Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
[email protected]

É a ideia de futuro que deve definir o que fazer hoje, por Ion de Andrade

Não se trata de restaurar o que existia antes, mas de refundar no Brasil um novo Estado, democrático, includente e socialmente responsável, sustentado por ampla base social.

É a ideia de futuro que deve definir o que fazer hoje, por Ion de Andrade

Prever o que vai ocorrer num país complexo como o Brasil é tarefa praticamente impossível, principalmente quando o objeto da previsão é o médio prazo.

No curto prazo sabemos que o ambiente político continuará a produzir esse material nauseoso e surpreendente dia após dia. É desnecessário aprofundar.

No longo prazo também não parece haver grandes dificuldades em imaginar que o cenário será outro e que o contexto atual poderá, inclusive, ter atuado para consolidar a democracia, papel que o sentimento de horror ao nazi-fascismo desempenhou na Europa do pós guerra onde passou a ser sinônimo do que não deveria ser feito.

De fato, o Estado social europeu da segunda metade do século XX, em certa medida, consolidou-se como o contrário do que propunham Hitler e Mussolini. Esse Estado social, aliás, foi bem diferente do que existia na primeira metade do século passado, período em que apesar de a esquerda até ter podido chegar ao Poder, como ocorreu excepcionalmente na França de 1936 a 1938, com o Front Populaire, permaneceu como um Estado autoritário e excludente, o que pode ser comprovado por vasto testemunho histórico de repressão brutal às greves ou pelo trabalho infantil que só veio a ser completamente banido nos anos 1950.

O fascismo obrigou às sociedades que o enfrentaram a identificar valores civilizatórios comuns que sedimentaram pactos nacionais em favor de sociedades de direitos, da redução das desigualdades e de mais civilidade.

Nessa ordem de ideias, é provável que a etapa que se seguirá à atual no Brasil venha preenchida de conteúdos que são completamente opostos aos que enxergamos hoje e que o país:

a.    Tenha se tornado mais afirmativo na redução das desigualdades (recente fala de Armínio Fraga ou de Luciano Huck mostram surpreendente ampliação do suporte a essa tese);

b.    Pratique uma Política Ambiental responsável;

c.    Invista pesadamente na ciência e tecnologia;

d.    Valorize as suas universidades;

e.    Proteja as suas riquezas;

f.     Desenvolva política externa afirmativa;

g.    Consolide laços regionais;

h.    Incorpore suas periferias à contemporaneidade;

i.      Tenha práticas policiais humanizadas e respeitosas da dignidade das pessoas, etc, etc, etc.

A diferença entre essa etapa futura e a etapa pós Constituinte de 1988 é que a sua força motriz não estará mais assentada num arco de forças centrado apenas na esquerda, mas terá se tornado, num processo de rejeição geral à extrema direita, um novo consenso nacional mais garantidor de direitos e de redução das desigualdades. Esse receituário civilizatório, aliás, poderá cobrar seu preço aos que o desrespeitaram mostrando que ele não se impôs ao longo do século XX por obra do acaso, sobretudo porque foi conquista das lutas do povo brasileiro em momento de miséria material e espiritual piores do que as de hoje…

Permanece, portanto, como sombra insondável à análise o que toca ao médio prazo, ou seja, ao como ocorrerá e em que momento a transição entre o quadro atual, que vislumbramos no curto prazo, e o quadro futuro, que parece uma necessidade histórica no longo prazo. É impossível também saber que custos essa transição cobrará aos brasileiros já que na Europa eles foram gigantescos.

Para que serve essa reflexão? Para sairmos da verdadeira ditadura do curto prazo.

Se temos uma ideia aproximada de como será esse futuro, temos que estudar que ações devem ser desenvolvidas hoje para apressar a sua materialização que parece ser o horizonte mais provável. Devemos identificar que forças participarão dele, que princípios fundadores cimentarão a nossa sociedade e construir esses consensos no plano das ideias, porque “antes de fazer o homem concebe”.

Não se trata de restaurar o que existia antes, mas de refundar no Brasil um novo Estado, democrático, includente e socialmente responsável, sustentado por ampla base social.

A tarefa é hercúlea, mas ela tem a seu favor o fato de que essa reengenharia pode ser, quando engrenar, galvanizadora de imensa mobilização cívica.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador