Filhos: marcadores da passagem do tempo, por Daniel Gorte-Dalmoro

A principal função de um filho é lembrar a nós, adultos, da passagem rápida do tempo - ainda mais a alguém, como eu, com muita memória retardada

Filhos: marcadores da passagem do tempo

por Daniel Gorte-Dalmoro

Por muito tempo achei que a principal “função” dos filhos na vida dos pais fosse dar uma sensação de continuidade: alguém que de alguma forma seguirá algo daqueles que o criaram. A estes, a convicção de que depois de mortos, algo deles continuará – não é a vida eterna, mas é o que mais próximo poderíamos conseguir, sendo humanos (em tempo: tenho pensado como a geração formada no individualismo e adepta do “child free” não acaba por afetar a solidariedade de toda a sociedade, uma vez que a preocupação intergeracional se torna fruto de ato estritamente racional, sem lastro emocional).

Ainda que sem ser pai, a convivência praticamente diária, por mais de três anos, com uma criança – dos seus seis aos seus nove -, me fez notar que a principal função de um filho é lembrar a nós, adultos, da passagem rápida do tempo – ainda mais a alguém, como eu, com muita memória e temporalidade retardada.

Antes de conhecer o Vini, havia algo na minha percepção da passagem do tempo que não se fixava. Afora os cabelos ficarem raros, a impressão que eu tinha é que o tempo passava rápido e devagar ao mesmo tempo. Quase quarenta mas me via como tendo vinte. Uma vez comentei com um iluminador (já passado dos sessenta) que havia visto um espetáculo dele “não fazia muito”, ao que ele me respondeu: “isso faz cinco anos!”. Era isso: cinco anos e parecia esses dias. Meus amigos que moram longe, com quem me comunico por e-mail, são três, quatro meses para responder, e parece que foram quinze dias. Os vinte anos que moro fora da casa dos meus pais parecem, com boa vontade, seis. Ao reparar no Vini é que noto o quanto de tempo passou: seus três anos parecem nove (e olha que também eu tive uma vida agitada nesses ínterim, cursos de marcenaria, tapeçaria, xilogravura, dança, dramaturgia, etc).

Esta semana marquei de encontrar uma amiga de Recife, que estava em São Paulo por conta da sua apresentação no MITSP, e que conheci na residência em dança do Eduardo Fukushima, há três anos e meio, 2016. Eu ainda lembro de uma crônica sobre essa residência que enrolei e não escrevi, recordo de boa parte dos colegas e de várias conversas que tive – como se fosse ontem. De repente noto: foi quando conheci o Vini. Ele então não sabia ler e escrever, se atrapalhava com os números (hoje faço o “pense rápido” pra ele e jogo uma conta e ele responde, entre o fastio e o desafio), tinha alguma dificuldade na dicção, precisava da luz acesa para dormir, chorava desesperado para tirar um dente mole dependurado. Eu mesmo tinha dificuldade em estabelecer maiores relações com ele, visto que sou muito mais da fala que do brincadeira.

Foi com o tempo, com seu crescimento mais do que com minha maleabilidade (ainda que eu tenha me esforçado), que fomos conseguimos conversar mais e assim aprofundar a relação. Ensinei ele a jogar dominó e bingo, não faz muito quis começar a tomar chimarrão – meu velho e forte hábito -, e presenteei-o com uma cuia e erva argentina. Hoje segura o choro – não sei se porque aprendeu na escola (ou com pai) que homem não chora, ou porque não se sente confortável em expressar sentimentos -, já tem suas responsabilidades e ainda cobra a própria mãe se não cumpre as dela (correndo o risco de tomar bronca por isso, que às vezes ela se vê sem ação diante do filho que não é mais bebê), e começa a cobrar maior independência – ainda que não faça muito que perdeu o medo de tomar banho sozinho.

Todas essas mudanças não acontecem em seis meses e são muito significativas. Não dá para achar que foi ontem que estávamos no Parque das Aves e ele chorando porque insistíamos que lesse o nome do pássaro. E a cada mês é perceptível que aumenta de tamanho, cada seis meses precisa de calçado novo porque o antigo (não tão antigo) não cabe mais: se ele cresce nessa velocidade, é sinal que o tempo passa na mesma toada – eu que antes não percebia. Não por acaso, minha careca parou de incomodar o tanto que antes incomodava: Vini me fez assumir que outra geração está no mundo, e eu não só perco no video game como já preciso de ajuda com os eletrônicos.

 

Redação

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