Fernando Horta
Somos pela educação. Somos pela democracia e mais importante Somos e sempre seremos Lula.
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A democracia-puta

Não é necessário muito estudo para perceber-se que as questões de gênero superam a mera colocação de um artigo antes de um substantivo para “melhor definição”. O gênero aporta ao substantivo um enorme grupo de visões e percepções construídas anteriormente ao substantivo que se está “definindo”. Quando se fala, por exemplo de “O” mercado e “A” democracia, está se dizendo já quais os níveis hierárquicos o século XX estabeleceu entre eles. É a replicação da dicotomia “natural – não natural” com que vivemos. “O” mercado é “natural” enquanto “A” democracia, quando muito, é uma construção social. Um (não aleatoriamente o masculino) é reconhecido como “força-motriz” de atuação que não pode ser ignorada. “A” outra (democracia) é um pacto artificial de questionável efetividade e forma, na visão dos conservadores.

Tudo tem, pois, um leque de definições assessórias conforme as suposições de gênero. E não é apenas o campo do “masculino” e o “feminino” que têm características pré-concebidas. O feminino também vive de arquétipos psicossociais mais ou menos claros. A mulher é sempre reduzida a um dos três: a mãe, a esposa e a puta. A mulher-mãe é o campo do sagrado, do perfeito e do intocado. É o “milagre da vida”, da progenitura, em seu viés “bondoso”. A progenitora é também a que perdoa, acolhe, aceita e protege. Muita tinta já foi gasta para mostrar esta associação com figuras como “Maria, a mãe de Jesus”, por exemplo. O arquétipo é tão forte que permite que machistas tenham ódio pelas mulheres e carinho pela sua mãe, num contrassenso que se desfaz na sacralidade da palavra “mãe”.

O segundo arquétipo conhecido da mulher é a mulher-esposa. Aquela que divide com o homem ALGUMAS das percepções de vida. Notadamente no campo do privado. É a dualidade entre a “companheira” e a “submissa”. A esposa é aquela que “ajuda a construir”, mas dentro – e somente dentro – dos limites autorizados pelo masculino. Entre o adjetivo “companheira” e “submissa”, impera o segundo. O século XX, especialmente em suas primeiras décadas via até cursos para ensinar à mulher o “seu” espaço. A “rainha do lar”, cujo pacto surdo é da proteção pela submissão. O marido, “chefe de família”, não “deixa faltar nada” para a “sua esposa” e exige dela fidelidade e silêncio. Como a sociedade muda, também mudam os espaços de permissão que a mulher-esposa pode transitar. Ela pode ser juíza, desde que o marido seja desembargador. Ela pode ser professora, desde que o homem ganhe mais do que ela em outra profissão. Alguns homens pensam em sinal de “modernismo” a ampliação dos espaços permitidos à mulher. Porém, sempre e somente na medida em que não forem concorrentes ou afrontosos ao entendimento do homem.

O terceiro arquétipo é a mulher-puta. A selvagem força da natureza que enfeitiça, ensandece e transforma a natureza “cordata” do homem. É a transpiração dos anseios e desejos sensuais masculinos. A mulher-puta é a transgressora por natureza. Capaz “das piores” coisas no mundo. Aquela que se dá e se deixa apenas pelo seu próprio instinto de necessidade e possibilidade. Incorrigível, indomável, violenta e incivilizada. A mulher-puta não tem dono. Dentro do entendimento deste arquétipo, a impossibilidade de reconhecimento de onde estão suas lealdades a transformam num elemento de instabilidade e perigo com o qual é permitido ao homem civilizado apenas o flerte. Flerte que serve apenas para saciar o lado selvagem do masculino. A meretriz, a “varzeana”, a vagabunda não o é pelo empoderamento da sua sexualidade, embora isto possa existir. Estes adjetivos são frequentemente empregados completamente alijados das questões sexuais e sempre como indicadores de imprevisibilidade, impossibilidade de controle e efetividade de ação.

Não é segredo, assim, que “A” democracia seja vista e entendida, por um grupo grande de pessoas, como enclausurada dentro de um destes três arquétipos. Os conservadores, por exemplo, admiram a “democracia-mãe”. Aquela que acolhe, recebe e promove ordem além de permitir a vida. A “democracia-mãe” é tão venerada quanto mais irreal ela for. É muito comum, nos discursos conservadores a reiterada imagem de apoio e apreço à “democracia”, sempre – contudo – querendo referir-se à irrealidade do arquétipo de mãe. Pode-se ser, na cabeça desta gente, contra a participação popular e “a favor da democracia”, ou contra “partidos políticos” e a favor da “democracia”, da mesma forma que se odiavam mulheres e amava a mãe. Esta é a democracia do fascismo. A democracia que Bolsonaro e seus apoiadores “defendem”. Irreal e sagrada. Impossível de ser atacada – porque sagrada – mas também impossível de ser colocada em prática, porque irreal.

A democracia-esposa é a democracia dos liberais. A que ajuda mas depende. Ajuda a manter a paz e a ordem social, mas depende do poder financeiro (do mercado) para existir. E se depende, não deve se insurgir contra ele. O espaço de existência da democracia-esposa é todo aquele delimitado e permitido pelo poder econômico. E este não se sente constrangido em podar, diminuir ou mesmo eclipsar a democracia caso “ela passe dos limites”. No fundo, o limite máximo é o código. A democracia só pode existir até onde “O” código permitir. Evo Morales é criminoso por fazer a democracia passar o código. A democracia-esposa é a democracia constrangida, amarrada e sufocada pela mão do poder financeiro que se embrutece em poder político e – no extremo – em poder militar. O auge do progressismo que se permitiu na história da América Latina é a democracia-mãe. E esta é sempre suscetível a ser silenciada quando “os homens de verdade” (normalmente armados) acreditam que “passou-se dos limites”.

A democracia-puta gera medo. Tal qual a mulher empoderada é insuportável ao homem, a democracia-puta também o é. Ela tem a indignidade de flertar com os pobres, de se associar com os indigestos e não queridos. Ela é incontrolável. A democracia das ruas precisa ser contida com cassetetes e tiros nos olhos, para que não possa mais ver. Da democracia-puta espera-se tudo. Tudo de pior, na visão dos conservadores. A ela precisa-se do AI-5. A virilidade bruta que “falta” a esta vagabunda. A democracia como força pura, imanente, transgressora, que subverte, modifica, revoluciona é, pois, puta. Mundana e não sagrada esta concubina da corrupção precisa ser contida. E, simbolicamente, precisa de paus grandes com os quais lhe espanquem. Assim como os fascistas de Bolsonaro adoram (no sentido de adoração religiosa e não material) a democracia-mãe, também abominam a democracia-puta. E, desde que destruíram a construção liberal da “democracia-esposa”, fogem da luta pela imposição da democracia-puta através da sacralização imaterial da democracia-mãe. A puta, somente os sujos, indigentes e não queridos, andam com ela. Os que a defendem, são, para este pensamento, bandidos.

A redução do feminino a arquétipos culturais atinge também a tudo o que se pode delimitar através do gênero. Daí que as diversas formas de entendimento de “democracia” estão em luta pelo mundo afora, hoje. A virada do século XX para o XXI fez questionar as binariedades básicas e, ao mesmo tempo, levantou ódio naqueles que se sentem ameaçados nos seus espaços de poder. Se a democracia-puta teve a coragem de questionar a democracia-esposa e refugar sua submissão ao (macho) mercado, então é preciso resgatar a “democracia-mãe”. Sagrada e inexistente. É com a imagem inverídica de uma virgem que pare um Deus que os cassetetes são empunhados contra os impuros, os não dignos e os vagabundos. É a visão objetificada e irreal do feminino, seus espaços de permissão político e social, que empunham os cassetetes pretos e os uniformes por toda a América Latina. A violência contra a democracia carrega o ódio pela puta. E toda a discussão sobre representatividade e limites legais “não pode ultrapassar o espaço da cozinha”.

E ainda há quem diga que “gênero” não deve ser ensinado aos jovens. Imagina se eles passassem a conhecer e defender a “democracia-puta”?

Fernando Horta

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