Crítica sobre o filme O Farol, por Érico Andrade

A fotografia primorosa atinge uma dimensão importante quando dialoga com a obra de Van Gogh, como alerta a professora Juliana Wanderley.

Enviado por Antonio Pereira

Crítica de O farol

Érico Andrade

O filme abre com uma fotografia em que a indistinção entre o céu e o mar se faz pela força de um branco que a tudo ofusca. O desafio das personagens consiste em manter a luz, que os levara à ilha, acesa. Eles devem ser o farol. Devem dar um tom diferente a imensidão monocromática que lhes sufoca. Ou ainda, devem ser o conhecimento para aqueles que guardam a pretensão de desbravar os mistérios do mar.

Para dar ao mistério o seu lugar natural o diretor Robert Eggers opta por um filme em preto em branco com o intuito de fazer da penumbra uma aliada na construção de uma atmosfera em que o desenho das cores aponta sempre para uma angústia profunda, marcada pela indeterminação, mas que é sobretudo interior. Como se o filme se passasse sempre dentro de uma grande névoa: o inconsciente. O que acentua a necessidade do farol, mas que ao mesmo tempo mostra o perigo de se acessar à luz.

Com ela se pode abrir segredos, como os contidos na caixa de Pandora, para os quais não estamos preparados ainda para lidar e que pode nos levar a um sofrimento sem fim como aquele que acomete Prometeu (responsável na mitologia por roubar o fogo dos deuses para entregar aos humanos) e que é encarnado pela personagem Ephrain Winslow cujo fígado (único órgão que se regenera e ligada aos afetos na cultura grega) é devorado pelos pássaros na cena com a qual o filme se encerra.

A fotografia primorosa atinge uma dimensão importante quando dialoga com a obra de Van Gogh, como alerta a professora Juliana Wanderley. É menos a temática e mais o enquadramento e as cores de Os Comedores de Batata que compõem o enclausuramento das personagens no interior dos seus fantasmas e lhes confere uma dimensão tanto rude quanto marcada pela privação material. E ainda numa clara convergência com Van Gogh a personagem Thomas Wake (Wllien Dafoe) parece se configurar como uma adaptação de O Carteiro de Rolin em que o foco agora está na imersão num universo de aderência à solidão como uma autodefesa do ego. Como se a única possibilidade de se guardar a estrutura egoica (razão pela qual a referida personagem não abandona as chaves do farol, nem dormindo) fosse restringido para si a luz que do farol irradia; como se fosse possível operar apenas no registro do que está a lumen: consciente.

E no quarto onde dormem é possível perceber a inclinação do teto para dentro: como se espremessem as personagens (como acontece com o quarto onde Van Gogh morou em Auvers-sur-Oise) e como vários enquadramentos – sobre elas – mostram no transcorrer do filme, sobretudo, quando estão deitadas num estágio de devaneio: sonhos. Sonhos em que o encanto das sereias (a lembrança da Odisseia é inevitável) leva os sentidos a afogarem a existência consciente a desprumando e a exiliando da razão. A grande Odisseia que as personagens atravessam não é no mar, mas na Ilha que canta (num trabalho muito correto de som que adensa os matizes de preto e branco do filme) e a que tentam a todo custo sobreviver para não cair, como alerta o Alienista de Machado de Assis, no oceano das desrazão.

Se o Farol ilumina quando torna sombra o que não está no seu foco, é importante não tomar o que está sob e luz como o caminho mais seguro porque fantasia da lucidez pode custar muito, adoecer para ser claro, quando realizamos a dimensão oceânica de nossa insensatez.

Érico Andrade – Filósofo, psicanalista em formação, professor da Universidade Federal de Pernambuco

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Redação

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