Politize-se ou morra! – ou uma homenagem a Miguel Paiva, por Gustavo Conde

O traço de um desenhista pode ser, portanto, como o cheiro de uma planta e acionar a descarga elétrica para emoções profundas.

O cheiro da lembrança – homenagem a Miguel Paiva

por Gustavo Conde

A memória olfativa é uma das características mais espetaculares do nosso cérebro. Os neurocientistas explicam o fenômeno dizendo que o olfato está diretamente ligado ao sistema límbico, a área cerebral responsável pelo processamento das emoções.

O cheiro é emoção. As combinações infinitas, o mato queimado do inverno interiorano associado ao xampu antigo e fora de catálogo – que, por alguma razão, emergiu de dispersões químicas de novos produtos – e ao frescor do banho recém tomado com as micro-exalações de uma toalha que secou ao sol do meio-dia, pode levar às lágrimas.

O cérebro, no entanto, é uma ferramenta infernal e subversiva. Ele dispõe de um recurso chamado ‘plasticidade’.

Se jogarmos ali, no sistema límbico, a nossa experiência visual, instala-se de maneira indelével uma euforia sináptica plena de sutilezas: seremos eternamente tragados pela emoção mnêmica das cores, texturas e traços que nos infectam a retina.

O traço de um desenhista pode ser, portanto, como o cheiro de uma planta e acionar a descarga elétrica para emoções profundas.

É essa a experiência que assalta os sentidos quando nos deparamos com o traço da Radical Chique e do Gatão de Meia Idade. Eles estão cravados na retina como o bolinho de chuva nas narinas.

Além do traço, há o texto: a agudeza provocadora da Radical e a psicologia quase inocente do Gatão nos remetem a um tempo em que parecia haver verdadeiramente liberdade de expressão. E em tempos de patrulha exacerbada e pautas identitárias a mil, Gatão e Radical permanecem contemporâneos, mais humanizados e revestidos de afeto que os memes quase sexistas esparramados pelas redes sociais.

Aliás, a palavra “sexista” não se aplica a esse universo de Miguel Paiva. A proeza, para uma produção que remonta às décadas de 80 e 90, decorre da inteligência de Miguel, mas, sobretudo, do tom de seu texto e traço. A dicção recobre-se de delicadeza ao narrar certas mudanças comportamentais de homens e mulheres no circuito dos relacionamentos, empoderamentos e (des)orientações de gênero.

Há feminilidade no Gatão e uma certa ‘virilidade’ na Radical. Só um gênio dos quadrinhos poderia dar vida a personagens psicologicamente tão complexos e, ao mesmo tempo, tão singelos em sua forma final.

Não custa lembrar: as piadas envelheceram furiosamente de 20 anos para cá. Quase todas as piadas sexistas dos anos 80 e 90, hoje, podem ser tipificadas como crime. A inflexão política na engrenagem do humor e suas ramificações foi muito forte.

Isso está diretamente associado a essa convulsão política do presente. Racistas, nazistas e misóginos não aceitaram sua proscrição do discurso humorístico e migraram para o debate público o infectando, chegando, com isso, inclusive, à presidência da República.

Este processo, todos conhecemos e lamentamos. A resposta estrutural da linguagem e da história a tudo isso já está em curso. Resta acelerarmos o processo.

É aí que entra Miguel Paiva mais uma vez, re-inventando-se à luz (ou às trevas) dessa nova realidade política.

Das percepções refinadas e rastreamentos comportamentais de personagens do cotidiano, Miguel formatou uma nova linguagem, com forte teor político e dicção impregnada de ‘pessoalidade’.

A ‘doença Bolsonaro’ exige posicionamento do artista. Não há hipótese em se postular uma dicção crítica e humorística destituída do engajamento tácito em defesa da humanidade.

Miguel Paiva adentra esse novo território, o que ainda lhe exige uma re-adaptação aos novos suportes e linguagens: ele faz o movimento quadrinista-chargista e dialoga com o teor altamente reativo e imediato das redes sociais, promovendo uma incorporação da linguagem dos memes em suas críticas visuais.

Ele mobiliza toda uma família nova de pressupostos, eixos temáticos e instantaneidades noticiosas para construir um novo e poderoso ethos humorístico, ainda caracterizado por certa delicadeza narrativa e tonalidades de inocência deliberada – talvez, como forma de atenuar a morbidez que é interagir com o governo mais desumano da história do país.

Miguel Paiva ainda preserva a espontaneidade do traço, essa memória que ativa as emoções do seus leitores cativos e históricos mas que, ao mesmo tempo, instala uma nova estética cenográfica a seus novos leitores.

Os entrelaçamentos temáticos, os deslocamentos visuais, os trocadilhos, a polifonia, as colagens e a reverberação singular organizada por seu traço artesanal, revigoram as possibilidades de produção de humor no cenário devastado da política brasileira.

Miguel exige um leitor qualificado – que é obrigado a se qualificar para codificar sua mensagem – e traduz como poucos o pressuposto obrigatório para o universo das charges: politize-se ou morra.

Celebremos o novo Miguel, o velho Miguel e o Miguel de sempre. Esse Miguel já eternizado em nossas retinas que num hiato de seu traço nos remete à lembrança delicada que é fazer arte e respirar democracia.

***

Nota: este texto é o prefácio que escrevi para o livro do cartunista Miguel Paiva, ainda não publicado. Tomei a iniciativa de publicar em meu blog porque algumas homenagens não podem esperar.

Quando Miguel me convidou para prefaciar a publicação, disse que faria com uma condição: a de que ele fizesse uma Radical Chic só para mim.

Eis o produto final dessa amizade regada à malandragem. Salve, Miguel Paiva!.

Redação

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