Os segredos de Pindorama, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O mal estar causado pelo The Intercept é a única novidade. O Brasil finalmente está grávido. Não sabemos exatamente o que vai nascer, mas é evidente que nunca mais será possível ao Judiciário conservar a imobilidade social administrando segredos.

Os segredos de Pindorama, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Ao Direito, um método de solução pacífica dos conflitos intersubjetivos, repugna o segredo. Na guerra, entretanto, o segredo pode ser essencial. Citarei aqui apenas um episódio antigo para elucidar essa afirmação. Ele ocorreu durante a II Guerra Púnica.

Quando soube que Asdrúbal seguia ao encontro do seu irmão na Úmbria, o cônsul romano Cláudio Nero decidiu marchar com parte de suas tropas para reforçar o acampamento do seu colega de consulado a fim de surpreender o comandante cartaginês. Após marcharem vários dias parando apenas para um repouso, os soldados comandados por Nero chegaram próximo ao local onde Marco Lívio estava acampado.

Antes de entrar no acampamento de Lívio, entretanto, Cláudio Nero interrompeu a marcha. Ele despachou mensageiros para informar que pretendia fazer a aproximação final em segredo durante a noite. O episódio é narrado assim por Tito Lívio:

“Ordenara Lívio que, em seu acampamento, cada tribuno recebesse um tribuno de Cláudio, cada centurião um centurião, cada cavaleiro um cavaleiro, cada infante um infante. Não era preciso, dizia-se, aumentar o acampamento, pois o inimigo poderia aperceber-se da chegada do outro cônsul. Por outro lado, o fato de concentrar maior número de homens no estreito espaço onde montavam suas tendas não ofereceria problemas, porquanto o exército de Cláudio, em sua expedição, levava apenas as armas. Entretanto, em caminho, sua coluna engrossara com o afluxo de voluntários, geralmente veteranos que já haviam dado baixa ou jovens que disputavam sua vez de dar o nome, e dos quais foram aceitos aqueles que, pelo aspecto físico e vigor, pareciam aptos ao serviço militar. O acampamento de Lívio era perto de Sena [Sena Gallica, atual Senagália] e cerca de quinhentos passos apenas o separavam de Asdrúbal. Por isso Cláudio Nero, ao aproximar-se, fez alto por trás das colinas, não tencionando entrar no acampamento antes do cair da noite. A entrada foi feita em silêncio, cada homem foi conduzido por outro da mesma patente para sua tenda, na condição de hóspede. A alegria foi geral.” (Ab Urbe Condita Libri, terceiro volume, Tito Lívio, Paumape, São Paulo, 1990, p. 427/428)

Essa junção em segredo dos exércitos comandados por Cláudio Nero e Marco Lívio foi decisiva para a vitória esmagadora que os romanos obtiveram sobre os cartagineses. Quando percebeu que enfrentaria um exército muito maior do que imaginava Asdrúbal já não podia fugir da batalha em que perdeu seu exército e a vida.

Leonel Brizola dizia que “A política ama a traição e odeia os traidores”. Ele tinha toda razão. Numa democracia os grupos que disputam o poder agem em público, mas definem sua estratégia em segredo. Descobrir o que o adversário está tramando pode conferir uma vantagem comparativa nos embates parlamentares. Mas nos processos judiciais esse princípio não pode ser aplicado.

Tudo o que ocorre no processo deve ser público. O procurador e o juiz não podem, em segredo, coordenar seus esforços para prejudicar a defesa. Ao fazer isso eles causam uma nulidade absoluta em virtude de transformarem o devido processo legal num simulacro. Os direitos do réu não podem ser ignorados, reduzidos, pisoteados ou simplesmente contornados sem que isso produza uma consequência jurídica em benefício dele.

Os conflitos intersubjetivos e interpartidários também são guerras. Mas quando chegam ao judiciário elas devem ser resolvidas estritamente de acordo com as regras partilhadas por todos. Caso contrário, a decisão não será capaz de pacificar a sociedade. A linha que separa uma guerra política de uma guerra civil é sempre muito tênue. Se ela for cruzada por causa dos procuradores e dos juízes nem mesmo eles conseguirão deixar de sofrer as consequências indesejadas de um conflito armado.

O The Intercept forneceu provas de que Sérgio Moro e Deltan Dellagnol agiam em segredo para prejudicar Lula. Quando o segredo deles foi descoberto eles repudiaram como falsas as informações divulgadas pelo jornalista Glenn Greenwald Entretanto, ambos se recusam a entregar os telefones para a perícia.

Se não estão mentindo ou não tem nada a esconder, os heróis lavajateiros já deveriam ter colaborado para esclarecer os fatos. Mas eles se apegam doentiamente aos seus telefones. Ao fazer isso eles alimentam a nuvem de desconfiança cada vez maior que paira sobre o processo do Triplex e de toda a Lava Jato.

Sérgio Moro e Deltan Dellagnol agem como se estivessem em guerra, como se fossem obrigados a preservar um segredo. Todavia, a preservação do sigilo telefônico deles vai operar efeitos em benefício de Lula. Eles conhecem Direito o suficiente para saber disso. Portanto, devemos concluir que os heróis lavajateiros podem estar esperando um reforço que chegará em segredo para ajudá-los a sair do buraco em que eles se meteram.

É tentador comparar a situação de Lula com a de Asdrúbal e a da dupla Dellagnol e Moro com a situação de Cláudio Nero e Marco Lívio. O problema é que há sempre uma diferença qualitativa entre uma guerra finda cujo resultado é conhecido e um conflito que não chegará ao fim nem mesmo se Lula for solto e os heróis lavajateiros forem presos.

Esse episódio é parte integrante de um conflito muito maior. A origem dele é, sem dúvida alguma, a violência, a exclusão e a exploração dos índios, dos escravos e dos seus descendentes pelos colonos portugueses e seus descendentes. No Brasil o conflito social não é uma consequência de disputas políticas. Ele é um projeto de poder permanente que assume formas diferentes ao longo do tempo.

Enquanto o tecido social brasileiro não for inteiramente rasgado por uma guerra civil ou cuidadosamente suturado com Justiça cada processo como o do Triplex nos colocará à beira de um cataclismo. É inútil acreditar que o Judiciário brasileiro será capaz de distribuir essa Justiça. Ele foi não construído não para fazer isso, nem poderá evitar o cataclismo.

O que o Judiciário tem feito desde sempre é estimular a conciliação de classes. Quando nenhum o acordo político não é possível, ele se coloca firmemente ao lado dos poderosos. Isso explica porque os juízes brasileiros têm uma predileção pela administração dos segredos.

A conduta de Sérgio Moro diante do escândalo provocado pelas informações publicadas pelo The Intercept é idêntica àquela que foi adotada quando o STF mandou lacrar as HDs dos computadores do banqueiro Daniel Dantas. Assim como as informações sensíveis da Operação Satiagraha se tornaram sigilosas, as mensagens que Sérgio Moro e Deltan Dellagnol trocaram ou deixaram de trocar não podem se tornar públicas?

No Brasil existe um conflito simbólico que estrutura o funcionamento do Estado. Ele não é entre Lula e Sérgio Moro, entre Marco Aurélio de Mello e Luiz Fux, nem entre a Lava Jato e a esquerda (essas são meras aparições transitórias do verdadeiro fenômeno). Esse conflito é entre a realidade e sua percepção. Ao respeitável público é negado o direito de conhecer toda a realidade. Apenas os fragmentos dela se tornam conhecidos. Quando há risco da verdade dominar o espaço político o Judiciário não se coloca apenas contra o Direito, ele se levanta como um obstáculo à percepção da realidade factual.

As HDs dos computadores de Daniel Dantas foram lacradas. Ninguém ousa expedir uma ordem judicial obrigando Sérgio Moro e Deltan Dellagnol a entregar, sob pena de prisão, seus celulares à Polícia Federal. Se a PF prender um hacker qualquer e ele disser que produziu os chats antes de entregá-los ao The Intercetpt nunca saberemos a verdade. O procurador e o juiz lavajateiros se tornaram os únicos guardiões do que realmente fizeram longe dos olhos do público, assim como o STF guardou a sete chaves os segredos de Daniel Dantas.

A suspensão da investigação das atividades financeiras de Flávio Bolsonaro a mando do presidente do STF, a impossibilidade de encontrar o verdadeiro responsável pela morte de Marielle Franco e o encerramento pelo TSE do processo sobre as Fake News que elegeram Bolsonaro comprovam o que foi dito aqui. Os encontros “discretos” entre o Ministro do STF Luis Barroso e a dupla Deltan Dellagnol e Sérgio Moro podem ser inseridos nesse contexto, pois não? A verdade nua e crua é dolorosa. Um Judiciário que administra segredos não pode distribuir Justiça.

Cláudio Nero chegou por trás das colinas e entrou no acampamento de Marco Lívio durante a noite em segredo. Sem saber, Asdrúbal já havia sido foi derrotado antes de organizar seu exército para a batalha. Os segredos estão destruindo a democracia brasileira desde a interrupção da Operação Satiagraha “com o Supremo com tudo”.

O mal estar causado pelo The Intercept é a única novidade. O Brasil finalmente está grávido. Não sabemos exatamente o que vai nascer, mas é evidente que nunca mais será possível ao Judiciário conservar a imobilidade social administrando segredos. Aliás, nesse momento não adiantará nada a PF aplicar o golpe do hacker arrependido para tentar legitimar a Lava Jato. O Estado já não pode mais definir os limites dos debates que irão incendiar a arena política e eventualmente algumas repartições públicas.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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