Entrevista com Henrique Meirelles

‘A quebra do Lehman não era inevitável. Foi um choque’, diz Henrique Meirelles

  • Desde março de 2012 à frente do Conselho Consultivo da J&F, o ex-presidente do Banco Central aceitou quebrar o longo jejum de entrevistas e, por 1h20m, falou sobre a crise de 2008
  • Dá detalhes da rotina daqueles dias tensos e alerta para os riscos do déficit externo e da inflação hoje

Henrique Meirelles
Foto: Eliaria Andrade / Eliária Andrade

Henrique Meirelles Eliaria Andrade / Eliária Andrade

São Paulo— Para Meirelles, o mais grave foi ver o crédito interno secar. Quem queria comprar carro financiado não conseguia. Em janeiro de 2009, o pior já tinha passado.

Desde o dia da quebra do Lehman Brothers, o que mais marcou o senhor naquele setembro? Até que ponto o senhor sabia que a crise estava se avizinhando?

Tínhamos uma crise nos EUA e início do mesmo problema na Europa, também com excesso de alavancagem e risco de crédito tomado pelos bancos. Os canais de transmissão para os países emergentes eram via comércio. E, moderadamente, nas linhas de crédito. Até agosto de 2008, a rolagem das linhas internacionais pelo Brasil estava em cerca de 120% dos vencimentos. Caiu para 20%. É importante entender que a quebra do Lehman não foi um processo natural, que viria inevitavelmente. Existia um acordo informal entre as autoridades responsáveis pela estabilidade financeira de que não se deixaria quebrar instituições importantes. Quando houve a quebra do Bear Stearns, com US$ 29 bilhões de créditos questionáveis, o JPMorgan absorveu o banco e o Fed garantiu. Quando o Lehman teve problema, o Fed entendeu que não era mais viável repetir a solução. A carteira era de US$ 75 bilhões. Ficou acertado que as 15 maiores instituições americanas comprariam a carteira, sem garantia do Fed. E o Barclays ficaria com o Lehman, sem a carteira. O acordo foi fechado no domingo de manhã. No entanto, o Financial Service Authority (FSA) inglês ligou para as autoridades americanas e disse que não aprovaria. Foi um choque e uma absoluta surpresa para as autoridades americanas, europeias e do mundo todo. As empresas que tinham empréstimos externos passaram a tomar crédito em reais nos bancos, para liquidar as linhas externas. É o caso de uma grande estatal (a Petrobras) que foi à CEF e tomou R$ 2 bilhões. E houve a crise dos derivativos tóxicos. Não havia dinheiro para passar aos bancos menores. O cidadão que entrava em uma revenda para comprar carro entre outubro e dezembro, não encontrava financiamento. Ele se assustou e não comprou mais nada. A produção industrial caiu 20% em dois meses e o Brasil perdeu 800 mil postos de trabalho. Era esse o quadro, gravíssimo.

Qual foi o momento mais crítico?

Quando houve a paralisação do crédito. Primeiro do crédito internacional para o Brasil e, depois, dos financiamentos aqui. O Fed (BC americano) passou a oferecer linhas de liquidez para os BC Europeu, o Bank of England, o Bank of Canada, e o Banco do Japão. Não estendeu a linha para os emergentes. Eu próprio discuti essa reação à crise, naquele domingo à tarde e na segunda-feira com o Fed e outros BCs. Fui a Nova York imediatamente. No consulado brasileiro em NY, enquanto os demais emergentes reclamavam, anunciei que íamos emprestar reservas. Após um trabalho duro, abriram linhas para Brasil, México e Coreia do Sul. Assinamos para ter aquele dinheiro disponível, mas não usamos porque nossa estratégia de reservas funcionou muito bem. O México usou.

Quando esse problema de liquidez se agravou?

A crise de liquidez em reais atingiu o seu pico durante a reunião do FMI em Washington. A reunião foi no sábado (dia 11 de outubro), eu participei e voltei ao Brasil. No domingo, convoquei reunião de diretoria do BC em São Paulo e tomamos a decisão de liberar compulsório. Direcionamos a maior parte para bancos menores. Não obrigamos ninguém a emprestar, mas o dinheiro ficaria no BC a taxa zero.

Era o jeito de destravar o mercado?

E destravou, destravou violentamente. O terceiro problema era o dos derivativos. Configurou-se um córner clássico, em que especuladores do mundo todo vieram para o Brasil operar contra o real.

Teve um grande hedge fund que apostou fortemente contra o Brasil…

Teve, mais de um. Era uma situação muito mais aguda do que agora. Chamei outra entrevista no BC em São Paulo e anunciei que iria vender até U$ 50 bilhões em derivativos.

Havia várias empresas grandes com sérios problemas com derivativos.

O problema não era só as empresas. Com uma volatilidade daquelas, quem ia tomar crédito? Ninguém investia no Brasil. Da mesma maneira como o governo está enfrentando hoje a volatilidade do câmbio. Você não pode deixar o mercado entrar em córner. Tínhamos feito operações de mais de US$ 22 bilhões. A concessão de crédito voltou no início de dezembro e, quando o Ministério da Fazenda anunciou a desoneração do IPI para automóveis, o cidadão voltou às revendas e já encontrou crédito.

O presidente Lula disse que a tsunami da crise lá fora produziria aqui só uma “marolinha”. Essas declarações atrapalhavam?

Do meu ponto de vista, isso nunca foi um grande problema porque não existia interesse em semear pânico. Tínhamos reservas (mais de US$ 200 bilhões). Tínhamos compulsório (R$ 260 bilhões). E tínhamos posição longa em derivativos, que seria o equivalente a ter dólares no mercado futuro. E o sistema financeiro estava sólido. Nunca achei que havia razão para pânico. As medidas foram tão agressivas e bem-sucedidas que gerou aquele episódio, em 2009, quando entrei na reunião dos presidente dos bancos centrais, no BIS (em Basileia), e, para minha surpresa e embaraço, eles levantaram-se e me aplaudiram de pé.

Em que momento respirou aliviado?

Emprestamos reservas e fizemos leilões bem-sucedidos. O dólar chegou a R$ 2,45 e foi caindo até R$ 2,11. Não foi de uma vez, mas foi rápido. Isso foi uma primeira vitória importante. Mas essa queda veio quando anunciamos que iríamos colocar US$ 50 bilhões em derivativos. Tive a primeira sensação de que o pior já tinha passado quando a concessão de crédito voltou à normalidade, no início de dezembro. Mas a atividade ainda estava baixa. Fiz então um trabalho muito grande de me reunir com setores industriais, da Anfavea (fabricantes de veículos) e da Fenabrave (dos revendedores), que estavam em pânico. E disse: “Olha, o crédito já está restaurado. Quem não retomar a produção rapidamente vai perder mercado. A demanda vai voltar”. E voltou fortemente, em janeiro (de 2009). Quando a economia começou a retomar já na segunda semana de janeiro, já fiquei relativamente tranquilo.

Há uma nova bolha a caminho?

O (Alan) Greenspan (então presidente do Fed) já dizia: “você só descobre a bolha depois que ela estourou”. O que quero dizer é que você não deve induzir a bolha. Se você olhar a crise da internet, de 2000, foi clássico. O excesso de liquidez do fim dos anos 90 gerou a bolha da internet. No dia em que o Fed moderou um pouco, estourou a bolha da internet. Depois, veio o 11 de setembro. Aí, o Fed deu liquidez de novo, violentamente, e gerou a bolha imobiliária. Estourou. E voltou a dar liquidez para sair da crise.

A crise de 2008 foi filhote da crise do atentado das torres gêmeas?

Sim, eu não tenho dúvida. E da bolha da internet. O problema não é a injeção de liquidez ou a política fiscal contracíclica. É que as pessoas confundem isso com a demooora (sic) na retirada dos estímulos. Qual foi o segredo do Brasil em 2008? Reverter as medidas logo. Tudo o que emprestamos de reservas cobramos ao longo de 2009. E o que aumentamos de liquidez em reais recolhemos de volta no início de 2010.

Quais os riscos para o Brasil?

Temos reservas, um mercado de consumo muito forte, um sistema financeiro ainda muito saudável. A dívida externa pública é pequena. Mesmo a dívida externa total, em relação às reservas, é menor. Agora, o motivo da turbulência um pouco maior é justamente a evolução do déficit em conta corrente nos últimos dois anos.

Está em 3,4% do PIB. É preocupante?

De fato, mas a trajetória indica que chegaria acima de 4%. Aí começaria a entrar no terreno da vulnerabilidade. Uma boa parte da volatilidade (do câmbio atualmente) é isso. A outra parte é a queda dos investimentos (externos) no Brasil, a queda do crescimento e a quebra na confiança.

O Brasil não está conseguindo financiar esse déficit externo…

Temos condições de enfrentar. A própria depreciação cambial pode ajudar, desde que ela não seja transmitida para a inflação.

Mas para segurar a inflação, só a alta de juros aí não é suficiente…

A alta de juros controla. Mas, dependendo da situação fiscal, ela tem que ser muito maior. A economia se equilibra a maior ou menor custo para a sociedade. Vejamos a Espanha. Ela não pode depreciar (o euro), mas fez política de austeridade, elevou desemprego, gerou queda nominal de salário e, portanto, de custos. A Espanha está de novo competitiva. Portugal, idem. A Embraer não está fazendo asa de avião lá?

No nosso caso, há uma crise de confiança, eleições presidenciais no horizonte, manifestações de rua. Em que medida isso atrapalha ou acelera o processo de ajuste?

Não atrapalha, mas custa mais. Você pode enfrentar com medidas de racionalidade econômica, de confiança. Por exemplo, com uma série bem-sucedida de leilões (de infraestrutura).

Em algum momento, o senhor pensou em deixar o governo?

Não. Eu tinha um trabalho grande a ser feito, durante o ano de 2009 e eu fiz.

Quando o ministro Mantega deu declaração à imprensa dizendo que o presidente Lula não autorizava o BC a usar reservas para debelar a crise, consta que o senhor teria decidido se demitir. É verdade?

O presidente Lula e eu tínhamos chegado a um acordo de autonomia do Banco Central em dezembro de 2002. Ele e eu honramos o acordo o tempo todo. Nunca tive dúvida de que as medidas necessárias seriam tomadas. E foram.

O senhor tinha o aval dele?

Não havia aval a cada medida. É evidente que o presidente da República tinha o direito de demitir o presidente do Banco Central. E ele não o exerceu até o fim do governo. Então, aprovou.

Houve um avanço institucional muito grande que nos permitiu chegar até aqui…

Não há dúvida. Até porque a sociedade aprendeu o valor do poder de compra da moeda. Antes de assumirmos, a inflação em novembro de 2002 era de 2,2%. A sociedade brasileira dá valor à estabilidade. Haja vista as manifestações de rua, as pesquisas eleitorais…

E quem não dá valor?

As estruturas reagem à sociedade. Por exemplo, o Bundesbank (BC alemão) tem toda uma lei que garante a autonomia do Banco Central. Mas o que dava aquela estabilidade na Alemanha? Era a experiência do povo alemão com a hiperinflação. Você não pode brincar com inflação, você perde a eleição.

 

Redação

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