Algumas observações sobre o capítulo 2 do livro Lawfare

Dando sequência ao esforço de análise que comecei aqui mesmo no GGN https://jornalggn.com.br/justica/algumas-observacoes-sobre-o-capitulo-1-do-livro-lawfare/, farei agora alguns comentários sobre o segundo capítulo da obra Lawfare.

Nesse capítulo Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim se debruçaram sobre as dimensões estratégicas: geografia, armamentos e externalidades.

Eles começam citando Sun Tzu para fazer uma analogia entre a importância da geografia na arte da guerra (escolha do local da batalha) e no lawfare (definição do órgão encarregado de aplicar o direito) e afirmam que “… as regras de competência são frequentemente manipuladas ou subvertidas com a finalidade de facilitar o uso, também manipulado, do armamento, isto é, das normas jurídicas empregadas na guerra jurídica.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 37).

A referência feita a Sun Tzu reforça a preocupação que esbocei no final do texto anterior. Todavia, a um outro autor que não foi objeto de estudo dos autores. Refiro-me obviamente a Nicolau Maquiavel, cuja Arte da Guerra deveria ser objeto de atenção durante o estudo do Lawfare. Mais veremos o que o diplomata florentino tem a nos ensinar.

O segmento em que os autores tratam dos armamentos é primoroso. Eles apresentam ao público brasileiro um bom ensaio acerca dos dois principais diplomas legais norte-americanos utilizados para atormentar pessoas, empresas e Estados fora dos EUA: o Foreing Corruption Practices Act (FCPA) e o Foreign Intelligence Surveillance Act (FISA).

“No tocante ao lawfare, o armamento é representado pelo ato normativo escolhido para vulnerar o inimigo eleito – ou, ainda, pela norma jurídica indevidamente extraída pelo intérprete do texto legal. Entre os diplomas legais mais usados pelos praticantes de lawfare destacam-se s anticorrupção, antiterrorismo e relativos à segurança nacional. Isso ocorre porque tais leis, em regra, veiculam conceitos vagos – manipuláveis facilmente -, ostentam violentas medidas cautelares e investigatórias e vulneram gravemente a imagem do inimigo.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 38)

Preencher conceitos vagos e/ou manipulá-los com o intuito de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar o inimigo, somente é possível com a utilização da linguagem. É aqui que torna-se relevante uma referência à obra de Maquiavel.

“Persuadir ou dissuadir poucos é muito fácil porque, caso as palavras não bastem, podes usar a autoridade e a força, mas a dificuldade é demover uma multidão de uma opinião errada, contrária ou ao bem comum ou à tua opinião; nesse caso, não se podem usar senão as palavras que convêm ser ouvidas quando se quer persuadir a todos. Por isso, seria conveniente que os melhores capitães fossem oradores, pois, sem saber falar a todo o exército, com dificuldade consegue-se fazer algo de bom, o que nos dias de hoje foi absolutamente deixado de lado. Lede a vida de Alexandre Magno e vereis quantas vezes ele teve de arengar e falar publicamente ao exército; de outra forma, jamais o teria conduzido aos desertos da Arábia e à Índia e o tornado rico com inúmeras pilhagens, com tanto desconforto e inconvenientes. Haverá infinitas ocasiões que poderão levar um exército à ruína, caso o capitão não saiba falar ou não faça uso da palavra, porque falar afasta o temor, atiça os ânimos, aumenta a obstinação, encobre os erros, promete prêmios, mostra os perigos e as vias para escapar deles, repreende, roga, ameaça, enche de esperanças, louva, vitupera e faz todas aquelas coisas pelas quais as paixões humanas se apagam ou se acendem. Assim, o principado ou a república que determinassem formar uma nova milícia e dar reputação a esse exercício deveriam habituar seus soldados a ouvir falar o capitão, e o capitão saber falar a eles.” (Arte da Guerra, Maquiavel, Livro Quarto http://almanaquemilitar.com/site/wp-content/uploads/2017/12/A-Arte-da-Guerra-Maquiavel-1.pdf)

A linguagem é uma arma. O uso adequado ou inadequado dela pode fazer a diferença entre a vitória e a derrota. Aquilo que é verdade num campo de batalha pode ser ainda mais verdadeiro no “campo jurídico”, pois no processo (e no seu desdobramento jornalístico) a força é substituída pela argumentação.

Sem o domínio da linguagem é impossível interpretar a norma legal. Preencher os espaços vagos deixados na Lei, criar teses plausíveis ou desmantelar argumentos frágeis e maliciosos é uma arte discursiva. Convencer e não se dar por convencido. Levar adiante a disputa jurídica considerando a derrota uma oportunidade para renovar o discurso e adaptá-lo às necessidades impostas pelo lawfare. Cristiano Zanin e Valeska Martins fizeram isso no caso Lula, mas ao escrever o livro eles não perceberam a utilidade que as palavas de Maquiavel sobre o uso da linguagem na guerra podem ser relevantes nos domínios lawfare.

De maneira geral as explicações dadas acerca do FCPA e do FISA são satisfatórias. Por intermédio deles os EUA “… conseguem ampliar sobremaneira sua jurisdição sobre outros Estados nacionais…” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 49). Os atores listaram 30 empresas molestadas fora de seu território pelos EUA em 2016, 21 em 2017 e 15 em 2018.

Os efeitos extraterritoriais das leis norte-americanas foi considerado um fato consumado durante a Lava Jato. Deltan Dellagnol e Sérgio Moro fizeram acordos nos EUA e o juiz lavajateiro chegou a aplicar uma Lei norte-americana para impedir a utilização, por outros órgãos brasileiros, de provas colhidas na Lava Jato contra os empresários que se tornaram delatores. Esse fato considerado normal por alguns jornalistas causou muito estranhamento no meio jurídico. Aqui mesmo no GGN teci alguns comentários sobre o assunto https://jornalggn.com.br/direitos/hannah-arendt-e-uma-escolha-fundamental-e-dolorosa/.

Não é normal um Estado deixar outro se intrometer em seus assuntos internos. A jurisdição de cada país é limitada pela soberania dos outros. Os norte-americanos não tem o direito de decidir dentro os EUA disputas jurídicas sujeitas à legislação e à jurisdição de outros países. A teoria de que a Lei norte-americana produz efeitos extraterritoriais para alcançar fatos que ocorreram dentro de outro Estado já foi objeto de conflito entre o Brasil e os EUA. Nesse sentido, nunca é demais lembrar a Guerra das Patentes.

Em seu depoimento sobre aquele conflito diplomático entre o Brasil e os EUA, o diplomata Paulo Tarso Flexa de Lima, afirmou que:

“Foi um dos bons casos de contencioso porque ensejou esse panel no GATT. O Brasil teve um ato de coragem de questionar a abrangência do trade bill americano. Foi na época, inclusive, que começaram aquelas interpretações esdruxulas do Willian Barr, que agora á attorney general, de que a legislação americana tinha irradiações extraterritoriais para permitir alcançar o seu eventual infrator fora da jurisdição estritamente territorial dos EUA.” (A Guerra das Patentes, Maria Helena Tachinardi, Paz e Terra, São Paulo, 1993, p. 229)

Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim escreveram uma obra primorosa. Todavia, numa próxima edição eles podem retomar a questão das irradiações extraterritoriais das Leis dos EUA para explicar de maneira detalhada como passamos de uma realidade (a rejeição dessa tese) à outra (a mais absoluta submissão aos efeitos do FCPA e do FISA em processos que prejudicaram a Petrobras, a Embraer e destruíram estaleiros e construtoras brasileiros).

As questões debatidas no capítulo externalidades são muito importantes e evidenciam dois fenômenos. O primeiro é que não pode existir lawfare sem que ocorra uma confusão de papéis que permita ao juízes agirem como se fossem editores jornalísticos (selecionando tanto o que será vazado para imprensa quanto o momento em que isso será feito) e aos jornalistas atuarem como redatores em primeira e última instância da decisão judicial que será muito desejada pelo público (mesmo que ela seja injusta ou proferida à revelia das provas produzidas nos autos por um juiz suspeito ou incompetente). O segundo é a necessidade de um antídoto que permita desfazer, inutilizar ou coibir referida confusão de papéis assim que se evidencie o início de um caso de lawfare.

Os autores do livro comentado mencionaram apenas um tipo de antídoto: aquele que impede ou pune o abuso praticado pelo jornalista ou pela empresa de comunicação (caso da Dinamarca, Finlândia e Inglaterra). “O Brasil, lamentavelmente, é um terreno fértil para a publicação de reportagens falsas, caluniosas e difamadoras, uma vez que não possui um Conselho de Imprensa ou qualquer outro meio eficaz para receber denúncias relativas às condutas ilícitas praticadas pelos veículos de comunicação.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 63).

O outro antídoto contra o lawfare não foi mencionado pelos autores do livro. No Brasil ele seria tanto o CNJ, órgão que pode obrigar o juiz a se limitar a agir dentro do processo respeitando os limites impostos pela legislação, quanto as regras processuais que impedem o juiz de atuar no processo sempre que se torne suspeito em razão de utilizar a imprensa para legitimar decisões absurdas, ilegais ou injustas. No caso específico da Lava Jato a experiência de Cristiano Zanin e Valeska Martins deve ter sido frustrante, pois até a presente data todos os juízes que julgaram a suspeição de Sérgio Moro ignoraram o fato dele ter agido como editor jornalístico da Lava Jato para prejudicar o réu famoso que ele condenou em troca do Ministério da Justiça.

No mais recomendo aos interessados a leitura do livro, pois é preciso conhecer em detalhes as externalidades que viabilizam o lawfare. “Elas envolvem guerra de informações (Information Warfare), operações psicológicas (PSYOPS) e operações de ilusão (deception). As externalidades buscam manipular a verdade e provocar estímulos artificiais na sociedade, além de desorientar e desacreditar o inimigo eleito.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 72).

No capítulo 2 do livro analisado, os autores situaram o lawfare no espaço simbólico e geográfico. E já que estamos falando de espaço, nunca é demais lembrar que:

“Schmitt nos lembra que o espaço não é apenas uma arquitetura para o poder, mas a acena da imaginação e dos imaginários políticos. Ordenamentos humanos do espaço e os significados atribuídos a esses ordenamentos moldam nossas conceituações de quem e do que somos, especialmente a vida com os outros. Esses ordenamentos podem pôr em primeiro plano localidades hemisféricas ou características topográficas: uma nação perde seu mar em acordos de pós-guerra, uma represa transforma um rio em lago, um bairro é cindido pela construção de uma rodovia ou de um muro. Mas eles também apresentam designações do espaço público e privado, de espaço de gênero, de espaço racializado e muito mais. Sabemos disso a partir de protestos que vão desde Little Rock até Gezi Park, da privatização de terras públicas às lutas contra a gentrificação e pela criação de banheiros de gênero neutro. Nós não apenas vivemos em territórios marcados, mas também desenvolvemos imaginários políticos em comum (ou a falta dele) a partir da semiótica espacial.” (Nas ruínas do neoliberalismo – a ascensão política antidemocrática no ocidente, Wendy Brown, editora Politeia, São Paulo, outubro de 2019, p. 64)

Ao que parece, o Lawfare e sua irmã siamesa (a irradiação extraterritorial do FCPA e do FISA para alcançar pessoas e empresas fora da jurisdição estritamente territorial dos EUA) são dois fenômenos intimamente relacionados com o neoliberalismo. Essa forma particularmente destrutiva do capitalismo, que nasceu na era Ronald Reagan/Margaret Thatcher, rejeita o Estado e expande o mercado para dentro da esfera pública de onde a questão social e a democracia foram sendo expulsas. Foi a racionalidade neoliberal que possibilitou as deformações espaciais simbólicas e geográficas que fragilizaram os conceitos jurídicos de soberania, jurisdição e competência empregados pelas legislações nacionais e que tem sido acintosamente rejeitados pelos protagonistas e defensores do Lawfare? Numa próxima edição do livro Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim poderão se debruçar sobre essa questão.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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