoas que dependem disso indiretamente, há milhares de pessoas que dependem dessas empresas diretamente, e que não contribuíram para os negócios ilegais de seus patrões. 
    Acredito que, até no âmbito mais elevado, o debate sobre esse assunto é hipócrita, haja vista essa nova operação da Polícia Federal, a Zelotes.

     

    “É um argumento muito parecido com o que se ouvia na crise do subprime, ‘too big to fail'”, disse Coelho. “O Brasil não vai parar se abrir sua economia para empresas estrangeiras. Proteger essas empresas acusadas é apenas uma maneira de preservar sua reserva de mercado e não a economia brasileira”.

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