Considerações sobre a PEC bolsonariana da escravidão pós-moderna, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Os membros da bancada dos caloteiros ficam especialmente irritados quando seu patrimônio pessoal sofre algum tipo de constrição para pagar débitos trabalhistas

Considerações sobre a PEC bolsonariana da escravidão pós-moderna

por Fábio de Oliveira Ribeiro

“Acho que o governo brasileiro vai proclamar a escravidão. É o que comecei a pensar a partir do momento em que minha eficiente secretária Francelina elaborou sobre o assunto,. Logo depois de me ter entregue sua sinopse dos jornais.” (Diário do Brasil, Flávio Rangel, Editora Paz e Terra, São Paulo, 1982, p. 19)

Assim começa uma crônica de Flávio Rangel publicada na Folha de São Paulo no início dos anos 1980. Em 2018 fomos sugados por urnas eletrônicas que parecem ter sido projetadas e construídas por especialistas em física quântica. Em 2019 emergimos delas em outra década. As eleições brasileiras nos fizeram retornar ao passado. Portanto, a atualidade do texto transcrito no início me parece evidente.

Aqui mesmo no GGN já fiz algumas considerações acerca da necessidade de preservação da Justiça do Trabalho. Volto ao assunto por causa da apresentação de uma PEC que extingue esse ramo do Poder Judiciário brasileiro.

Na justificativa apresentada para a proposta, o deputado Paulo Eduardo Martins (PSC-PR) apresentou vários argumentos. As questões mais importantes, entretanto, não foram enfrentadas pelo parlamentar. Ele preserva o direito dos empregados de ajuizar processos contra seus empregadores, mas isso somente poderia ser feito na Justiça Comum.

Não se trata de uma reestruturação das relações do trabalho. O Brasil continuará adotando o “…modelo da administração dos conflitos…”, em que “…o empregado tem uma série de garantias legais, mas não assume o risco da atividade econômica e não participa da administração da empresa.”  A proposta apenas desloca a competência para resolver disputas trabalhistas da esfera Federal para a Estadual.

Tal como apresentada essa PEC pode ser considerada uma vingança da “bancada dos caloteiros”. É pública e notória a existência de dezenas de deputados e senadores que estão acostumados a prejudicar seus empregados. Alguns deles já foram acusados de cometer o crime de manter escravos, o que explica o ódio que eles também devotam ao Ministério Público do Trabalho.

A liquidação de uma execução na Justiça Comum estadual pode se arrastar por vários anos. Algumas levam dezenas de anos para ser resolvidas. Um processo famoso levou mais de 120 anos para ser resolvido. A realidade na Justiça do Trabalho é muito diferente:

O tempo médio entre o ajuizamento de uma ação e o seu encerramento demonstra que, no TST, esse prazo foi de 1 ano, 7 meses e 1 dia; nos Tribunais Regionais do Trabalho, de 9 meses e 22 dias e, nas Varas do Trabalho, de 8 meses e 24 dias na fase de conhecimento e de 3 anos, 6 meses e 13 dias na fase de execução.”

Os membros da bancada dos caloteiros ficam especialmente irritados quando seu patrimônio pessoal sofre algum tipo de constrição para pagar débitos trabalhistas. Portanto, o verdadeiro defeito da Justiça do Trabalho é a sua eficiência. Apenas os políticos e empregadores caloteiros querem sua extinção. Mas essa é uma justificativa que o autor da PEC não teve coragem de mencionar.

Uma outra justificativa para deslocar a competência para a Justiça Comum é a influência que os deputados podem ter sobre os juízes que atuam nas comarcas em que eles mantém seus negócios. A Justiça Comum estadual é historicamente mais vulnerável às pressões locais do que a Justiça Federal e do que a Justiça do Trabalho.

Os governadores estão em condições de chantagear os Tribunais de Justiça dos seus respectivos Estados. Em trocas de favores orçamentários, os TJs podem ser convencidos a suprimir a liberdade de ação dos juízes de primeira instância “nos casos trabalhistas sensíveis” em que existam interesses patrimoniais pessoais dos deputados e senadores caloteiros. Nada disso é possível em virtude da organização federal da Justiça do Trabalho.

A crônica de Flávio Rangel problematiza a crise econômica, o endividamento externo e as consequências deletérias das decisões tomadas por Delfim Neto. No final do texto, o narrador contesta sua secretária.

O Grande Planejador “Certamente planejará alguma coisa para impedir a escravidão.” Ao que a secretária replica “…ele não pode planejar nada porque está passeando na ponte. Olha aí a seção Frases do jornal onde o senhor trabalho: ‘Agora que estamos atravessando a ponto, não é hora de voltar atrás’. Ele fica contemplando o panorama visto da ponte, olhando pra outra margem, e não vê a gente aqui embaixo se afogando no rio.” (Diário do Brasil, Flávio Rangel, Editora Paz e Terra, São Paulo, 1982, p. 21)

A secretária sai de cena. Ela “…desceu pra combinar com as empregadas do prédio a resistência à escravidão.” (Diário do Brasil, Flávio Rangel, Editora Paz e Terra, São Paulo, 1982, p. 21). Ao que parece o deputado Paulo Eduardo Martins (PSC-PR) vai obrigar os trabalhadores brasileiros a fazerem o mesmo que o personagem de Flávio Rangel. Quando dezenas de milhares deles ocuparem os prédios e as mansões em que os deputados e senadores escravocratas se escondem ninguém ficará surpreso ou triste.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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