Transformando ando, por Mariana Nassif

Transformando ando, por Mariana Nassif

Da importância de cuidar dos nossos traumas para que não virem fantasmas constantes

Experienciando situações nunca dantes navegadas, seja por estar nesse preceito quase eterno de uma mente cheia de lembranças, diversas delas sendo expelidas especialmente nestas últimas semanas, me inspiro naqueles que amo – e que me amam, porque afeto e companheirismo são pilares do desenvolvimento próspero. Meus amigos, os poucos e bons, me levam pra passear por bosques vez ou outra sombrios, estes que habitam minhas vivencias passadas e com os quais me acostumei a me acostumar e, enfim, isso bloqueia toda e qualquer transformação.

Para mudar, a gente precisa ter coragem de passear por estes lugares, não tem mesmo mantra ou oração, mesmo em repetida sequência, que faça algo tão profundo como um trauma sair andando por aí.

Caminhando pelos bosques destes meus amigos, encontro este texto do Marcelo, o Fofinho, que já escreveu sobre espelhos no candomblé e publiquei por aqui de tão sensível – segue sendo meu grande companheiro, meu amigo e cuidador e, aqui, revela uma faceta sensível que nem eu mesma conhecia: a marca existe, mas ele desenvolve a capacidade de cuidar pra que não contamine outros desenhos e cores que vida, sem dúvida nenhuma, traz. Basta a gente não ter medo de sofrer. É assim e fim.

OS MAUS FANTASMAS À CASA TORNAM
Por Marcelo Niel

Andando pela rua hoje, vi um casal discutindo. Bem ali, no meio da rua, para todo mundo ver. Na verdade eles não estavam discutindo. Ele, o homem, berrava com ela, xingava, ofendia, humilhava, e ela, a mulher, se encolhia, assustada e envergonhada. Eu fiquei um tempo parado, estático, observando aquela discussão e viajando no tempo, precisamente naquele tempo em essas coisas ocorriam na minha casa, com meus pais; comigo, meus irmãos, nossos vizinhos e os passantes de testemunha. 

Saí daquele lugar após alguns minutos, mas despertei os fantasmas que estavam guardados naquela caixinha empoeirada da memória. Lembrei das frases do meu pai, agressivas, ofensivas, pejorativas contra minha mãe. Lembrei do comportamento beligerante e provocativo dela, sempre dando continuidade às discussões, à exaustão, até culminar com agressões físicas. Ouvi novamente o barulho da porta deles sendo trancada, a chave antiga gemendo na fechadura, anunciando mais uma noite de intensas discussões, ofensas e agressões. Recordei quando inventava estar com dor de estômago, batia naquela porta pedindo para que algum deles se levantasse para me dar remédio, com o único intuito de parar aquela (nova) briga. Às vezes funcionava, às vezes eles continuavam. Revisitei os motivos primevos da minha insônia, que carrego até os dias de hoje: brigas, barulho, agressões, violência. Senti na pele e no corpo aquele medo que me consumia noite adentro. 

Acabei desenvolvendo alguns recursos para lidar com essa merda toda. Os fones de ouvido escutando a Musical FM me ajudavam a fugir daquela realidade, tocando músicas antigas que me faziam adormecer. Enquanto não adormecia, viajava num tempo que não era meu, dos bailes chiques dos anos cinquenta e sessenta, dos tempos da brilhantina. Alucinava ter vivido naquela época, alucinava que faria uma festa “anos sessenta” e às vezes ficava horas fazendo a lista de convidados e de afazeres. Guardava sempre essa lista e, quando me desentendia com alguém ou alguém desaparecia da minha vida, riscava da festa. Também acrescentava novos amigos que iam aparecendo. Algumas vezes escrevia poesias. Duras, suadas, sofridas, fechadas. Eram a minha catarse para aquele mal todo. 

Tem gente que passa por tudo isso e acaba reproduzindo esse padrão em sua própria vida. Eu me tornei medroso. Tenho medo da violência, evito brigas, fujo delas. A tal ponto que às vezes me sufoco em mim mesmo. Com o passar dos anos, aprendi a brigar por algumas coisas justas, mas na maioria das vezes tendo a recolher ou encolher. Mesmo com meus medos, não me considero mal sucedido: sou capaz de expressar minhas opiniões e delimitar meus espaços. Não tenho mais os pesadelos que me assombraram por anos com a figura diabólica dele. 

Mas hoje, particularmente hoje, essa imagem me feriu e acordou essas lembranças. Fantasmas e feridas de uma vida. Se não posso impedir que eles me visitem vez ou outra, pelo menos que sirvam para me mostrar o que não desejo. Para reforçar minha escolha de viver em paz.

Mariana A. Nassif

3 Comentários

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  1. Todo fantasma pode ser um

    Todo fantasma pode ser um aliado.

    Ao invez de afugentá-lo, você pode conviver com ele.

    Sócrates conversava com seu daymon.

    Num texto pulicado na Folha em 22/08/1999, Márcio Suzuki afirma que o poeta Goethe “… conta que várias vezes acordara à noite dizendo em voz alta alguma canção que lhe vinha como que espontaneamente ao espírito, que irrompia sem manda aviso.”

    Goethe dialogava com o daymon dele enquanto estava dormindo. 

    Ninguém consegue exorcidar seus traumas. Eles fazem de nós o que somos. O máximo que podemos fazer é tirar algum proveito deles, domesticá-los e de alguma maneira passar a conviver com eles como fizeram Sócrates e Goethe. 

    1. beleza de colocação…

      permita-me acrescentar apenas que para a ostra o fantasma, ou trauma, é um pequenino grão de areia ou qualquer pedacinho de qualquer coisa trazida pelo mar revolto e que nela se introduz, que ela vai transformando pouco a pouco, camada por camada, até devolver ao mundo numa das formas mais belas que conhecemos, uma pérola

       

  2. Querida Mariana

    E quantos fantasmas caminham com a gente , né.

    Viver a vida apenas rindo, sem interiorizações, sem elaborações é falso, ou como se diz hoje, é fake.

    Somos cabeça, tronco e membros e fantasmas, fantasias, sacudidelas disso tudo, e ramais e caminhos à frente.

    Abraço

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