Contra a racionalidade do “sacrifício necessário”, por Bruno Reikdal Lima

O sacrifício cumpre, portanto, um papel disciplinador: exige renúncias e mostra no processo do rito o resultado necessário das faltas e o preço a ser pago pelo futuro seguro – o sangue de alguém.

Contra a racionalidade do “sacrifício necessário”, por Bruno Reikdal Lima

Há uma racionalidade ancestral que de tempos em tempos se adapta e renova suas forças nas diferentes formações sociais humanas: a racionalidade do “sacrifício necessário”. René Girard trabalha em A violência e o sagrado, publicado em português pela Paz e Terra, as diferentes ordens sacrificiais e o papel que cumprem na organização comunidades humanas, tanto para criar situações de segurança e controle social, quanto pretensão de controle sobre o entorno, mediado pelas divindades ou forças sobrenaturais. Dado que certos recursos são escassos, as disputas, distribuições e a posses destes precisam ser ordenadas. Nessas relações, então, o sacrifício encontra seu papel justificando a falta de recursos para certo grupo ou período, assim como a sobra para outros, além de aplacar a violência quando por meio do ritual, promete um futuro próspero.

Girard mostra como em situações críticas, na qual são cometidas violências na disputa por recursos, quebrando a estabilidade ou paz social, um sacrifício é evocado como a violência permitida, legitima e necessária, da qual todos os membros da comunidade participam, colocando no “bode expiatório” seus medos de caos e as esperanças de que a harmonia seja renovada. O sacrifício cumpre, portanto, um papel disciplinador: exige renúncias e mostra no processo do rito o resultado necessário das faltas e o preço a ser pago pelo futuro seguro – o sangue de alguém. Se a comunidade deseja que haja estabilidade, o sacrifício é requerido. Se a comunidade espera que a paz permaneça no futuro, novamente o sacrifício é exigido. Sua necessidade é constantemente atualizada. Exatamente como a primeira linha de toda cartilha do “bom economista”: “todos teremos que fazer sacrifícios” – mas uns, sempre, mais sacrificados que outros.

Se há uma palavra que se repetiu nas entrevistas, declarações e discussões em comissões por parte da equipe econômica de Paulo Guedes, foi “sacrifício”. Cada corte orçamentário ou cada violência contra direitos mínimos de trabalhadores e trabalhadoras vinha com a legitimidade do “sacrifício necessário”. As aposentadorias assaltadas por uma reforma agressiva e insustentável vem acompanhada da promessa de um futuro próspero com o sofrimento de “bodes expiatórios” atualmente. Diferente de uma comunidade ancestral, não estamos falando de uma pessoa, um animal ou parte da produção como símbolo da entrega sacrificial. Trata-se da grande massa popular, a maioria pobre. Ela deve se sacrificar para a prosperidade da sociedade brasileira, para salvar a economia, agradar o Mercado. Ao que parece, quando o sangue do povo for derramado, os investimentos chegarão. O sacrifício é “necessário”.

Nesse tipo de racionalidade sacrificial, a morte é legalizada. O resultado esperado da violência do sacrifício legitima simbolicamente a exclusão, a marginalização, o massacre social. É uma lógica disciplinadora, que conforma os corpos ao “mal necessário”, não na coordenação de premissas, mas no campo do desejo, da expectativa de melhoras. É o que nos apresenta Jung Mo Sung em Desejo, Mercado e religião, publicado pela Editora Vozes, demonstrando, inclusive, que no capitalismo neoliberal os “bodes expiatórios” são sempre as massas pobres, que nunca tem a permissão de comer a parte que lhe cabe do “bolo” da economia que sempre cresce, mas nunca é partilhado de maneira justa. O sacrifício é necessário, e os escolhidos para o sacrifício são sempre os mesmos.

Contudo, há de se distinguir na racionalidade do sacrifício necessário a orientação da violência. Se ela é contra o próprio corpo como o caminho para solucionar problemas, há aceitação da automutilação e, no limite, do suicídio (quando o sujeito ou um grupo aceita entregar as condições de garantia da manutenção da própria vida). Se a violência é contra o corpo alheio, há a aceitação do homicídio e, no limite, do genocídio (quando grupos específicos ou parcelas sociais são os corpos passíveis de serem sacrificados). É a diferença da racionalidade sacrificial suicida da racionalidade sacrificial genocida. A primeira justifica a aceitação do próprio martírio; a segunda legitima o ataque contra minorias, a brutalidade contra o “outro”. A primeira aplaca a ira dos sujeitos sacrificados contra a ordem que requer a morte; a segunda garante a moralidade do assassinato, o direito de matar, de sacrificar. Assim, se é necessário que percamos direitos sociais, que seja feito. Do mesmo modo, se para pacificar a cidade é necessário que adultos, adolescentes e crianças morram nas favelas, tudo está permitido.

Nas comunidades ancestrais que Girard trabalha, o grande problema era a escassez que requeria a disciplina do ritual sacrificial. Mas em um mundo que é incapaz de consumir tudo o que produz, onde se encaixa o sacrifício? Qual sua necessidade? Seria para o 1% que detém metade da riqueza do país um sacrifício reorganizar seu excesso de ganhos para garantir a vida dos outros 99%? Seria necessária a violência? Ou a violência e o sacrifício são recorrentemente trazidos para a mesa para garantir a manutenção da reprodução desse abismo social? Se há algo que deveria ser sacrificado, não é a vida das grandes massas empobrecidas, mas a ordem social que as empobrece.

É tarefa de movimentos progressistas criticar a racionalidade do sacrifício necessário, tanto em sua operação de manutenção da ordem social, quanto na escolha dos “bodes expiatórios” (sempre os mesmos). Um trabalho que requer o desenvolvimento de um campo já esquecido, mas fundamental no projeto marxista: a crítica da religião (para Marx, o pressuposto de toda crítica). Não se trata da operação lógica sobre o funcionamento do sistema capitalista, mas antes, dos conteúdos que tornam possível sua reprodução, seu fundamento. Os elementos ideológicos que precisam ser trazidos à luz para seu descarte ou melhoramento. Na Introdução à crítica da filosofia do Direito de Hegel, Marx propõe o trabalho de retomada das estruturas ideológicas que legitimam a exploração dos trabalhadores e, em seguida, a exposição do fundamento das instituições que realizam o controle social na sociedade burguesa.

A crítica da religião, para Marx, trouxe como resultado a crítica da política como ferramenta necessária para que os trabalhadores e as trabalhadoras retirassem as “flores das correntes” e percebessem a situação de opressão. A questão é notar como estruturas simbólicas operam na sujeição a relações de violência e dominação. Hoje, no Brasil, com o campo da crítica da religião é preciso destacar a função da racionalidade sacrificial, seus limites e conteúdos ideológicos. O pacote neoliberal do governo Bolsonaro, a truculência policial incentivada e recompensada por governadores como Witzel e Dória, assim como a propaganda política e o apoio de parcelas significativas da população dependem do reforço da necessidade do sacrifício. Elegem os “bodes expiatórios” e legitimam o sofrimento e a violência, desviando o problema da necessidade de se transformar a própria organização social, que recorre à potencialização dos aparelhos disciplinadores na promessa de estabilização social.

Redação

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