Vidas paralelas: Charles I e Jair Bolsonaro, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Vidas paralelas: Charles I e Jair Bolsonaro

Por Fábio de Oliveira Ribeiro

Um governante fraco que deseja exercer poder absoluto, despreza o Parlamento, alimenta conflitos regionais e religiosos, planeja intervir ou intervém em guerras externas impopulares e desdenha o sofrimento do povo. A síntese da crise política que se transformou em guerra civil e levou ao julgamento e decapitação do rei Charles I (19/11/1600 – 30/01/1649) se ajusta quase que perfeitamente ao que está ocorrendo no mandato de Jair Bolsonaro.

O historiador André Maurois afirma que “…Carlos profesaba las doctrinas de Strafford sin tener su fuerza de caractér ni su genio de organización. Cuando al fin decidió a clocarle en primera fila, la partida estaba ya perdida para los dos.” (Historia de Inglaterra, André Maurois, editora Ariel, Barcelona, 2007, p. 297/298)

Jair Bolsonaro chegou ao poder por causa das artimanhas de um general veterano. Muito respeitado no Exército, Villas Boas ajudou a derrubar Dilma Rousseff e impediu o STF de permitir que Lula disputasse a eleição. Enquanto agia, ele sempre demonstrou grande frieza, firmeza e capacidade de organizar nas sombras um poder paralelo capaz de se impor aos poderes republicanos. Villas Boas fez o sistema constitucional de 1988 desmoronar preservando a impressão geral de que o Brasil vivia sob a mais absoluta normalidade institucional.

Eleito e empossado, o presidente brasileiro fez questão de agradecer várias vezes a ajuda que recebeu de seu Strafford. Mas Bolsonaro tem uma fraqueza de caráter imperdoável: sua devoção aos filhos e ao guru Olavo de Carvalho. Agindo sempre de maneira impulsiva e improvisada, em menos de 2 anos o mito conseguiu destruir a unanimidade que existia dentro do Exército. Vários generais demitidos por ele saíram do governo atirando e fortalecendo a impressão geral de que o presidente não está a altura da missão lhe conferida pelo general Villas Boas.

Charles I foi um rei indeciso e incapaz de perceber sua própria fragilidade. O conflito entre ele o Parlamento era inevitável. Sob o comando de Charles I a Inglaterra interferiu na guerra dos 30 anos que devastou o continente europeu. Para sustentar a campanha a coroa inglesa precisou aumentar os impostos, provocando uma reação política. Mas o rei não percebeu que precisava de cooperação voluntária para governar.

“Local resistence to the levy, patronised by great men, threatened the breakdown of the voluntary co-operation on which government depended.” (The Constitutional History of Modern Britain since 1485, by sir David Lindsay Keir, Adam and Charles Black Limited, London, 1961, p. 207)

TRADUÇÃO:

“A resistência local à cobrança [de novos impostos], patrocinada por grandes homens, ameaçou o colapso da cooperação voluntária da qual o governo dependia.”

O conflito entre Bolsonaro e os governadores, amplificada pela influência que eles obviamente detém no Parlamento, não começou por causa da arrecadação de tributos e sim porque a União passou a preterir a região nordeste. Bolsonaro não só destinou menos verbas aos Estados governados pelo PT como estimulou rebeliões policiais para enfraquecer os governos locais. O mito se recusou a ajudar os Estados afetados por um mal explicado vazamento de petróleo obrigando-os a criar o Consórcio do Nordeste.

O sucesso do Consórcio do Nordeste aumentou a tensão e a frustração do presidente brasileiro. Charles I ficou desesperado ao fracassar em reprimir uma rebelião na Escócia.

“The desperate expedient was forced on him by his failure to repress a rebelion in Scotland.”
(The Constitutional History of Modern Britain since 1485, by sir David Lindsay Keir, Adam and Charles Black Limited, London, 1961, p. 207)

TRADUÇÃO:

“O expediente desesperado foi forçado a ele por seu fracasso em suprimir uma rebelião na Escócia.”

A irrupção da pandemia criou uma excelente oportunidade para Jair Bolsonaro recuperar a cooperação voluntária dos governadores nordestinos. Todavia, o presidente brasileiro preferiu agir de maneira tão inapta e autoritária quanto Charles I.

Bolsonaro minimizou a letalidade da pandemia, resistiu à decretação do isolamento social e tentou exercer um poder absoluto ao desautorizar as medidas emergenciais decretadas pelos governadores. O presidente brasileiro poderia ter unido o país em torno da guerra ao COVID-19, mas ele preferiu unir a esmagadora maioria dos governos contra a irresponsabilidade do governo federal. A derrota colossal que Bolsonaro sofreu no STF – o Tribunal decidiu que apenas os municípios e os Estados-membros tem competência para decretar quarentena – esvaziou o poder presidencial. E para piorar a situação, Bolsonaro demitiu o Ministro da Saúde que estava conseguindo recuperar a credibilidade da União.

O rei Charles I se tornou impopular ao tentar aumentar impostos desprezando a necessidade de cooperação voluntária da qual seu governo dependia. A autoridade dele ficou ainda mais abalada quando ele foi derrotado pelos rebeldes escoceses. Os conflitos religiosos e a guerra externa eram dois fatores de complicação.

“Against this combination of fiscal, economic and religious grievances, the Crown coud hold out only so long as it had no external responsabilities. But Charles could not exclude the Thirty Years’ War from his policy.” ((The Constitutional History of Modern Britain since 1485, by sir David Lindsay Keir, Adam and Charles Black Limited, London, 1961, p. 205)

TRADUÇÃO:

“Contra essa combinação de queixas fiscais, econômicas e religiosas, a Coroa só se manteria enquanto não tivesse responsabilidades externas. Mas Charles não pôde excluir a Guerra dos Trinta Anos de sua política.”

Bolsonaro se diz evangélico e depende muito do apoio dos pastores. Isso explica porque ele queria manter as Igrejas Evangélicas abertas durante a pandemia aumentando o risco de contágio. A CNBB aderiu a quarentena e isso deu uma conotação religiosa ao conflito político entre o presidente e os governadores.

Charles I sofreu duas derrotas militares internas e foi decapitado em 30/01/1649 porque insistiu em sustentar uma guerra externa que não era apoiada pelo Parlamento. Desesperado, o presidente brasileiro expulsou os embaixadores da Venezuela e quer começar uma guerra externa para mobilizar apoio interno e/ou desviar atenção dos problemas que ele mesmo causou.

Uma guerra contra a Venezuela só atende aos interesses geoestratégicos dos EUA. Portanto, esse conflito será obviamente rejeitado e desautorizado pelo Congresso Nacional. Nunca é demais lembrar que no sistema constitucional brasileiro, o presidente não pode declarar guerra sem autorização parlamentar (art. 49, II, da CF/88).

O Parlamento Inglês julgou o rei e o condenou a morte para conquistar uma prerrogativa política que no Brasil já foi atribuído exclusivamente ao Poder Legislativo. Bolsonaro pode sofrer Impeachment se tentar começar uma guerra externa sem autorização do Congresso Nacional (art. 85, II, c.c. art. 49, II, ambos da CF/88).

As vidas de Charles I e Jair Bolsonaro são paralelas. Ambos não estavam à altura da missão que lhes foi conferida. Os dois foram incapazes de pacificar seus países criando conflitos. Um não quis abdicar aos seus compromissos militares externos e perdeu a cabeça. O outro se recusa a renunciar à presidência e será afastado da presidência assim que começar uma guerra indesejada pelo Parlamento do Brasil.

O conflito militar externo sustentado por Charles I causou dezenas de milhares de baixas. Acreditando que ser titular legítimo de um poder inquestionável outorgado por Deus, o rei inglês nunca levou em conta o sofrimento que impôs ao seu povo ao intervir na Guerra dos Trinta Anos. Questionado sobre o aumento incontrolado da letalidade da pandemia Jair Bolsonaro disse “E dai?”. Ao que parece, o presidente brasileiro também se comporta como se o poder dele não dependesse de qualquer consentimento, aprovação ou apoio voluntário da população brasileira.

Por fim, recomendo aos interessados esse bom documentário sobre Charles I:

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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