Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Podemos fazer mais?, por Ion de Andrade

Foto: Paulo Pinto/Agência PT

Por Ion de Andrade

Entrando na discussão de Fernando Horta e Luis Felipe Miguel

As discussões na esquerda e no campo democrático em torno da agenda de um próximo governo Lula vêm tendo o mérito de induzir a uma reflexão sobre alcance e limites da era trabalhista e fazem parte de um exercício de balanço autocrítico mas também diagnóstico desse período, cuja compreensão é crucial para que possamos ir adiante. Vou abordar aqui três vertentes que me parecem representativas da formulação da esquerda e do campo democrático da atualidade e eu as criticarei construtivamente em busca de horizontes de consenso e retomada. Então vou abordar essa temática do “fazer mais” por um ângulo diferente dos meus predecessores.

A teoria do fim da conciliação de classes e da politização pelo discurso

Há segmentos da esquerda que, enxergando nas concessões feitas à direita, as razões mais profundas da nossa derrocada, concluem pela necessidade de um basta àquilo que denominam de “conciliação de classes” e, apesar de pouco claro no que toca ao significado real e objetivo disto, apontam para a necessidade de uma radicalização. Reconhecem que os avanços da era Lula ficaram excessivamente concentrados na renda e que teria sido necessário politizar as massas, embora tampouco sejam claros sobre como fazê-lo. À primeira leitura radicalização e politização parecem apontar para a adoção de um discurso mais à esquerda, o que não somente não explicita uma agenda de governo, como também parece ter pouco fôlego no alcance dos seus propósitos porque o povo se politiza pela leitura que faz do seu cotidiano muito mais do que pela doutrinação ideológica.

O economicismo

Outros segmentos vêm apostando na construção de consensos programáticos capazes de assegurar uma ampliação da base de apoios a um futuro governo Lula em torno de uma agenda desenvolvimentista e garantidora das conquistas sociais e trabalhistas e alicerçada no fortalecimento do mercado interno e na irradiação de uma política externa Sul-Sul. Bresser Pereira é um desses articuladores e enunciou há pouco tempo uma agenda com esse propósito, cujo primeiro ponto foi, para minha perplexidade, o da política de juros.

Ações programáticas não organicamente estruturadas

A iniciativa possivelmente mais consistente da programação dessa nova retomada vem da Frente Brasil Popular que elaborou um elenco de propostas necessárias e colhidas de forma participativa entre os movimentos sociais e partidos políticos que a compõem, algo que temos que reconhecer como importantíssimo e inovador. Entretanto, esse conjunto de propostas têm, a meu ver, uma lacuna (a) de forma no estabelecimento da consistência operacional das propostas que ainda estão sob a forma de uma colcha de retalhos, devendo obrigatoriamente ser ainda convertidas num todo organicamente estruturado e ancoradas num teatro de operações capaz de converter a colcha de retalhos numa “ideia força” (explicitarei mais adiante) e (b) de mérito por estarem concentradas excessivamente nas questões de sobrevivência (escola, creche, educação, segurança) não adentrando nas questões simbólicas que dão alcance e significado à sobrevivência, que tocam à vida espiritual das multidões como explicitaremos mais adiante.

Portanto, ao analisarmos o atual cenário nos damos conta de que, apesar do melhor empenho envolvido na elaboração de alternativas não logramos consenso. Pessoalmente acredito que estamos em situação semelhante à da fábula “Os cegos e o elefante”, onde o cego que toca a perna diz que o elefante é uma coluna, o que toca a cauda que é como uma vassoura e assim por diante.

Falta às propostas uma plataforma comum que as faça inteligíveis aos demais protagonistas para com isso alcançar sinergia num ambiente operacional estratégico comum, como acontecia com os diversos componentes da frente democrática no enfrentamento da ditadura, diferentes entre si mas sinérgicos.

Então, metodologicamente, vale partir do pressuposto de que todos os que se empenharam têm mérito e foram capazes de apreender parte da realidade, que podem ter razão em alguma medida e que estamos nesse mato sem cachorros devido a fatos que não se dão a conhecer facilmente e que definem um inelutável “estado da arte”.

Vou me posicionar também com o foco de que nesta paisagem paira invisível uma realidade sociológica da maior importância e que dessa invisibilidade resulta a impotência política de cada uma dessas propostas citadas anteriormente. É esse elemento que falta, de força gravitacional maior, invisível e erroneamente desprezado que me parece essencial apresentar aqui e que resolve a meu ver o enigma para o conjunto de reflexões que tentam antever esse futuro a ser buscado e esse “mais” que precisa ser feito.

A questão estratégica da emancipação das periferias

Sucedâneas das senzalas as nossas periferias foram em diversas cidades brasileiras fundadas ao fim da escravatura como povoamentos que exprimiam claramente o novo papel destinado ao negro “liberto”. A esses contingentes originais se somaram ao longo da história de êxodos rurais sucessivos, os demais todos os outros componentes do povo brasileiro.

Fundadora dessa brasilidade das maiorias, local onde nascem, vivem e morrem a maioria dos brasileiros, congeladas no tempo no que toca a inúmeras e gravíssimas precariedades, as periferias não compõem o cerne de nenhuma das formulações citadas acima e que projetam o Brasil numa segunda rodada de governos de esquerda.

A teoria do fim da conciliação de classes e da politização pelo discurso

Para os adeptos do conjunto de propostas que reconhecem que a renda compôs o principal da virada histórica produzida pela era trabalhista, o que não foi pouco, mas claramente não foi suficiente e que entendem que agora é hora politizar as massas, vale sublinhar que classicamente são as condições materiais da existência as que formam consciência e que aplicarmo-nos para mudar estruturalmente a realidade das periferias é a única via para tornar visível para o povo o fato de que a esquerda finalmente enxergou a sua missão histórica e merece crédito.

Economicistas

Aqueles que se alinham ao conjunto de ideias que eu denominei de “economicistas” são parte integrante da frente que construirá o país na sequência do golpe, mas se encontram um tanto distantes dessas questões que aponto aqui porque representam segmentos que estão focados na democracia e na nacionalidade como amparos para uma atividade econômica mais robusta  e que produzam prosperidade. Podem, no entanto, entender que trazer as periferias à contemporaneidade é tarefa comparável à reconstrução de um pós guerra e tem, dado o descalabro e abandono, o poder para mover a economia brasileira por trinta anos.

Ações programáticas não organicamente estruturadas

No Plano de Emergência da Frente Brasil Popular a palavra “periferia” só aparece duas vezes, uma para tratar de questões ambientais e outra para tratar dos direitos materno-infantis. É evidente que tanto as questões ambientais quanto os direitos da mulher e da criança têm elevadíssima relevância, mas as periferias não lograram comparecer por mérito próprio em nenhuma das 76 propostas do Plano, embora naturalmente muitas delas se apliquem à realidade das ditas periferias. Pode parecer um detalhe, exceto pelo fato de que as periferias são precisamente O ambiente operacional capaz de dar organicidade às propostas contidas no Plano de Emergência da FBP.

O que fazer?

Mas do que se trata quando falamos de emancipação das periferias? Ou o que significa trazê-las para o usufruto da contemporaneidade sob todos os aspectos?

Significa constatar que o Estado brasileiro se fez e se faz presente nas periferias em ações focadas apenas em manter a força de trabalho viva, capaz de continuar trabalhando e de sobreviver nas condições de exigências sociais de hoje. E nada mais.

O Estado, mesmo da era trabalhista só se deu a conhecer nas periferias através da escola, que dispensa comentários, da creche que se legitima porque libera os braços femininos para o trabalho, da unidade de saúde, cujo médico chegou aos 46 minutos do segundo tempo pelo Mais Médicos e da delegacia de polícia (que mete medo aos moradores, principalmente aos negros).

Nenhuma ação consistente do Estado focalizou as necessidades espirituais desses brasileiros nem foi movida “apenas” para tornar a vida digna.

As nossas periferias são locais de sobrevivências, criadouros e abatedouros de pobres e nada mais, e se mais o são é pelo esforço hercúleo dos próprios moradores que organizam o samba, o São João, o futebol, a capoeira, a vida da associação de moradores.

Continuam em falta nas periferias, os centros de velório, o que obriga as famílias a tremendas via crucis para dar dignidade ao enterro dos seus mortos, casas de idosos, fazendo com que situações indizíveis de abandono e sofrimento de idosos sequer tenham como se exprimir socialmente, cinemas comunitários, piscinas públicas, alamedas pedestres iluminadas e policiadas, anfiteatros onde a vida cultural das comunidades não tenha que ser sempre improvisada e precária, centros desportivos capazes de dar alcance ao potencial esportivo do brasileiro, associações de moradores bem instaladas e em condições de acolher dignamente as reuniões das comunidades, teatros comunitários, escolas de música, etc, etc, etc, etc…

Essas ações são politizadoras, pois o povo entenderia, para além do projeto de sociedade, a sua autoria numa esquerda política autenticamente interessada na sua emancipação.

Eterno país da Casa Grande e da Senzala, a emancipação das periferias teria, de quebra, o condão de tornar esse brutal anacronismo (e já tão tardiamente) uma coisa do passado.

Quando finalmente a esquerda descobrir as periferias, a pergunta de se podemos fazer mais será realmente dispensável.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

14 Comentários

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  1. Se tomar o partido do povo, é possível fazer muito mais

    Se ficar do lado da elite, como de 2003 até o golpe, vai poder cada vez menos

    Por falar nisso, o Aécio e Temer fizeram acordo de delação premiadíssima. Pelo andar da carruagem, até o Lula vai delatar e se livrar da masmorra do Moro. uropígio de codorna

  2. Lúcida mensagem

    Companheiro Ion de Andrade

    Concordo ipsis literis com sua proposta de rearticulação sócio-política das perifas, e sugiro mais no tocante ao setor de empregos. As associações de bairros deveriam ser o epicentro organizador da ocupação dos desempregados em todas as áreas para todos os níveis de formação profissional.

    Os carentes entender-se-iam nas suas insuficiências e poderiam solidarizar-se construtivamente.Por exemplo um profissional liberal que conseguisse emprego por este núcleo, contrataria o seu jardineiro desempregado a sua cozinheira desempregada, a sua babá necessária , etc, constituindo um contingente social integrado e solidário no qual a lei seria vínculo social necessário para o atendimento dos interesses mútuos de trabalho e serviços sociais…

    Onde instalá-lo, inicialmente?Ora em uma escola ociosa no período noturno, numa capela de igreja, numa futura ou existente Associação de bairro elaborada para a colaboração mútua nos intentos das políticas de promoção social.

    Neste ínterim, postos de saúde, escolas, seriam construídos, centrais de transportes públicos e caronas, associações de empregados domésticos e de bancos de dados de outras atividades profissionais, como centro de referências e de troca de informações profissionais, assistidas por advogados trabalhistas, padres e religiosos sérios que pensem além da própria pregação…nesta altura cedendo espaços públicos ainda carentes de serem estruturados e oficializados em nome do bem estar social…centros de ações culturais …tudo que as antigas comunidades ecleseais de base um dia já se propuseram implementar, agora se rearticulando com intensidade integrativa potente dentro dos bairros…e centralizadas nestes bairros.

    Uma vez implementados esses núcleos de integração social e econômica, há que se dar a construção dos prédios que as abriguem, para a qual as comunidades se consorciam em mutirões. E dessa simples prática nascerão novos projetos mais consistentes e de apelo regional e social cada vez mais importantes no sentido das colaborações sociais com as políticas públicas em ação local e exemplificando para novas experiências se instalando e florescendo em outras periferias, contando inclusive com agentes sociais solidários bem sucedidos em comunidades assim organizadas de antemão.Numa espécie de efeito Dartagnan “um por todos e todos por um”.

    Lograríamos dar primeiros passos para integrar e politizar massas alijadas de direitos sócio-culturais-econômicos, que é mister do Estado popular cuidar e subsidiar, em colaboração com uma política também popular para  o progresso social geral.Assim agindo estar-se-ia reaquecendo não só a economia local, mas também o convívio social e o calor humano da solidariedade construtiva material, sem caritativismo subserviente e com amizades solidificando-se na Senzala, para a Senzala e com o povo da Senzala, para alcançar a emancipação efetiva e sólidamente histórica da superação da era e do comando da até aqui subversiva condução coercitiva da Casa grande.

    #NÃO À NEOESCRAVIDÃO VOLUNTÀRIA#

    #CONSCIENTIZAÇÃO JÁ#

    #MAIS  E MELHORES ESCOLAS JÁ#

    #NÃO À INEXISTÊNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS#

    #FORA A CASA GRANDE#

    #FORA CONGRESSO FAJUTO#

    #FORA TEMER#

    #DIRETAS JÁ#

  3. Qual a solução para a crise?

    https://rebeldesilente.wordpress.com/2017/06/04/brasilumpaisporfazer/

     

    Existe solução para o grave momento político em que nos encontramos???

     

    Neste novo texto do Rebelde Silente, o debate se abre, sem pré conceitos e de forma corajosa, para que encontremos uma saída para problemas seculares que temos.

     

    “Um caminho de mil quilômetros começa com o primeiro passo”, que comecemos, então o nosso, pois temos um país por fazer, e que, durante nossa caminhada, não nos transformemos naquilo que eles são.

  4. Pragmatismo de curto fôlego

    A análise do Ion de Andrade se concentra quase exclusivamente na dimensão institucional da política, ou seja na dimensão de governo, supondo como pacífica a tese de que Lula será eleito como próximo Presidente da República.

    Creio que isso produz um duplo efeito perverso sobre o sentido da análise. Primeiro, que a torna meramente instrumental(izada) quanto à percepção do que seja o campo da política, sobretudo no que respeita às construções simbólicas nesse campo (algo sobre o quê os antropólogos teríamos algo a dizer, mas que os cientistas políticos em geral não têm). Segundo, que a hipótese Lula é apenas uma hipótese e que, ao absolutizá-la como alguns pretendem (talvez para lhe outorgar efeito performativo de verdade), não se faz mais que continuar míope dentro do campo mesmo da institucionalidade política.

    Nesse sentido, as “três vertentes” que o analista pretende sintetizar podem ser não mais que projeções cômodas, restritas e contingentes, sobre um fragmento (o institucional) da política a partir de uma outra projeção voluntarista que está ainda muito longe de comportar todas as possíveis variáveis, ou seja: como, por que caminho e com que composições políticas poderia Lula retornar à Presidência?

    Começo pela redução mais simples: a hipótese Lula na Presidência. Suponhamo-na como efetiva e provável (para facilitar as coisas até mesmo para esses analistas tão afiançadamente montados sobre seu wish fulfillment). Significaria a chegada de Lula à Presidência, pelas urnas, a legitimação de algum projeto político propositivo? Ou significaria, antes de mais nada, a reação a um movimento destrutivo, embalada pela miragem de um outro movimento que já não tem mais condições de se reproduzir? Significaria a efetiva reconstituição do campo político-institucional agora sob uma redimida hegemonia petista? Ou significaria a consumação do reconhecimento de desintegração desse campo por meio da conclamação de um líder messiânico?

    As consequências das dúvidas em torno dessa hipótese podem não sintetizar outra coisa senão algo singelo: a eventual chegada de Lula à Presidência pode não ter conteúdo efetivo algum, pode ser aquilo que os antropólogos, desde Lévi-Strauss, chamamos de “significante flutuante” ou significante com valor semântico zero. É apenas uma “coisa” (no sentido polissêmico que esse termo tem), ou, como se diz em francês, “truc”. Isso não quer dizer que as “coisas” não “sirvam” (simbolicamente) para nada. Elas servem para ocupar um lugar que não pode ser preenchido por nada definido de uma vez por todas, projeto nenhum, especificidade nenhuma. Essa “ocupação” só se sustentará enquanto não-compromisso, para sustentar a persistência de um não-lugar, logicamente necessário, mas sempre (e de forma imperativa para sua própria existência) semanticamente precário. Seria uma espécie de finalização da não-política, um populismo finalizado, não importa tanto sua coloração, róseo como Lula, cor-de-pepino como algum eventual tucano (paulista ou não). Pode ser para isso que caminhamos…

    Consideremos agora a redução da política à política institucional. Será que ela expressa de forma suficiente as ainda mal traduzidas demandas “populares”, as que parecem emergir desse lugar social (não necessariamente geográfico) que Ion de Andrade quis chamar (talvez numa espécie de tentação hipostasiante urbanóide) de “periferias”?

    Suspeito que haja um grande desencontro aí. Eu chamaria esse desencontro de “síndrome de junho de 2013”. Outros analistas desse fenômeno temporal preciso o traduziram sob a forma de “crise de representação”, e meu velho professor Luis Eduardo Soares chegou a chamá-lo de “colapso da representação”. Com isso tudo eu quero dizer uma coisa bem simples: o campo político-institucional não dispõe de recursos discursivos de mediação que possam prover de legitimação um certo projeto que se descolou das possibilidades de construir mediação.

    Não se trata de um descolamento explicado pela figura insondável (exceto para os marxistas e suas miragens de totalização classista) da “conciliação de classes”. Trata-se de um descolamento explicado pela redução funcionalista da política à maquinária eleitoral-partidária, condição suficiente não só para definir toda e qualquer possibilidade de ação como também para definir interlocutores autorizados (aqueles que “não têm votos” – conquistados sabe-se lá por meio de qual máquina de marketing movida por quais propinas – têm mais é que manter seu silêncio obsequioso…). Para fazer uma analogia gaiata com minha categorização anterior, eu chamaria esse descolamento de “síndrome José Dirceu”.

    Não se trata, portanto, de reivindicar a política como essa caricatura panfletarista de ir para as ruas politizar as massas por meio de doutrinação ideológica. Trata-se de reivindicar a política como um campo de mediações muito mais amplo que as (in)suficiências palacianas, tecnocráticas e gestoriais. Significa ver a política não em termos de verticalismos, caciquismos, correias de transmissão e forma-partido, mas sim em termos de trabalho de construção e ampliação de legitimidade, em que ela (a política, seus recursos e instrumentos) seja efetivamente publicizada, em lugar de ser clientelizada sob a forma de programas assistenciais que replicam o paradigma livre-cambista e utilitarista “produto-consumidor”, que foi a forma como o PT tratou a cidadania.

    É de outra visão da política que, no fundo, se move a crítica à insuficiência do projeto petista, que agora tem a pretensão de se desdobrar nem como tragédia nem como farsa, mas como zumbi, esse signo sem conteúdo vital (semântico), que apenas se move e devora o que pode.

    Debruçar-se sobre a possibilidade de construção de um projeto progressista de sociedade é ir muito mais além do fôlego curto das reduções imediatizantes e instrumentalizantes; é debruçar-se sobre essa semântica, ou seja, sobre a possibilidade de sentido do público, da inclusão, da cidadania que não seja apenas uma colcha de retalhos mal-ajambrada de assistencialismos, de corporativismos, de particularismos “afirmativos”, enfim, desse modelo de dedução do público como espaço de predação utilitária.

    O ciclo petista não se esgotou por causa da “conciliação de classes”. O ciclo petista se esgotou por ter levado ao paroxismo a redução da política à lógica predatória do utilitarismo neoliberal. O ciclo petista significou, em suma, o aborto do projeto progressista de transformação social em que o horizonte utópico da ideia de socialismo apontava para uma coisa bastante elementar: a precedência lógica do público.

    Cair gozosamente na armadilha dos reducionismos pretensamente pragmáticos significa render-se à vacuidade semântica da impostura como pretensão política, significa render-se à ordem imutável da “naturalidade” já dada, e para isso basta ocupar o não-lugar do alheamento, arrastar até o limite do asco definitivo o colapso da representação (um limite – apesar de muitos não o reconhecerem – ronda perigosamente a imediata proximidade dos ingênuos).

    Não! Os petistas perderam a dimensão da política. É disso que se trata fazer uma autocrítica.

    Alguma esquerda viável para o futuro só será possível se essa dimensão for, antes de mais nada, restaurada. Trata-se agora de se retornar às condições mínimas para a produção de sentido, e não de condições práticas para a reprodução do não-sentido, essa permanente provisoriedade onde as razões do Outro (em termos de economia lógica o chamamos de “direita”) são as que mandam.

    1. o não lugar dos antropólogos

      As alternativas políticas estão dadas , as massas têm  que escolher um posto de resposta política contundente e eficiente. Ou isto ou o caos degenerativo das violências crescentes…Meu caro, o simbolismo da política dos antropólogos é de fato muito válido enquanto proposta teórica, pois na prática  o que vai valer é a realpolitik do dá ou desce.Ou se conquista pelo consenso do contraditório ou se parte pro pau pura e simplesmente.Tergiversações teoréticas são válidas na academia, na vida prática quero ver o que que manda.Voce tem disposição para o enfrentamento revolucionário ou dá as cartas segundo espaços democráticos ainda trilháveis?Particularmente acho o confronto mais sofrido. Trilhemos pois o restante do espaço constitucional que ainda nos resta antes de partirmos para um banho de sangue.Resignifique seus antagonismos políticos e defenda os “índios”, “escravos”,”proletários” pela lei que nos resta trilhar, por exemplo, antes de abrir fogo contra o latifúndio  e a banca predatórios. Eles têm o poder simbólico das instituições, inclusive armadas.Na prática poderemos tentar a paz pelo ainda factível exercício da lei.É um pragmatismo político que pode muito bem ser ainda simbólico para a nossa sobrevivência (pragmática) no contexto político nacional… 

    2. Obrigado Ricardo pelo seu

      Obrigado Ricardo pelo seu longo comentário. No meu texto me limitei à tentativa de demonstrar que a esquerda não tem dado a devida atenção ao fenômeno “periferias” como deveria.

      A organização das esquerdas nessas áreas é mínma e, certamente também por isto, não elabora a respeito, É como se estivéssemos na Europa.

      Portanto o foco do artigo não é “institucional”, nem pretende antever qualquer futuro com o sem Lula, não. O foco do artigo é a necesidade de incluirmos as periferias nas nossas formulações, o que, e espero que você concorde, NÃO OCORRE.

      Vou lhe dar dois exemplos recentes do que isto significa: 1. O Mais Médicos só saiu devido a crise política de 2013 e não porque a realidade da desassistência, velha conhecida nossa, tivesse sensibilizado os nossos tomadores de decisão no limiar suficiente para que pudesse ter sido adotado em tempo mais oportuno e 2. Poucos meses depois do golpe eclodiu em todo o Brasil uma crise recheada do horror mais primitivo em nossas prisões. Você sabe que nas nossas prisões há muita gente presa sem culpa formada e que muitos deles foram excutados. Todos pobres. A desassistência na Atenção Básica era uma barbárie municippal e o Mais Médicos subverteu a arquitetura do SUS para oferecer às periferias e zonas rurais um programa federal de acesso finalmente à assistência médica, e foi uma ação unilateral do nosso Executivo. As prisões por sua vez eram e são uma barbárie estadual. Nelas NADA ocorreu e vimos no que deu. Então o projeto de sociedade foi relativizado, não pela correlação de forças, nem pela impossibilidade de fazer, mas por uma condução errática e conjuntural decorrente da nossa formulação precária do que realmente era estratégico. Que tendências políticas nossas propuseram como prioridade do Executivo, quando era nosso, a solução desses problemas, que são apenas ilustrativos de um fenômeno bem generalizado? Aquela família do menino inocente preso e executado se politiza como? Vota em quem? O que queremos realmente?

      Tudo isso dificultou em muito a politização do nosso povo que forma opinião pelo conceito que constrói a partir do seu cotidiano.

      E digo isso com a esperança de que um futuro governo da esquerda possa dar conta de abordar essa problemática com a prioridade que ela merece.

      Pautemos as periferias como ambiente estratégico. Ousemos sair da dualidade Casa Grande e Senzala. Saiamos do discurso e da política pelo controle remoto das redes sociais e cumpramos ou, ao menos queiramos cumprir nos nossos planos a nossa missão histórica. É bem simples, na verdade.

       

      1. Meu caro, é tão simples!

        Ou o povo conquista ou nada vem de graça.

        Parece que iluminados farão algo que não for demandado simplesmente porque são os iluminados de esquerda!

        A militância via facebook e redes sociais tornou a esquerda realmente uma palavra e não uma posição política. Simples, muito simples, mas é dolorido para muitos.

      2. Sabe o que é, Ion?…

        É que eu não acho que adiante muita coisa eleger um “sujeito social” para querer representá-lo, tomá-lo como inspiração salvadora ou prover assistência às suas “demandas”.

        Eu entendo que as velhas seduções marxistas heroicizaram a “classe operária” (o que fez sentido ao menos numa época em que da classe operária podia se deduzir uma visão de mundo, no sentido que um E. P. Thompson ensaiou). Mas, veja bem, a perspectiva diferencial é dessa “visão de mundo” e não da simples estratificação social.

        Até para o próprio Marx, a “classe operária” era o caminho para sair do capitalismo, o caminho para uma nova síntese através da negação (…e se a síntese era uma “dupla negação”, então a especificidade da “classe operária” também precisaria ser negada). É esse o pulo do gato da busca (nesse caso, dialética) de novos universais. E isso está muito longe da busca pelo refúgio no particularismo hipostasiado de algum “novo sujeito” (como passou a ser obsessão de certo pensamento sociológico a partir dos anos 90).

        Então, não se trata de a esquerda querer fugir para a periferia para salvar sua pele ideológica, buscar um pretexto social concreto, substantivo e suficiente para se salvar. Isso pode ser, de uma parte, não mais que cair na armadilha dos particularismos salvacionistas contemporâneos, onde as “identidades” viram tábua de salvação e as relações são comodamente banidas para escanteio no campo do pensamento.

        Irremediavelmente, a  configuração da sociedade é uma configuração de relações; não de identidades. Da mesma maneira como o senhor só é senhor se for senhor de um escravo, também a Casa Grande só o é se Casa Grande de uma senzala. As dualidades não devem se prestar para reificarmos a identidade substantiva dos termos (e sairmos buscando outros, eventualmente mais “eficazes”). As dualidades podem nos servir para explicitar as relações (lógicas, antes de mais nada).

        Então, não teremos saída se nos entretermos apenas em hipostariar algum termo de salvação. A única saída para pensar mais além dos esquemas prévios é retornar aos grande problemas sobre como as relações são postas, pensadas e legitimadas.

        Não tem remendo que dê jeito em algo que está profunda, íntima e estruturalmente troncho. É esse não-projeto petista que está troncho. Ele não precisa de um remendo que o salve. Ele precisa de uma nova perspectiva que permita sair da sua deformidade atávica.

        Dá pra entender o que eu quis dizer antes a partir desse ponto de vista?

         

    3. pragmatismo…..

      “Caminhando e cantando e seguindo a canção. Somos todos …” Vamos seguindo rumo ao ano 3000 com esperança renovada. Che Guevera nã morreu. O Muro não caiu. Estamos sendo emganados por esta farsa yankee. Lenin voltará. E Democratas somos. Desde que a Esquerda seja absoluta. O Brasil se explica. 

  5. Negociar, sim. Conciliar, nunca mais !

    ION

    Você afirma e eu concordo plenamente: “… o povo se politiza pela leitura que faz do seu cotidiano.”

    Por isso mesmo a “conciliação de classes” é uma farsa que impede que o povo forme o justo conceito da realidade. Ao contrário, forma um conceito idealizado que só serve para domesticá-lo. A conciliação de classes só serve para ajudar a manipular a consciência do povo, tornando obscuro o real antogonismo de interesses de classe.

    Nunca o Lula ocupou a TV para mostrar ao povo brasileiro que quase metade do orçamento federal é destinado aos rentistas. Os grandes capitalistas promoveram a queda de Dilma, querem a prisão de Lula, escravizar o povo e entregar nossas riquezas naturais. Conciliar com esses inimigos ? Não ! Negociar, mas com transparência para o povo.

    A primeira ação política de um presidente eleito e com compromissos com a Democracia, é DESTRUIR o poder político da Globo. E passar a discutir publicamente cada um dos itens que podem fazer do Brasil uma Nação Democrática. Chamar o povo para participar dos pontos fundamentais: informar massivamente, debater esclarecedoramente e chamar o povo para decidir por plebicisto ou referendo. Isso não é conciliar.

     

     

  6. Ensaio de Fernando Haddad

    Hoje li (no DCM) um ensaio publicado pelo Fernando Haddad que, creio, é muito importante e relevante, até por se tratar de um insider dentro da realpolitik. Tem tudo a ver com as questões levantadas pelo Ion Andrade, e debatidas pelo Cavalcanti-Schiel. Há uma certa dose de conciliação imbuída no texto – que considero inútil, pois não pode e nem se deve tentar a conciliação com alguém que quer cortar a sua garganta – mas admiro mais ainda o Haddad, mesmo não concordando na totalidade dos seus pontos de vista.

    Vale a pena ler, e não só uma vez.

    Grande discussão, abraços a todos

    http://www.diariodocentrodomundo.com.br/joao-roberto-marinho-sondou-lula-para-ser-candidato-em-2014-diz-haddad-em-ensaio-sobre-sua-vida-e-carreira/

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