Flores negras nos subterrâneos dos brancos [Diálogos com a dança], por Daniel Gorte-Dalmoro

Foto de Zarella Neto

Flores negras nos subterrâneos dos brancos [Diálogos com a dança]

por Daniel Gorte-Dalmoro

O que guardam os subterrâneos de nossa sociedade, de nossa história, de nosso ser? O quanto esses subterrâneos sugam da vida de pessoas tidas por descartáveis, o quanto fertilizam o que os proprietários das terras desejavam que fosse árido e estéril, de fértil basta os lucros do agrobusiness?

Subterrâneo, da Gumboot Dance Brasil, é um espetáculo de lavar a alma, de hipnotizar pelo trabalho de corpo e fazer acreditar que nos subterrâneos da sociedade e da história fervem devires que não enxergamos na superfície – e por isso devemos seguir lutando, a despeito das últimas notícias que tentam nos desalentar.

Dos escravos aos mineiros, a miséria de uma vida transformada em instrumento para o enriquecimento de algumas poucas pessoas e algumas poucas nações se torna em uma cultura rica, potente, forte e delicada, instrumento de afirmação de um povo – um povo difuso, sem limites territoriais e étnicos bem delimitados e por isso muito mais perigoso aos nacionalismos ocidentais.

Os grilhões da escravidão transformados em chocalhos, corpos negros transformados de objetos de trabalho em sujeitos de cultura: a humanidade pulsa e resiste onde homens brancos (e seus asseclas) gostariam que restasse apenas o conformismo e a força bruta instrumentalizada para seus lucros. Se os negros foram forçados a migrar para a América, servir de mão de obra em plantações brancas, que esta terra dê origem a uma nova cultura, de resistência e afirmação, mescla do passado que não conseguiram apagar e de possibilidades de futuro que senhores tentam em vão negar, fermentado nos nos vãos dessa sociedade racista, na luta e no reconhecimento da dor do próximo – é isso que me passa a primeira parte do espetáculo.

Subterrâneo me deu a forte impressão de que, ainda que sem contato direto com os povos andinos, os negros aportados no dito novo mundo souberam fazer do novo solo uma Pachamama: se não há ancestralidades milenares aqui, o suor e o sangue da primeira geração já teria bastado para fazer desta terra um solo sagrado e de pertencimento.

Não por acaso, nestes tempos de golpe e neofascismos, os brasileiros que gritaram e gritam que querem seu país de volta não tem com a terra relação além de mercantil e mal vêem a hora para migrar para alguma terra branca – Miami ou Portugal (esquerdista). Nossa intelectualidade de esquerda, branca, não fica muito longe. Se não se reconhece no chauvinismo de seus pares egressos da academia, na primeira oportunidade tratam de migrar para os países centrais, em seus doutorados sanduíches que se transformam em oportunidade de empregos além-mar. É nos EUA e Europa onde estariam as melhores cabeças, dizem – coincidentemente brancas ou que pensam como brancos. Também eu tenho meus cacoetes de formação branca, e junto da tensão dos gestos e do ritmo do tambor, a primeira parte de Subterrâneo tem uma leveza que me remeteu aos barrocos Vivaldi e Boccherini.

A segunda parte do espetáculo, onde entram em cena mineiros no lugar de escravos, tão brutalizados e instrumentalizados quanto estes, me fez pensar no quanto essa categoria é sintomática do capitalismo: os escravos das Minas Gerais, no século XVIII, que financiaram a revolução industrial na Inglaterra; os escravos não declarados como tal das minas inglesas que sustentaram as indústrias de “seu” país no século XIX, para honra e glória do rei e alguns poucos; os escravos descarados das minas de diamante europeias em solo africano, até 1970 (ou mais), para brilho e glamour de brancos que lucram com suor negro. Se os mineiros ingleses eram brancos, o trabalho nas minas os transformava em negros, a fuligem imprimia-lhes a cor e o rótulo que brancos impingem a negros ou a quem faça trabalhos equivalentes: não-pessoas; descartáveis.

Se hoje a Europa vê a retomada do racismo, convém lembrar que ela não aguentou meio século livre da escravidão (e nenhum ano sem imperialismo): dizem que o Brasil foi último país a abolir a escravidão, meia verdade: quando vemos o que europeus faziam na África – a Diamang, em Angola, por exemplo -, é notável que a Europa manteve escravidão até o último quarto do século XX, mas, como bons civilizados, mantiveram-na longe de suas vistas, de suas cidades, apenas desfrutaram das riquezas extraídas do sangue negro enquanto proferiam belos discursos pela liberdade. O mundo Ocidental civilizado nunca foi contra a escravidão, apenas não gosta dela no seu jardim (o que mostra o atraso civilizacional da elite brasileira e seus patinhos amestrados).

Se vi leveza na primeira parte, na segunda, os mineiros do capitalismo consolidado me pareceram pesados, a tensão sem alívio, a necessidade da ordem militarizada: as botas dos mineiros mimetizando os coturnos dos soldados que os oprimem em nome da ordem e do progresso – sempre com os negros, nunca para os negros. O capitalismo enquanto guerra permanente, em várias frentes: guerra contra os trabalhadores, guerra contra o meio ambiente, a água, a terra, as florestas, as geleiras, os oceanos, os animais de todos os biomas; guerra contra os negros, indígenas e todos que ousam questionar a supremacia do lucro sobre a vida; guerra contra a Vida. Guerra generalizada, ideologicamente ampliada numa guerra de todos contra todos, trabalhadores brancos contra trabalhadores negros, tralhadores homens contra trabalhadores mulheres, trabalhadores nacionais contra trabalhadores migrantes…

Mas em meio a todas essas guerras, Subterrâneo nos mostra que a humanidade resiste e faz frente à desrazão da civilização branca. No melhor do espírito da dialética moderna, mostra que a cultura advinda da escravidão e da exploração negra foi capaz de sublimar a dor e ressignificar o quotidiano, transformando o que era dado por destino em futuro aberto ao devir, o que era submissão e vergonha em afirmação e beleza. Subterrâneo é a afirmação do negativo que muitos tentam negar – a escravidão e a dívida histórica que ainda temos com a população negra – e a afirmação do positivo que a cultura dita superior resiste a aceitar como tendo valor: o quanto as culturas negras, tidas por inferiores, bárbaras, sem refinamento, podem e devem se afirmar, com valor por si ou na sua capacidade antropofágica, em tudo o que pode ampliar os limites estreitos que vêm da Europa e seus imitadores (me recordo do artigo “A tradição viva”, de A. Hampaté Bâ, uma amostra do quanto o mundo perdeu por causa do eurocentrismo, surdo ao outro). Enquanto cultura segura de si, pode ser altiva sem precisar depreciar as outras, não que baste por si, mas por reconhecer a si própria, saber de onde vem, e isso faz com que saiba de seu valor, e do valor de expressão cultural autônoma. Portanto, Subterrâneo não é um tapa na cara dos brancos, é um sopro de vida e alegria para todos abertos a e desejoso da construção de um outro mundo.

10 de setembro de 2018

PS: o espetáculo está em circulação por São Paulo. Infos na página do grupo: www.facebook.com/gumbootdancebrasil/

 
Redação

4 Comentários

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  1. Flores negras nos subterrâneos dos brancos

    Olá Daniel Dalmoro,

    excelente resenha.

    Tenho ganas de ver o espetáculo.

    O racismo, ora explítico ora velado, é uma realidade cruel no Brasil.

    Carlinhos Pereira

    1. Se tiver a oportunidade, não

      Se tiver a oportunidade, não perca! Recomendo muito!

      Também nessa linha, de poética “negra-periféria de afirmação”, está em cartaz até dia 26, no Teatro de Contêiner, na Luz, “Buraquinhos ou O Vento é Inimigo do Picumã”, também recomendadíssimo!

  2. grata

    Grata Dalmoro, sou aluna do lindo RUBÃO como chamamos carinhosamente Rubens Oliveira.

    O trabalho é demais mesmo, todos deveriam assistir.

    A Dança é a Linguagem Universal.

    Parafraseando: o mercado de escravos foi substituído pelo de eleitores. Pierre Bourdieu

  3. Desculpe me, mas gumboot

    Desculpe me, mas gumboot dentro do contexto musical brasileiro…  Eh um desastre!  Dos mais catastroficos.  Nem sequer o tempo eh normal…  E eles o mudam a todos 20 segundos!!!!!

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