A sórdida alienação da “merdocracia” brasileira, por Álvaro Miranda

É um pessoal que ignora toda uma trajetória da humanidade em suas diferentes sociedades. Desconhece as histórias, no plural, de conflitos e contradições diversas

A sórdida alienação da “merdocracia” brasileira, por Álvaro Miranda

Por estarem com a vida ganha em termos econômicos, com suas famílias saudáveis, alimentadas e bem vestidas, fruindo prazeres diversos em suas viagens rotineiras ao exterior, políticos do Congresso Nacional, agentes judiciários, integrantes do atual governo e grande parte dos empresários e banqueiros de mesquinha ideologia escravagista não estão nem aí para o fundo do poço a que chegou o Brasil. Não estão nem aí para o resto da população e, uma vez alienados em todo o seu percurso de vida, perseveram na manutenção da alienação do país.

Como bem resumiu em três palavras o juiz Jerônimo Azambuja Franco Neto, da Justiça Trabalhista de São Paulo, é a “merdocracia neoliberal fascista”. Numa das faces desse triste e escabroso poliedro que se tornou o Brasil, de um lado estão os reincidentes em mandatos eletivos para fins privatistas. Reincidentes porque não há palavra melhor para adjetivar os que são eleitos na base da má fé explorando a crença religiosa de pessoas humildes e a ignorância dos eleitores, com a transformação do mandato parlamentar em balcão de negócios mafiosos.

São os que tratam a destruição dos pilares da previdência pública e a privatização de tudo como grandes supostos negócios para o país sem uma perspectiva coletiva. Na verdade, negócios privados, que, bem sabemos, o quanto devem render de promessas pecuniárias e outras, agora, ou lá na frente, para os ditos especialistas e articuladores de conchavos nos bastidores que não vêm a público.

De outro, um governo composto de gente ignorante e deslumbrada que desconhece história e possui sentimento de solidariedade zero – menos ainda noção alguma tem de coletividade e, portanto, de um projeto nacional. É de se imaginar e perguntar como certas autoridades conseguiram diploma de curso superior.

Não que diploma acadêmico possa melhorar as pessoas. Para alguns, o título até piora o caráter. Mas, os exemplos que se veem pelas notícias nos meios de comunicação e redes sociais têm sido pródigos para nos fazer indagar como é possível a boçalidade se manifestar de maneira tão desembaraçada, sem qualquer pudor, na boca de gente que se apresenta como qualificada em cargos de autoridades.

É um pessoal que ignora toda uma trajetória da humanidade em suas diferentes sociedades. Desconhece as histórias, no plural, de conflitos e contradições diversas – as formações dos povos em busca de soluções para os problemas através da política, da ciência e das guerras.

Sem falar na falta de noção sobre o desenvolvimento do ser humano a partir do afastamento de sua barreira natural e biológica – a superação do seu “rame-rame” de subsistência, com gozo e fruição nas representações pelas artes e pelas diferentes e imponderáveis manifestações da livre expressão e criatividade dos indivíduos.

No caso de muitos agentes não eleitos e concursados dos órgãos judiciários e administrativos, tanto a origem de classe social como a formação acadêmica e, posteriormente, seus salários e benesses pagas pelo contribuinte conformam suas mentes dentro de uma ideologia de meritocracia duvidosa mais do que juspositivista.

Grande parte é completamente alienada, sem compreender os nexos de sua atividade com os demais complexos dos fenômenos da economia, da política e da cultura. Acreditam que são agentes de um Estado supostamente isento, autônomo e representativo de toda a sociedade.

Nesse segmento há aqueles mais arrojados que assumem a crença de que vieram ao mundo com uma missão civilizatória. Julgam-se acima dos demais setores da sociedade, atropelando princípios e mecanismos básicos do que os povos vêm tentando construir nos últimos dois séculos em termos de concertação política através do Estado.

Sem ser eleitos se acham representantes. Motor propulsor das revoluções burguesas, o binômio liberdade-igualdade da democracia se tornou um pedregulho no caminho neoliberal fascista dessa gente.

De repente, assumiram de forma extremada o incômodo filosófico de Rousseau sobre a impossibilidade da delegação de sua própria soberania, no caso da ideia de representação. E, assim, acreditam que sua racionalidade jurídica é a única forma possível para civilizar os seres humanos e dar jeito na sociedade. Têm horror à ideia de democracia e da livre criatividade dos indivíduos.

Ficamos sem saber quem é pior nessa geleia alienada do salve-se quem puder. Espécie de máquina com engrenagens erráticas e necessárias para a reprodução social. Na parte do poliedro que diz respeito às contradições entre relações de produção, circulação de mercadorias, salários, leis trabalhistas, empresários e banqueiros se comportam, em seus cálculos, como abutres que olham o mundo e os seres humanos de maneira apenas monetária. Abutres, sem querer ofender os animais que agem por sua própria natureza.

Não se trata de uma engrenagem natural e inexorável, sem dúvida. Há conspiração, sim! Ou melhor, conluio. Isso, ainda que cada um aja defendendo seus interesses particulares na corrida do salve-se quem puder e do adiamento das crises inevitáveis. Isso, mesmo nos chamados pesos e contra-pesos da tripartição aristotélica e montesquiana de poderes.

György Lucáks mostra como objetivação e alienação fazem parte de uma contradição inevitável da ontologia do ser social. Diferentemente da maioria da população brasileira, não tenho, por enquanto, problemas de precarização econômica, já na quadra sexagenária da vida. Sei também de minhas limitações em termos de propostas para resolver os graves problemas do país. Tenho, nesse momento, essas palavras.

Mas uma coisa é certa: lugar de fala é uma ova! Falo por mim e por todos os que sentem esse fedor horrível da gosma em que está sendo transformado o país. Por todos os que tiveram a vida despedaçada na condição de desempregados, aposentados, trabalhadores uberizados, pesquisadores desiludidos, professores, funcionários públicos sem perspectivas, médicos e professores mal remunerados, mendigos, pessoas sem teto e sem terras e tantos outros.

Concordando com Marcos Risério, meu lugar de fala é o Brasil. Posso falar pelos outros, sim, mesmo que esses outros nem imaginem as diferenças de condições econômicas que nos separam. Posso falar por uma ideia, uma perspectiva, um devaneio, um desassossego por utopias. É isto que a alienação nos tenta impedir: acreditar numa ideia, acreditar que nós fazemos nossa história, ainda que não em circunstâncias que escolhemos, como disse Marx.

De todas as espécies animais somente o ser humano pode pensar em alternativas de futuros. Entre todas as espécies de seres vivos, animais e plantas, nunca qualquer um se revelou mais cruel do que o ser humano. Se tivermos que falar de ética em qualquer arena da vida, temos que por no centro da reflexão a questão da crueldade humana.

Os que promovem a alienação dos outros tomaram de assalto o Brasil e ofenderiam alcateias e aves de rapina se assim fossem qualificados. Acham-se donos de uma terra ocupada. Como quem diz: chegamos primeiro! Conseguimos pelo voto! Para combater essa gente, sem uma ideia viva estamos mortos desde sempre. Fazer o que se acha impossível é mais do que possível e necessário. E para dissipar a gosma da alienação, nada mais luminoso do que essa frase de Goethe: “O homem deve perseverar na crença de que o incompreensível é compreensível; caso contrário, ele não pesquisaria.”

Redação

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