Bruno Lima Rocha
Bruno Lima Rocha Beaklini é jornalista formado pela UFRJ, doutor e mestre em ciência política pela UFRGS, professor de relações internacionais. Editor do portal Estratégia & Análise (no ar desde setembro 2005), comentarista de portais nacionais e internacionais, produtor de canal estrangeiro e editor do Radiojornal dos Trabalhadores.
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Huawei e a disputa pelo mercado internacional das telecomunicações

Augusto Gabriel Colório, Rodrigo Brites e Bruno Lima Rocha discorrem sobre o caso Huawei, que está no centro nervoso do grande jogo mundial do século XXI

Huawei e a disputa pelo mercado internacional das telecomunicações

Augusto Gabriel Colório, Rodrigo Brites e Bruno Lima Rocha

A disputa entre interesses estratégicos das superpotências ultrapassa, e muito, o perceptível do realismo mais vulgar. Ou seja, as projeções dos excedentes de poder entre Estados Unidos e China não necessariamente reproduzem uma disputa comercial ou corrida militar. Isto até pode ocorrer, mas a área core da luta está nas veias do capitalismo de última geração, operado a partir de uma mescla de controle de sinais digitais, sanções contra uma potência média, desenvolvimento tecnológico não compartilhado e massificação de aparatos de tipo telefonia móvel e comunicação de dados. O episódio abaixo representa algo que passou despercebido em escala na periferia do ocidente chamado Brasil, mas foi objeto de análise destes especialistas e nossas respectivas redes de reflexão e ativismo político. O caso Huawei está no centro nervoso do grande jogo mundial do século XXI, jogo tipo 1.

1. O caso: prisão e retaliação

Apesar da prisão – e posterior soltura sob fiança doze dias depois – da diretora financeira e filha do fundador da gigante de telecomunicações chinesa Huawei, Meng Wanzhou, ter passada quase despercebida pela imprensa brasileira, a disputa ganhou as manchetes dos jornais da mídia ocidental. Notou-se que a mídia hegemônica acabou por reproduzir os interesses de Washington, alegando que a prisão seria consequência do descumprimento das sanções unilaterais feitas por esse país ao Irã, as quais impedem o comércio com o país médio-oriental. Esta seria a razão alegada, um absurdo de por si, uma vez que a gigante chinesa não necessariamente precisa aderir ao parcial bloqueio econômico contra o país de maioria persa. Além desta “naturalização” da política externa da Superpotência, o que está em jogo é um processo muito mais complexo e que se relaciona com atual fase da política internacional de transição sistêmica, bem como com a disputa de mercados e com o controle de tecnologias disruptivas que podem representar uma mudança na estrutura de poder global. Neste ensaio pretendemos discutir os principais interesses por detrás da prisão de uma das lideranças da Huawei, além deste tema adentramos no atual processo de disputa pelo mercado das telecomunicações global e os efeitos na área de segurança.

Como já mencionado, no dia 1º de dezembro de 2018, as autoridades canadenses prenderam Meng Wanzhou após o pedido oficial das autoridades norte-americanas. A alegação emitida pelas instâncias judiciais competentes foi que Meng teria sido presa por não respeitar o embargo econômico aplicado pelos EUA ao Irã. Imediatamente Beijing respondeu demandando que as autoridades norte-americanas e canadenses liberassem Meng acusando-os de violarem a liberdade da acusada e de não serem as autoridades competentes para julgar o caso por não se tratar de uma empresa dos dois países. Nota-se que há um padrão neste relacionamento EUA-Canadá. Desde a década de ’50 que o país bilíngue opera como um braço estendido da inteligência de Washington. Basta observar o papel do Banco do Canadá na CPI do IBAD, levada a cabo no Congresso Nacional do Brasil, em 1963. Assim, o alinhamento novamente funciona a favor dos Estados Unidos.

Voltando ao caso, dias depois, a China prendeu dois cidadãos canadenses, o empresário Michael Spavor e o ex-diplomata Michael Kovrig por estarem envolvidos em atividades que “colocam em risco a segurança nacional”, o que foi visto por muitos analistas como uma forte resposta da China a prisão de Meng. Há que se destacar que a prisão veio logo após China e EUA terem anunciado uma trégua na Guerra Comercial, o que levou muitos observadores a destacar que poderia ser uma estratégia do Governo norte-americano de romper com o acordo anunciado por Trump durante reunião do G20 na Argentina.

A grande mídia acabou reproduzindo principalmente os discursos das autoridades norte-americanas e canadenses, mas, em contraponto, consideramos aqui que esse caso representa na verdade a disputa global pelo mercado de tecnologia em meio ao acirramento da competição hegemônica entre a atual superpotência, EUA, e a potência ascendente, China. Recentemente a Huawei tornou-se a segunda maior empresa de smartphones do mundo, passando a Apple e ficando atrás apenas da sul-coreana Samsung. Além disso, a empresa anunciou projetos como o desenvolvimento da tecnologia 5g e do seu próprio sistema operacional, Kirin OS, capazes de colocar em xeque a hegemonia das telecomunicações exercida pelas empresas norte-americanas como Google e Apple. Os sistemas de dados da China, assim como seu complexo de telecomunicações – tema já muito abordado pelo pesquisador Ricardo Camera, também membro deste Grupo de Pesquisa – não “conversam” com o sistema de vigilância satelital dos EUA e tampouco estão sob jurisdição do Ato Patriótico, Sistema PRISM e demais braços do complexo de inteligência estadunidense.

Na busca pela manutenção do status quo, os EUA inflaram o discurso que implica a Huawei em suspeitas de espionagem e roubo de propriedade intelectual, impactando a presença e expansão da empresa, por exemplo, no continente europeu. Além disso, como observamos na última década com os casos Snowden e o mais recente da Cambridge Analytica, as novas tecnologias trazem consigo uma ameaça securitária real às nações, e a reestruturação da rede atualmente centrada nos Estados Unidos enfraqueceria o domínio desse país nesse campo.

Cabe destacar que Meng foi considerada por parte da mídia censurada por Beijing como uma liderança natural para assumir o cargo máximo da empresa no futuro. Ademais, pelo fato de a empresa ser chinesa fica evidente que as autoridades norte-americanas não são competentes para julgar Meng, além disso as sanções unilaterais dos EUA ao Irã não fazem parte da lei internacional o que não impõe nenhuma obrigação a China. Logo, a prepotência imperialista diante de outro império soa como desafio. Para sustentar nossa hipótese que o que está em jogo não é um caso de respeito à lei, mas sim uma disputa pelo mercado de tecnologia e a capacidade de projetar poder sobre outras sociedades capilarizadas por tecnologia móvel e redes sociais, na próxima parte busca-se compreender o desenvolvimento da Huawei e sua inserção internacional, tal como a participação da China no mercado de telecomunicações global.

2. A história da Huawei e o crescimento chinês no mercado de telecomunicações

Ao contrário do que se difundiu no mainstream, a estratégia de liberalização econômica controlada pelo Estado Chinês deve ser vista como uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo, atraindo capital e tecnologia estrangeiros, com a qual Beijing busca reconstituir o sistema sinocêntrico característico do período anterior ao Século de Humilhações (1839-1949). Tal estratégia acompanhada dos incentivos públicos aos grandes campeões nacionais, empresas escolhidas para a entrada no mercado internacional, e ao desenvolvimento de tecnologia avançada que garantam os interesses da segurança nacional, podem ser considerados os fatores cruciais na consolidação da Huawei entre as maiores empresas de telecomunicação do mundo. No período pós-2008, a opção da China foi a de adentrar na disputa das cadeias de alto valor agregado e tecnologia sensível, ultrapassando a fase da manufatura com intensidade de emprego de mão de obra abundante, buscando rivalizar na alta tecnologia, convertendo parte de seus excedentes (em dólares) para contratos firmado em renminbi (RMB), assim como em setores estratégicos para o século XXI.

As repercussões geopolíticas do atual caso envolvendo a prisão da diretora financeira da empresa têm nas relações entre o Estado Chinês e o desenvolvimento da Huawei, ambos ascendendo em suas posições de poder, as raízes primordiais.

Em 1988, final do período da liderança de Deng Xiaoping, a Huawei Technologies Co. foi fundada pelo ex-oficial do Exército Popular da Libertação e membro do Partido Comunista Chinês (PCC), Ren ZhengFei, em Shenzhen como uma empresa coletiva . Sua proximidade com a alta cúpula do Partido Comunista permitiu maior acesso a créditos públicos e a contratos com as grandes estatais da estrutura de telecomunicação chinesa China Telecom, China Mobile e China Unicom para o fornecimento de equipamentos. É importante destacar esse relacionamento próximo entre a empresa a o governo chinês , já que esse vem servindo como principal argumento para a identificação da Huawei como uma ameaça à segurança nacional de outros países. Na China iniciada com a Era Deng, as barreiras ou facilidade de acesso político-institucional das empresas se dão nesta base, pela relação político-militar de seus fundadores e dirigentes, manipulando um estatuto de guanxi de primeiro escalão.

Voltando à trajetória da Huawei, de início o diferencial da empresa se caracterizava pela produção e revenda de equipamentos de baixo custo, conquistando o interior do mercado chinês e os mercados internacionais de países em desenvolvimento, primeiro no Sudeste Asiático e Ásia Central, chegando na América Latina e Oriente Médio. Com seu crescimento, aliado às estratégias de contratar mão-de-obra qualificada de outras empresas de tecnologia e de promover alianças com empresas de telecomunicação com mais know-how, a Huawei passou cada vez mais a investir em Pesquisa e Desenvolvimento, criando centros de Pesquisas em diversos países, inclusive nos EUA, e agregando assim mais inovação e tecnologia de ponta a seus produtos.

A partir da década de 90, o governo chinês passou a entender o peso das novas tecnologias para a manutenção de um desenvolvimento econômico de longo prazo, ampliando seus incentivos ao setor e permitindo a entrada de empresas estrangeiras, inclusive norte-americanas. Mesmo assim, sempre o considerou como sensível para a segurança nacional e por isso mesmo manteve-o sob o rígido controle do Ministério da Informação e Indústria. É nesse período que se formula a estratégia Going Global que procura criar os chamados campeões nacionais para se internacionalizarem, mudando assim a imagem das indústrias chinesas de meras produtoras de bens de pouco valor agregado e baixa qualidade. Tal estratégia permanece ativa e se relaciona com a consolidação da Huawei em solo europeu que, além dos preços baixos e da grande qualidade dos últimos smartphones, utilizou uma política de softpower fazendo doações a escolas de elite, a líderes políticos e a caridade, medidas que abriram os mercados de países como Alemanha e Inglaterra. Além dela, se beneficiaram da estratégia as empresas de telecomunicação e produtos eletrônicos TCL, Lenovo, Xiaomi, Boe Technology a Galanz, ampliando a presença chinesa no mercado internacional de tecnologia.

3. A disputa pelo mercado global de tecnologia e os efeitos na área de segurança

A prisão de Meng, como alegamos, é mais um episódio no processo de competição internacional pelos mercados de tecnologia que possuem profundos efeitos na área de segurança. Os recentes avanços da China em tecnologia, sobretudo da Huawei, exemplificam o potencial de competição da empresa com as gigantes norte-americanas.

Atualmente, o país apresenta a maior população de usuários de internet do mundo, quase três vezes maior que a dos Estados Unidos, com cerca de 800 milhões de pessoas. Nos últimos três anos, a economia chinesa produziu um terço do total dos unicórnios globais, em grande parte devido ao grande complexo de financiamento estatal e abertura controlada ao investimento estrangeiro. Além disso, a economia digital chinesa representa 40% das transações globais feitas pela internet, participação que há uma década atrás era menos de 1%. Com toda essa transformação em direção a produção de tecnologias de ponta, a China se destaca entre as três maiores economias que mais investem em BigData, Inteligência Artificial, e companhias de Fintech.

Nessa mesma linha, a Huawei acabou se consolidando como a segunda maior empresa provedora de smartphones do mundo, atrás apenas da sul-coreana Samsung. Em relatório anual de 2017 , a empresa apresenta um crescimento de 15,7% da receita se comparado ao ano anterior, e um aumento do investimento em Pesquisa de 17,4%. Por regiões, nota-se que a única a ter um considerável recuo de participações nos negócios da empresa é a americana (América do Norte e Latina) que ficou com 6,5% do total, enquanto a China permanece como a principal região (50,5%), Europa, África e OM em segundo lugar (27,1%) e então a Ásia (12,3%). Sua internacionalização, que principiou em mercados da periferia global, ao passar a focar cada vez mais em mercados desenvolvidos encontrou a resistência de grandes empresas de tecnologia norte-americanas e consequentemente das potências ocidentais ameaçadas pela concorrência chinesa. Cabe ressaltar que recentemente a Apple apresentou a performance financeira mais baixa em 16 anos e vulnerabilidade devido à competição internacional e a guerra comercial.

Além dos ganhos de mercado e inovação, o fator que mais produz inquietação em Washington são as supostas ameaças para as áreas de segurança causados pelo avanço da Huawei e, consequentemente da China. Como bem se sabe, os EUA possuem o controle da infraestrutura internacional responsável pelas telecomunicações, fato que concede ao país um grande poder sob outros Estados, inclusive aliados. Com a ascensão chinesa no mercado de telecomunicações e a difusão da sua tecnologia, o poder norte-americano está sob ameaça.

Esse processo fica ainda mais claro na corrida para o desenvolvimento da tecnologia 5g, atualmente liderado pela Huawei, que além de permitir uma internet wireless mais rápida de carregamento quase instantâneo, representa o avanço tecnológico em diversas áreas da vida humana, conectando na mesma rede desde carros autônomos até o controle de sistemas domésticos de iluminação e de ventilação. Isso significa uma maior quantidade de dados sobre a população sendo reunidos, possibilitando um melhor direcionamento de propagandas, melhores prospecções de políticas públicas ou um controle social mais apurado. . Em recente nota , um membro do Conselho Nacional dos EUA, destacou o perigo para os norte-americanos representado pela posição na dianteira da China no estabelecimento mundial do 5g. Com essa vantagem estratégica, segundo o conselheiro, os EUA perderão a posição hegemônica no controle do fluxo de informações. Não é a toa que os países membros do five eyes concordaram em banir produtos da Huawei para que assim possam manter sua posição de primazia na espionagem mundial.

Assim, fica evidente que a prisão de Meng não está relacionada ao descumprimento das sanções ao Irã. Além desse episódio ser mais um sintoma da disputa comercial entre China e EUA, a prisão tem um teor claramente político na intenção de barrar o avanço da tecnologia chinesa sobretudo em um período de declínio do poder estadunidense e ascensão chinesa. De uma perspectiva mais ampla, os EUA por meio da guerra comercial e de outras estratégias buscam limitar o avanço chinês na economia mundial. Os dirigentes da Casa Branca sabem que com o consequente deslocamento da economia internacional para a esfera chinesa duas posturas de política externa são possíveis: acomodação ou disputa. Parece que eles já optaram pela segunda.

Augusto Gabriel Colório, Rodrigo Brites e Bruno Lima Rocha são membros do Grupo de Pesquisa Capital e Estado (https://capetacapitaleestado.wordpress.com/ e https://www.facebook.com/capetacapitaleestado/

Bruno Lima Rocha

Bruno Lima Rocha Beaklini é jornalista formado pela UFRJ, doutor e mestre em ciência política pela UFRGS, professor de relações internacionais. Editor do portal Estratégia & Análise (no ar desde setembro 2005), comentarista de portais nacionais e internacionais, produtor de canal estrangeiro e editor do Radiojornal dos Trabalhadores.

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