O novo Líbano

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Carta ao primo Nassif

Prezado Luis,

Uma pena você ainda não ter ido ao Líbano! O perigo de bombas e atentados existe, ainda mais ultimamente, mas sou capaz de apostar que o risco vale a pena… Correu tudo bem, salvo no último dia, quando tivemos que dar a volta pelas montanhas (belíssimas!) para chegarmos ao aeroporto e voltarmos para o Brasil. Isso porque o Exército libanês bloqueou a autoestrada em protesto, através de uma “operação padrão” (há muitos bloqueios militares para inspeções). A razão do protesto foi a punição de um oficial cristão. Este militar, no cumprimento do dever, ordenou um ataque a um carro que se recusou a parar num bloqueio. Um dignatário estrangeiro muçulmano acabou sendo atingido e isto gerou um incidente de graves proporções. O oficialato do Exército, formado por cristãos em grande medida, discordou da punição, por considerá-la injusta. Isto quase nos fez perder o voo. Salvo esta questão, fizemos uma viagem surpreendente!

 A começar pela organização. Ficou a cargo da Igreja Cristã Maronita, que tem incentivado descendentes de libaneses cristãos a conhecerem a terra de seus antepassados. Formamos um grupo de 25 primos, todos da família Andere. Ao chegarmos, fomos recebidos pelo padre Siluano, que serve atualmente em uma paróquia católica maronita, de Campinas, SP. Embarcamos em um ônibus e seguimos para June, a 20 Km de Beirute, onde nos hospedamos em Harissa, um mosteiro maronita no alto das montanhas. De lá, víamos Beirute e Biblos, banhadas placidamente pelo Mediterrâneo. Esta foi nossa base por mais de quinze dias e de lá partimos, em missões diárias, para visitar todo o Líbano, territorialmente menor que o Sul de Minas Gerais.

Vimos tudo, de norte a sul. Fomos a Baalbeck, Jeita, vale do Bekká. Conhecemos Sidon, Tiro, Biblos, entre outras cidades, inclusive a casa do poeta Kalil Gibran. Passamos ao largo de Caná, muitos de nós conjecturando sobre o milagre que Cristo ali teria realizado. Bebemos das vinhas de Ksara, as mais antigas do mundo ainda em funcionamento, construídas pelos romanos há mais de dois mil anos… Tudo isso nos surpreendeu muito, especialmente a beleza, a sofisticação e a limpeza de Beirute, uma cidade que tem tantas instituições financeiras quanto Belo Horizonte tem botecos! Prefiro botecos, mas então passei a compreender de onde vinha a prosperidade desse pequeno país, que não possui nenhum recurso natural importante, ou mesmo uma indústria avançada. Mas possuiria, segundo alguns, o mais sofisticado sistema de transações financeiras do mundo – servindo de conexão para negócios, alguns misteriosos, entre Ocidente e Oriente Médio. Era difícil acreditar que, há menos de trinta anos, estivesse em ruínas e que, agora, apresentassem uma notável economia e nenhum traço preponderante de miséria.

Ao nos aprofundarmos nessa questão, nos deparamos com outra surpresa: o “Estado de bem estar” não existe no Líbano. Não há previdência social. Nem saúde ou escolas públicas que atendam à população, indiscriminadamente. Não há “bolsas”, ou pensões, de qualquer natureza. Não há quotas. O Estado libanês é de um liberalismo chocante, especialmente para nós, brasileiros, que nos habituamos a culpar o governo (e os políticos, principalmente) por tudo de errado, esperando, desse mesmo Estado (e dos políticos…) a solução de nossos mais prosaicos problemas. Os libaneses se organizam contando consigo mesmos.

À ausência do Estado seguiu-se a opulência das religiões. A institucionalização estatal laica viu-se historicamente prejudicada. Como erigir um Estado, sobre um território milenarmente movediço, em constante disputa, com fronteiras incertas e palmilhado por fluxos e refluxos de populações, com acentuadas diferenças culturais? O povo libanês viu-se obrigado a se unir em torno de suas famílias, exercendo sua imensa capacidade de trabalho e de adaptação. Confiam, sobretudo, em “Deus”. E este se manifesta, por todo o país, através de religiões fortes e radicais, representadas por Igrejas dotadas de uma titânica fé e de uma inflexível disposição para a luta. Conheci mosteiros, nas montanhas, cercados por muralhas imensas, cujas pedras foram assentadas e revestidas de chumbo, aptas a resistir ao fogo de artilharia. Neste ponto, não sabemos se isto seria a solução – ou a fonte dos milenares problemas vividos pelo Oriente Médio.

 Tudo começou há muito, muito tempo. As religiões (e Igrejas), seus usos, valores e costumes, constituem parte importante da identidade daquele povo. Há madrassas ao lado de igrejas católicas que ensinam o catecismo… Assim como não negociamos nossa identidade nacional, sob pena de deixarmos de existir culturalmente, eles não conseguem se afastar de seus valores religiosos – e de suas perigosas consequências… É tudo muito complexo e intrincado! A aliança dos cristãos libaneses com o Ocidente, por exemplo, remonta às Cruzadas. E sua predileção pela França, provavelmente, teve início com o bom relacionamento que construíram com os cavaleiros templários (e com outros cruzados), à época, a maioria deles franceses. E isto representa um pedaço diminuto da história daquela região!

Nós, em Sidon, almoçamos em um restaurante muçulmano, tendo como paisagem uma fortaleza naval templária, guardando um pequeno porto e emoldurada pelo sol do Mediterrâneo. Uma visão solene. Nas proximidades, tanto em Sidon quanto em Tiro, havia vestígios dos sumérios, assírios, caldeus, fenícios, romanos, cristãos… Além de algumas dolorosas marcas, mais modernas, provocadas pelo Estado de Israel. Este mesmo local, atualmente, é dominado pelos muçulmanos, organizados sob o Hezbollah, de orientação palestina, inspirados pela revolução islâmica, promovida pelos persas… Uau!

 Ao fim do almoço, pedimos um delicioso café árabe, que tanto cristãos quanto muçulmanos servem muito bem. Tomamos nosso ônibus e seguimos rumo norte, rodando sobre as mesmas trilhas que conduziram, em grande parte, os destinos da  humanidade. Mas isso é uma outra história…

 Bem, primo, agora só está faltando você ir e me contar as suas impressões!

Marco Antônio Andere     

O autor, neto de libaneses, nascido em Pouso Alegre, Sul de Minas, reside em Belo Horizonte, MG. É historiador, advogado militante, cientista político e professor universitário.   

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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  1. O Líbano e seu povo

    Caríssimo Andere e Nassif, permitam-me acrescentar alguma nova informação a este post, mesmo eu não sendo descendente – mas vivi (e vivo, ainda) muito próximo à comunidade árabe em geral (e libanesa, em particular) do Brás, em São Paulo. Vamos por tópicos:

    1. Até o começo dos anos 70, o Líbano (e especialmente a capital, Beirute) era considerado a “Suíça” do Oriente Médio – laica, cosmopolita, ocidentalizada, uma ponte entre o pan-arabismo e a Europa contemporânea. Mesmo assim, fora da capital (nas cidades menos populosas) ainda se viam traços da tradicional cultura nômade: o patriarcalismo tribal, o hábito de homens andarem nas ruas armados, os casamentos acordados. Mas, curiosamente, não havia hostilidade religiosa – como na Iugoslávia, encontrava-se (e ainda hoje é muito comum) famílias que são parte muçulmanas, parte católicas. Nem mesmo entre sunitas e xiitas havia ódio cego ou rivalidade extrema. O convívio social e a tolerância mútuas sempre foram traços fortes no libanês.

    2. As guerras na região a partir dos anos 80 (por cobiça, territorialismo e um falso patriotismo anti-semita) devastaram a sociedade libanesa – mas não seus valores e cultura (o francês é língua oficial até hoje, junto do árabe – ensinado em escolas), tanto quanto um senso moral e ético que sempre transcendeu as crenças religiosas predominantes. Valores laicos que aproximaram o país do Ocidente e são mais perceptíveis em seu povo e sociedade que no dos seus vizinhos sírios, iraquianos, iranianos (que são persas e não árabes) ou jordanianos. Nem preciso dizer que estão anos-luz à frente dos sauditas, iemenitas e demais nações da península arábica.

    3. O país reergueu-se formidavelmente da devastação das guerras e invasões sírias e israelenses, tanto quanto da instabilidade daqueles tempos. Os anos 90 e a primeira década do novo século viram a retomada do alto padrão (clutural, econômico, moral e social) da nação – e houve mesmo avanços na supressão de alguns hábitos árabes milenares (a obrigação no cumprimento do arranjo matrimonial pelos filhos é flexibilizada, a participação da mulher na sociedade fica maior – lembrando que as libanesas muçulmanas desde antes já podiam usar calças, nadar de maiô em público, não usar véu e ocupar cargos públicos).

    4. Só para se ter uma idéia da estupenda recuperação na estabilidade nacional: no final da década passada, a volta dos conflitos e bombardeios esparsos no sul do país e na capital surpreenderam os jovens libaneses – uma geração inteira na faixa média dos 20 anos – que nunca tinham visto guerra em suas vidas. Ficaram chocados!

    Para concluir: é uma nação e uma realidade muito distinta da que nós pensamos ver daqui – um suposto Líbano de caos e conflito recorrente, sectarismo, ódio religioso, ignorância e barbarismo. Nada disso existe por lá – o que vc, Andere, deve ter observado em sua viagem. Que inveja! Abs.

     

  2. crônica de viagens fora das minas geraes

    “Esta foi nossa base por mais de quinze dias e de lá partimos, em missões diárias, para visitar todo o Líbano, territorialmente menor que o Sul de Minas Gerais.”

    …acho que até sei porque brimo Nassif, cronista de viagens à casa da sua infância, ainda não visitou o cosmopolita Líbano…

    (…por analogia territorial tribal primal fronteiral)

    “É a primeira vez que visita Israel?

    – Não, vou seguidamente. E você?

    – Eu nunca estive lá, mas me proponho a escrever um livro sobre o país.

    – Que bom! E vai ficar lá muito tempo?

    – Três dias.

    – Oh! E qual será o título de sua obra?

    – Israel, ontem, hoje e amanhã.

     

     “Tudo começou há muito, muito tempo. As religiões (e Igrejas), seus usos, valores e costumes, constituem parte importante da identidade daquele povo. Há madrassas ao lado de igrejas católicas que ensinam o catecismo… Assim como não negociamos nossa identidade nacional, sob pena de deixarmos de existir culturalmente, eles não conseguem se afastar de seus valores religiosos – e de suas perigosas consequências… É tudo muito complexo e intrincado! A aliança dos cristãos libaneses com o Ocidente, por exemplo, remonta às Cruzadas.

    […]

     “Nas proximidades, tanto em Sidon quanto em Tiro, havia vestígios dos sumérios, assírios, caldeus, fenícios, romanos, cristãos… Além de algumas dolorosas marcas, mais modernas, provocadas pelo Estado de Israel. Este mesmo local, atualmente, é dominado pelos muçulmanos, organizados sob o Hezbollah, de orientação palestina, inspirados pela revolução islâmica, promovida pelos persas… Uau!”

     

    (…novamente por analogia, agora, com a mítica sagrada Jerusalém, a cidade de espelhos)

    “Estive observando os turistas numa tarde de verão de 1967, enquanto eles passavam pelo estreito portão da Cidadela de Davi – as colinas em volta estavam ficando da cor de uma cerâmica não-cozida – quando me ocorreu a ideia de escrever um livro sobre essa cidade tragicamente enlouquecida. A cidadela, nas palavras de um dos guias, “encapsula” a história da cidade: santos e salafrários, hebreus, asmoneus, reis, zelotes, romanos, bizantinos, árabes, cruzados e turcos – sem mencionar os ingleses e israelenses de hoje – deixaram suas marcas na cidade. Ninguém pode passar pelos portões sem vivenciar uma pungente emoção. A sedução da cidadela atrai até mesmo aqueles que lhe tentam oferecer resistência. Com toda certeza, pensei eu ao observar os turistas, essa cidade despertou mais fantasmas históricos humilhados do que poderiam ser suportados localmente com segurança. No auge do dia dos fantasmas, perde-se a dimensão humana.

    Yehuda Amichai, o grande poeta da atual cidade, estava certa vez sentado nos degraus, diante do mesmo portão, com duas cestas de frutas, e ouviu um guia turístico dizendo: “Vocês estão vendo aquele homem com as cestas? Logo à direita da cabeça dele está um arco do período romano. Logo à direita da cabeça dele”.

    “Eu disse cá comigo”, escreve Amichai, “que a redenção só virá se o guia disser-lhes: ‘Estão vendo aquele arco do período romano? Ele não é importante. Mas ao lado dele, à esquerda e um pouco abaixo, está sentado um homem que comprou frutas e verduras para sua família'”.

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