Viver, por Edson Luiz André de Sousa

O vírus nos obriga a pensar no outro, não só para não nos contaminarmos, mas, principalmente, para não contaminá-lo

do Psicanalistas pela Democracia 

Viver

por Edson Luiz André de Sousa

Estamos vivendo outro registro de tempo, já que a máquina do mundo foi, parcialmente desativada em sua engrenagem, por este vírus resistente. Ele evidencia a permeabilidade que nos constitui e expõe, como nunca, nossa fragilidade e os limites de nosso conhecimento.

O vírus mostra também que a condição social de cada um é um ingrediente de sua anatomia. Ele vem desvelar a desigualdade do mundo, desnuda as lógicas do poder e sua escala de valores. O vírus expõe os avessos dos discursos dos governantes que usam as palavras como cães domesticados. Por sorte, as palavras sabem desobedecer e, quando falamos, sempre tropeçamos no que fala em nós. Nada mais violento do que a prepotência de alguém que simula um saber que não tem, e o que é pior, tenta impô-lo, goela abaixo, aos outros. Para fazer ciência é preciso humildade, reconhecendo nossa ignorância e, nestas horas, uma saída é admitir que não sabemos.

Impressionante o quanto o saber científico tem sido atacado nos últimos anos em nosso país. As universidades públicas, por exemplo, lugares que abrem futuro, tem vivido de forma acuada e sempre acossadas por um  fantasma de destruição. Mas é dali que grande parte das pesquisas no Brasil surgem em todas as áreas. Isto já se sabe, mas parece que este vírus que entrou em cena, subitamente, escancarou ainda mais esta evidência. Somos obrigados a pensar no sentido do público, recuperar valores adormecidos e que hoje são cruciais para a sobrevivência de todos: a solidariedade. O vírus nos obriga a pensar no outro, não só para não nos contaminarmos, mas, principalmente, para não contaminá-lo.

Não é o que pensa o capitão desgovernado, que no seu pronunciamento menospreza a todos, ao se exibir pateticamente sobre sua saúde e seu passado atlético, e que não sofreria nada com esta “gripezinha”. Inacreditável que tenhamos ouvido isto de alguém que ocupa o lugar de presidente de um país. Nesta hora lembro-me do ensaio de Susan Sontag, nos convocando a responsabilidade “Diante da dor dos outros”.  Uma insanidade ir contra a ciência, ir contra as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), que indica a estratégia de isolamento para conter a expansão do vírus.

A lógica do funcionamento do Estado tem que mudar para acolher esta realidade. O desafio é grande, mas não podemos fazer a contabilidade dos mortos de um lado da planilha e do outro, a contabilidade do capital. Mas, por sorte, tem falado mais alto a pulsão de vida, e vários governadores e prefeitos tem se oposto a estas diretrizes necropolíticas. A contaminação é também pelo discurso. Algo é dito e desmentido tempos depois. O Ministro da Saúde, desautorizado pela fala insana do capitão, tentou remendar publicamente, dizendo: “A gente tem que melhorar esse NEGÓCIO de quarentena. Foi precipitado. Foi cedo.”. A quarentena não é um NEGÓCIO. Neste momento, é simplesmente a  VIDA.  E nesta hora lembro-me de Akira Kurosawa e seu filme VIVER (1956) que narra a vida de um burocrata que nunca fez nada de relevante na vida, escravo de sua rotina e, ao descobrir um câncer no estômago, decide fazer algo solidário, construindo um playground em seu bairro.

Fica aqui esta sugestão do filme, que abre uma respiração para que o ainda temos de melhor, quando efetivamente somos capazes de pensar para além de nosso umbigo.

Redação

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