As esquerdas precisam mudar (e complexificar) seu discurso (2)

Há pouco tempo falei da necessidade das esquerdas mudarem algo em seu discurso e incluírem, junto com a denúncia, a esperança [bit.ly/cG190611]. Construir esse discurso de esperança, contudo, não é algo simples e guarda várias armadilhas. Primeiro, deve ser construído desde aspirações vindas da sociedade como também a partir de análises mais acuradas das possibilidades objetivas de mudanças significativas em favor de uma qualidade de vida melhor (isto, em tese, seria papel da academia; mas esta, via de regra, dado seu distanciamento da sociedade que a financia, está longe de cumprir tal tarefa de modo destacado). Um dos grandes pontos é não criar (ou fomentar) esperanças infundadas, não transformar o desejo de mudança em um balaio onde cada um põe o que quer para se frustrar a seguir – como foi parte da estratégia de Bolsonaro para ganhar eleitores não fascistas em 2018 e, não fossem os escândalos e sua incompetência, seria um dos principais fatores que minaria o apoio a ele. A esperança deve ser trabalhada tanto numa chave utópica, ideal – no sentido kantiano do termo, de perfectibilidade nunca alcançável, mas nem por isso deixada de ser desejada e buscada -, quanto numa chave concreta, de pequenos ganhos viáveis e visíveis – algo próximo do que o PT foi em seu início, e que abandonou quando ocupou o Palácio do Planalto.

Isso implica em complexificar o discurso – e, por consequência, o pensamento e a compreensão da realidade. Sei o quanto é difícil esse processo: ser didático sem ser raso; como tornar um conceito, uma ideia, em uma formulação simples e não simplória, que não tenha apenas uma compreensão imediata, mas implique em uma mediação a mais no pensamento – mesmo daqueles que não estão familiarizados a filigranas intelectuais ou grandes densidades de dados e teorias. Aldo Fornazieri dá o exemplo do fracasso que tem sido a campanha Lula Livre – uma pauta, diga-se de passagem, que não é de grande complexidade, mas que foi reduzida a uma palavra de ordem que nem mobiliza quem a acha legítima, mas está parado, sequer pro-voca quem estava mudo [http://bit.ly/2Ge8Nu4].

Vejo dois fatores principais para a defesa dessa linha ‘complexificadora’. O primeiro de ordem prática: as visões simplistas souberam ser instrumentalizadas de maneira muito mais efetiva pela direita, em especial pela extrema-direita. O porquê disso dá várias teses, creio que uma primeira chave explicativa está na nossa subjetivação – que nos impõe necessidade de certezas – e na educação – formal e não formal, ainda mais num país dominado por uma mídia monocórdia e igrejas conservadoras. O segundo, de ordem programática, vamos dizer assim: se a esquerda realmente pensa em construir uma sociedade democrática, é preciso fortalecer o pensamento autônomo, de modo a conseguir não fanáticos a suas teses, mas pessoas capazes de ponderar, dialogar e agir de modo independente – e depois convencê-las de que suas propostas são as mais razoáveis.

Concomitante a isso, é preciso incluir não apenas minorias, mas recalcitrantes, aceitar os diferentes, desde que com alguma coisa em comum – parafraseando antigo slogan de cigarro e princípio implícito da extrema-direita -, com aquele tenso ponto de um limite a essa inclusão, deixando de fora, por exemplo, os intolerantes. Unir diferentes não significa criar uma identidade unitária, muito menos forçar uma identificação a partir do ódio – a diferença entre inimigo e adversário precisa ser sublinhada, assim como o limite para o convite ao diálogo e a sua possibilidade. Nisso, imprescindível começar complexificando a política, ou seja, tirar dela a aura de algo possível pureza: pureza em política, apenas as dos regimes totalitários mais sanguinários: toda democracia implica em ceder e aprovar pautas dos adversários em dado momento (a esquerda, sejamos sinceros, até o fenômeno neofascista recente (Bolsonaro, Moro, Doria Jr, Amoêdo-Novo), era implacável e inigualável na sua cobrança de pureza, sendo que parte ainda continua); combater a corrupção, porém sem a fantasia de extirpá-la – não enquanto vivemos sob o sistema atual.

Complexificar muitas vezes é mostrar a proporção de certos números apresentados pela mídia – dar a dimensão de que aqueles milhares de reais que é muito para uma pessoa comum, é nada para um banco ou para o orçamento da União -; é não discutir conclusões, mas  atacar as premissas e deixar a cada um que conclua por sua conta, ainda que dentro de parâmetros razoáveis – e isto inclui uma utopia racional, de que a lógica volte a ser valorizada, minimamente que seja. Complexificar – e aqui a esquerda temos muita dificuldade – é saber conciliar o logos racional com o discurso que apela à emoção. Sim, a política é movida pelas emoções, mesmo quando tentamos racionalizá-las, seguem sendo emoções, paixões e ódios e pré-conceitos: é por isso que os grandes oradores desde sempre levantaram suspeitas por parte de democratas e ditadores (e nossa época vive uma instrumentalização tecnológica do discurso que tem prescindido (em parte) dessa figura, a disputa prometida e não realizada em 2018, entre a oratória e o “microtarget whatsappiano”).

Complexificar já é, em si, um ato bem revolucionário, pois vai contra as diretrizes do espetáculo (para usar o conceito do autor que estudei, Guy Debord); precisamos saber escolher alguns temas dentre os que despontam e aprofundá-los, esmiuçá-los, e não pular de “trending topic” em “trending topic”, posto pela mídia e pelos algoritmos das redes sociais, reforçando a lógica da superficialidade que favorece a crença sem lastro – princípio em que vingam as fake news e tudo que as envolve. Em tempos de meme e lacração, conseguir trabalhar um pouco mais uma ideia é um privilégio – e é também uma necessidade. Não se trata de abandonar as ferramentas que tem se consagrado na internet – coisa que a esquerda ainda engatinha no uso -, mas de utilizá-lo como um primeiro combate para chamar para um outro terreno, no qual seja possível ampliar a compreensão das linhas de força que atuam em determinada questão – dos memes levar a youtubers progressistas e, quem sabe, a textos analíticos mais profundos.

Denunciar injustiças, iniquidades; confrontar discursos lacunares, contraditórios (sem cobrar coerência, mas a assunção das limitações do humano, do político); propor políticas concretas para melhoras a curto e médio prazo, convidar para debates sobre alternativas, sinalizar possibilidades utópicas a serem construídas conjuntamente, tudo isso sem reduzir a fórmulas prontas ou a palavras de ordem. A tarefa é árdua, porém os demais caminhos, por ora, não apontam a construção de um mundo melhor.

 

28 de julho de 2019

 

Redação

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