Bolsonaro e o novo regime autoritário brasileiro, por Erick Kayser

Sobre o papel do judiciário na guinada autoritária brasileira, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro são indissociáveis.

Bolsonaro e o novo regime autoritário brasileiro, por Erick Kayser

O governo Bolsonaro ultrapassou a marca dos 200 dias de governo e muitas das previsões pessimistas que se faziam antes de sua posse estão se confirmando, para surpresa de quase ninguém. Aparentemente, no entanto, tudo indica que conseguirá concluir o primeiro ano e talvez até ir adiante em seu mandato, pelo menos é o que aponta a ausência de uma campanha popular pelo “Fora Bolsonaro” e o comportamento dos setores que mandam na atual política brasileira. O uso do verbo mandar aqui não é casual. O fechamento democrático, ainda que longe de ser pleno, tampouco pode ser negado.

Um governo com tendências abertamente autoritárias está longe de ser o único elemento que aponta o estreitamento da democracia brasileira, pelo contrário, a presidência de Bolsonaro vem a ser um aprofundamento radical de um processo que já estava em curso no país. As evidências desta regressão democrática abundam e vão desde a perseguição política contra a esquerda através dos aparatos repressivos do Estado indo ao cerceamento da liberdade de expressão, atingindo desde artistas e jornalistas chegando até professores em sala de aula.

A peculiaridade da presente situação com a de nossa experiência autoritária pregressa é que o golpe de 1964 se fez com fuzis e a atual através de um golpe parlamentar. 1964 é explicável através do contexto da guerra fria, onde para “defender o mundo livre” se eliminava a própria liberdade contra a ameaça do avanço do comunismo. A liberdade defendida, na verdade, nunca foi a liberdade política ou em um sentido humanista mais geral, mas sim a liberdade para o capital. Este é novamente o sentido geral que orienta o atual autoritarismo brasileiro, mesmo sem haver qualquer “fantasma soviético” para assombrar a burguesia e a classe média privilegiada. Esta ausência de um inimigo real, contudo, não permaneceu vazio, sendo preenchido ideologicamente por uma nova e inaudita forma de apelo a urgência de soluções autoritárias: o neoliberalismo.

Se até então as experiências brasileiras de governos neoliberais, com Collor e FHC, haviam se dado através de eleições livres, causando a impressão que o neoliberalismo estaria associado a regimes democráticos, sua imposição por vias não democráticas no país neste último período provam o contrário. O programa neoliberal foi derrotado quatro vezes consecutivas pelo sufrágio popular, sem garantias de que poderiam evitar uma nova derrota, os grupos vinculados a esta agenda capitanearam o rompimento do pacto democrático simbolicamente celebrado na Nova República. Este apelo a vias antidemocráticas não é anômalo ao neoliberalismo e nem mesmo uma novidade brasileira. Basta recordarmos que a primeira experiência de um governo neoliberal no mundo iniciou-se em 1973 no Chile, com a ditadura de Augusto Pinochet. Não por acaso, a sangrenta experiência chilena é publicamente assumida como inspiração para Bolsonaro.

Globalmente, para além do caráter patético da figura do atual presidente, o Brasil não é um ponto fora da curva. Desde a crise de 2008, a saída para soluções autoritárias de aprofundamento da agenda neoliberal tem se imposto em inúmeros países. A crise da democracia é um fenômeno que assombra ao ocidente e aos países ocidentalizados. Seus agentes, ainda que com algumas importantes variações locais, atendem a um mesmo padrão: banqueiros, políticos conservadores, grande mídia, grupos ideologicamente vinculados a rede de Think Tanks neoliberais e setores do judiciário imbuídos de ativismo político na aplicação do Law Fare contra opositores desta agenda de reformas radicais e elitistas.

Sobre o papel do judiciário na guinada autoritária brasileira, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro são indissociáveis. Todas as pesquisas anteriores ao impedimento da candidatura de Lula indicavam seu franco favoritismo. O impedimento da candidatura pelo judiciário celebrou a interdição de uma vontade majoritária, naquele momento, na sociedade brasileira. A volta de Lula, por sua liderança, era a esperança para muitos de retirar o país da crise, aprofundada durante o governo Temer. Sem Lula, o caminho para a vitória de Bolsonaro ficou livre, sedimento através de um estranho atentado contra sua vida durante a campanha, quando teria sido vítima de uma facada durante ato de rua em sua campanha. Tamanha ligação entre a proibição da candidatura de Lula e a eleição de Bolsonaro ficou desavergonhadamente exposta com a nomeação de Sérgio Moro, o juiz que condenou Lula a prisão, como ministro da justiça no governo.

Se o golpe que destituiu a presidenta Dilma Rousseff pode ser enquadrado como o marco político que inaugura a virada “pós-democrática” brasileira, a eleição de Bolsonaro, numa conceituação em certa medida clássica, se apresenta como uma contrarrevolução. Uma paradoxal contrarrevolução preventiva, por se dar contra uma revolução popular que não se insinuava no horizonte brasileiro. A intenção mal disfarçada do bolsonarismo é atingir uma condição tal de promover um pleno fechamento autoritário do Brasil e estabelecer a “nova ordem”.

Acreditar, nesta quadra da história, ser possível girar os ponteiros do relógio para trás e voltar a uma situação de “normalidade”, anterior ao caos que hoje impera, soa um tanto quanto ilusório. Ainda que insuficiente, resistir ao avanço pleno do autoritarismo se impõe como única alternativa em termos imediatos. As experiências fascistas no século XX nos trazem importantes exemplos da importância de esforços de unidade política da esquerda e aos setores democráticos da sociedade. Mas segue em aberto como um desafio ainda insolúvel os meios de recuperar alguma ofensividade que permita superar a atual hegemonia do neoliberalismo autoritário, um desafio que transcende a uma eventual derrota do bolsonarismo.

Erick Kayser é doutorando em História pela UFRGS

Redação

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